Por Catarina Martines (catarina.martines@usp.br)
A mesa Os outros no Brasil ontem e hoje, que contou com a participação dos jornalistas Xico Sá e Milly Lacombe, ocorreu na última terça-feira (18), no teatro da Megafauna Cultura Artística. A mesa, que originalmente também era composta pelo escritor Cuti, teve mediação de Bianca Mantovani e foi inspirada pela filosofia africana Ubuntu, “eu sou porque nós somos” e, nesse sentido, teve como intuito debater o “outro”. Após o cancelamento imposto a Milly Lacombe na Feira Lítero Musical (FLIM), a qual a mesa originalmente faria parte, a discussão ganhou uma nova forma e transformou a censura em debate público.
Foram abordados temas como a democracia, resistência, responsabilidade ética da palavra e o papel da literatura e do jornalismo na construção de histórias mais humanas. A proposta da mesa foi refletir sobre quem compõe o Brasil e como estabelecer diálogo com o diferente, num encontro dedicado a ampliar a compreensão sobre o outro — aquele que, como Xico brincou, costuma ser visto como “o feio, sujo e malvado” e é constantemente expulso da própria história.
As curadoras da FLIM, Bruna Fernanda e Tania Rivitti, além da própria mediadora da mesa, abriram a conversa através da leitura de uma carta que celebrava o renascimento da discussão e a importância do espaço cultural na construção de uma sociedade democrática. Elas trabalharam ao longo do ano para elaborar a programação do evento literário de modo a reforçar o compromisso da cultura como espaço de liberdade e convivência entre diferentes vozes. Com o cancelamento da feira, o papel da equipe tornou-se ainda mais evidente, ao transformar a mesa em um gesto de resistência coletiva e reafirmação da cultura como enfrentamento ao autoritarismo.
“Nenhum projeto cultural se sustenta onde a intimidação e o veto à palavra se impõem.”
Tania Rivitti

O silêncio que virou trovão
Essa conversa estava guardada na gaveta desde o dia 16 de setembro deste ano, quando Milly Lacombe teve sua participação na FLIM — que ocorre em São José dos Campos — vetada. O prefeito da cidade, Anderson Farias (PSD), proibiu a presença da jornalista uma semana antes do evento acontecer, ao alegar que o espaço público não seria utilizado como “palanque contra a família e valores da cidade”.
O cancelamento ocorreu após repercussões de uma fala de Milly durante o podcast Louva a Deusa, quando ela questionou o que seria esse modelo familiar ao afirmar: “Família é um núcleo produtor de neurose. Essa família tradicional branca, conservadora, brasileira. Gente, isso é um horror. É a base do fascismo”. A censura a uma das jornalistas da mesa que abriria o evento literário desencadeou uma série de desistências entre os demais convidados e resultou no cancelamento da feira na data prevista.
O início da discussão aconteceu a partir da retomada desse episódio. Milly comentou sobre o uso estratégico de ataques à liberdade de expressão como ferramenta política. Por mais que a ação do prefeito tenha atingido diretamente a ela, a mobilização, tanto da organização e dos participantes do evento quanto da população, levou a um movimento de resistência que transformou o silêncio da censura em possibilidade de diálogo. “A história deixou de ser a autora censurada e passou a ser o prefeito que censurou uma feira literária”, defendeu a escritora.
Xico Sá retomou os desdobramentos do caso ao relembrar o recente escândalo envolvendo Anderson Farias, o que, para ele, se assemelha a um caso digno de uma história de Nelson Rodrigues. No mês passado saiu na imprensa que o prefeito, o qual defendeu a constituição da família tradicional, traiu a esposa, que chegou a abrir uma medida protetiva contra ele.
O outro em nós
O tema central da mesa foi discutir acerca do “outro”. Ao longo da conversa, a tentativa de responder quem são os “outros” que compõem o Brasil e como dialogar com o diferente guiou todas as respostas dos palestrantes. Como jornalistas e escritores, ambos diferenciaram as percepções e apresentações dos múltiplos personagens brasileiros nas obras de ficção e na não-ficção.
O saber olhar e ouvir foi tido como umas das características essenciais a todos, mas principalmente aos jornalistas que tem como função fazer o retrato mais fidedigno possível do Brasil. Xico Sá trabalha no ICL notícias e é colunista do Diário do Nordeste e relatou como, ao longo de seus anos de profissão, aprender a observar e a ouvir foi o que permitiu dar as pautas factuais, rostos, nomes e histórias. Sobre a chacina que ocorreu no Rio de Janeiro no começo de novembro e que deixou mais de 120 mortos, ele explicou que a retratação dessas vítimas lhes negou justamente isso, e os reduziu a sujeitos sem identidade.
“O outro, nesse longo roteiro da história do Brasil, é o chacinado. É quem não tem nome. É o feio, sujo e malvado.”
Xico Sá
Ao relembrar sua trajetória como jornalista, Xico Sá citou um episódio que transformou o modo como passou a apurar e narrar histórias. Durante a produção de uma reportagem sobre a seca no semiárido cearense, ele visitou a casa de uma mãe com oito filhos. No momento em que o fotógrafo se preparava para registrar a cena, a mulher interrompeu e pediu que esperassem: queria dar banho e arrumar as crianças antes da foto. O gesto simples, revelou a ele a importância de respeitar a dignidade de quem é retratado — e de compreender que, para além da pauta, existem pessoas que não desejam ter sua miséria exposta, mas sua humanidade reconhecida.

Milly Lacombe, jornalista e escritora lésbica, publicou recentemente o livro Eu te amo, cretino (Seja Breve, 2025), romance que retrata um casal heterossexual durante a pandemia. Ela deu destaque ao longo de sua fala a como a particularidade de cada indivíduo o transforma em um “outro” dentro da sociedade brasileira e como essa alteridade é produzida por estruturas históricas de violência e desigualdade. Ela afirma que ninguém é universal porque todo mundo tem marca, contexto, história e ponto de vista.
Para ela, o Brasil cria seus “outros” — negros, indígenas, pobres, travestis, mulheres, pessoas LGBTQIA+ — e, ao mesmo tempo, constrói narrativas que os tratam como ameaça. Ao comentar o avanço do neofascismo no país, argumentou que reconhecer-se nesses “outros” sujeitos é um gesto político poderoso, porque obriga a romper as fronteiras que sustentam privilégios e hierarquias.
“Esperamos o dia em que homens brancos lutarão pelos direitos das travestis. Quando isso acontecer, talvez o Brasil comece a existir.”
Milly Lacombe

Sobre a importância de contar histórias, Milly falou sobre como a ficção é essencial para reconhecer as narrativas do “outro”. Para ela, o ato de retratar histórias que são invisíveis na sociedade é uma responsabilidade de quem tem o poder de iluminar essas vozes silenciadas. Ela comenta que usa a literatura como uma vingança, em que seus personagens finalmente mostram suas verdadeiras faces de modo escancarado: “A história precisa ser contada”.
Aqueles que são rotulados como “diferentes” são justamente os que constituem o Brasil. Ao ouvi-los e reconhecê-los como sujeitos de direitos, surge o “perigo” de que toda a população passe a se identificar com pautas que não são originalmente suas — movimento que ameaça a lógica do “eles lá e nós aqui”, fundamento que sustenta e aprofunda as desigualdades históricas brasileiras.
*[Imagem de capa: Catarina Martines/Jornalismo Júnior]
