Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Crônica | Quando Snowden revelou o ‘ouro’ do século 21

Um analista de sistemas fictício divaga sobre como um escândalo de espionagem real deixou clara a disputa pelos dados de todos nós
Poster de Snowden nas cores branco, azul e vermelho, com a palavra "verdade" escrita em inglês embaixo
Por Luiz Dias (lhp.dias11973@usp.br)

Era 28 de agosto de 2024, bati o ponto e sentei na minha mesa do escritório. A sala ainda silenciosa pela manhã, povoada apenas por meus colegas ainda sonolentos pela manhã e o aroma de café, companheiro diário dos trabalhadores diurnos. Antes de trabalhar, conferi as notícias e alguns jornais ainda falavam do furo de reportagem do dia anterior: Mark Zuckerberg revelou em uma carta que havia interferência governamental em sua empresa. Dei uma leve risada, até aqui nada novo.

Quando era adolescente, comecei a mudar meus gostos de leitura. Procurava livros que tinham uma aura mítica de intelectualidade entre os jovens e encontrei ‘1984’ (Secker & Warburg, 1949) de George Orwell. Através das suas páginas conheci a temível a figura do “Grande Irmão”, com seu maligno bigode nos pôsteres e sua onipresença em Oceânia. Jovem e ingênuo, tratei como mera ficção. Percebo hoje que a maioria das pessoas o interpretam da mesma forma que eu, uma doce ilusão.

Muitos acordaram dessa ilusão juvenil de forma brusca. Lembro como se fosse hoje, o dia em que o “Grande Irmão” deixava de ser uma figura meramente literária e começava a refletir a realidade. Um dia como qualquer outro em junho de 2013, em que o mundo conheceu o ex-consultor da CIA Edward Snowden e um dos maiores segredos dos Estados Unidos da América (EUA).

A primeira revelação foi feita pelo jornalista Glenn Greenwald em seu artigo ao The Guardian. Nele estava a primeira onda de vazamentos recolhidos por Snowden diretamente da Agência Nacional de Segurança (NSA), um escritório da Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA. Novas levas de documentos foram liberadas, revelando um profundo esquema de espionagem interna do estado, contra seu próprio povo e as nações aliadas, como, por exemplo, o Ministério de Minas e Energia do Brasil.

Por meio de dados da agência, o ex-agente da CIA Edward Snowden delatou os mecanismos da espionagem: grandes empresas de tecnologia repassaram os dados de seus clientes, que eram analisados por softwares da NSA, como o Turbulence, na procura de informações interessantes para o governo. Os escolhidos eram armazenados pelo programa Prism e poderiam ser acessados a qualquer momento através do XKeyscore, que atuava como um buscador semelhante ao Google.

Lembro da reação turbulenta do mundo, mas o mais marcante para mim foi a reação do governo. Convenientemente, diversos jornais governistas focaram suas críticas não nos atos ilegais do estado, mas no crime de espionagem cometido por Snowden. Ao mesmo tempo, o ex-agente teve que fugir para o outro lado do mundo para não ser capturado, como a ex-analista de inteligência Chelsea Manning, que foi detida em condições equivalentes à tortura.

Snowden permaneceu escondido em Hong Kong, um ícone de liberdade dentro da China, vivendo em um apartamento vigiado por espiões e jornalistas até desaparecer, quando secretamente recebeu abrigo de uma família de refugiados na ilha. Ele continuou nessa situação por meses, até conseguir exílio no Equador e traçar uma rota de fuga, que não passasse no espaço aéreo americano ou de qualquer aliado, regiões onde seu avião podia ser obrigado a pousar ou ser abatido.

Sua fuga se mostrou falha quando o governo americano cancelou seu visto, algo que o transformou em um apátrida durante sua tentativa de check-in em um aeroporto, em que permaneceu até conseguir exílio político na Rússia, onde está até hoje. A caça a Snowden alcançou alguns momentos humilhantes para a diplomacia americana, como o evento no qual o avião do ex-presidente boliviano Evo Morales foi obrigado a pousar na Áustria por suspeitas de estar transportando o espião.

Onze anos se passaram desde esses acontecimentos e, para os usuários, as coisas não melhoraram. O acesso aos dados é cada vez mais fácil. Os usuários disponibilizam centenas de informações próprias na internet — muitas vezes em tempo real. Enquanto isso, os demais dados são extraídos aos zettabytes pelas big techs, cuja sobrevivência financeira se baseia na venda destes para empresas de publicidade e cujo público consumidor aceita fornecê-los aceitando termos de uso sem ler.

Lembro-me de que, quando adolescente, às vezes temia ser espionado pelo computador, como um pesadelo inconsciente do “Grande Irmão”, que se manifestava e fazia com que eu cobrisse a webcam. No entanto, atualmente os poderosos — aqueles que mais têm a perder — estão constantemente com medo da espionagem de seus inimigos. Penso nas tentativas de banimento do aplicativo chinês TikTok pelos Estados Unidos e, o já concretizado, banimento de seus concorrentes ocidentais nos territórios da Rússia ou da China.

As redes sociais são um lugar repleto de espiões e agentes de inteligência e desinformação. Para quem tem noção desse fato, não é surpreendente o interesse do governo em interferir nas redes da Meta, como confessado por Zuckerberg, bem como outras denúncias de intervenções nas redes, como aquelas feitas nos chamados Twitter Files. As interferências só tendem a se tornar cada vez mais frequentes.

Em 2001, o governo americano usou a comoção dos atentados do 11 de setembro como premissa para aprovar o Patriot Act, um ato constitucional com objetivo oficial de proteger a América do terrorismo. Uma medida que, na prática, graças à sua seção 215, permitiu a espionagem em massa perpetrada pela NSA por cima da Quarta Emenda

Toda essa situação sempre me leva a lembrar de um ditado que minha mãe me contava: “nem tudo que reluz é ouro”. Ela não entendia de política, mas seu ditado “cai como uma luva” nessa situação. Nos jornais podemos ver frequentemente motivos aparentemente justos, para o bem do povo, sendo usados para obter esse novo ouro moderno, os dados da população.

Para proteger as pessoas do imperialismo americano, o governo russo aprovou leis que limitaram o acesso da população à informação, em especial às críticas ao Estado. Para combater o discurso de ódio, governos tentam aprovar leis que abrem margem para perseguição política. Para garantir a segurança da população, o governo chinês gerou a nação mais vigiada do mundo, com quase 373 câmeras a cada mil pessoas, em um país com mais de 1,4 bilhões de habitantes.

Percebi que, para garantir a liberdade dessas pessoas, seus governos estão sistematicamente tomando sua liberdade. O pensamento amargo me fez esticar as costas na cadeira. Senti as vértebras estalarem e levantei para pegar mais café. Chega de divagações por hoje, afinal de contas, tenho muito trabalho a fazer e a vida não me permite pensar por tanto tempo.

[Imagem de capa: GDJ/Pixabay]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima