Por Ana Carolina Mattos (a.carolinamattosn@usp.br) e Ana Julia Oliveira (anajulia.oliveira@usp.br)
No dia 28 de junho de 1969, uma violenta invasão policial causou a revolta dos frequentadores de um bar gay, em Nova York. O evento, conhecido mais tarde como Rebelião de Stonewall representou um marco importante para a comunidade, um dia para comemorar e se orgulhar, mas também para relembrar a importância das lutas pelos direitos das pessoas LGBTQIA+.
Mais do que apenas um lazer, o cinema sempre foi um reflexo da sociedade de sua época, abordando, explícita ou implicitamente, as questões de ordem política, econômica ou cultural que afligiam a população.
E com a comunidade LGBTQIA+ não foi diferente. No início, ainda sutis ou censuradas; na maioria das vezes, de maneira trágica, mas com o tempo, histórias queer foram ganhando mais espaço nas telas, assim como suas demandas por respeito e igualdade.
Como o cinema LGBT nasceu
O primeiro registro de um filme com uma possível abordagem homoafetiva foi feito em 1894, por William Kennedy Dickson. Com apenas 17 segundos, o curta intitulado The Dickson Experimental Sound Film (1984) mostra dois homens dançando juntos, mesmo assim, não há um consenso sobre a intencionalidade do diretor.
Já no século seguinte, alguns filmes ousavam ao explicitamente retratar homens afeminados nas telas. Algie, the Miner (1912) contava com um protagonista afeminado, visto como chacota pelos outros.
Já em Atrás da Tela (Behind the Screen, 1976), de Charles Chaplin, um dos personagens imita o que seria um homem afeminado, uma cena feita para gerar risadas. Nessa época, as representações de homens homossexuais não passavam disso: um motivo de riso para o público.

Ainda assim, o cinema ainda era um espaço de libertação para os artistas, de forma que, mesmo sob fortes críticas, a experiência queer ainda fosse retratada. A Alemanha, por exemplo, se destacou na temática, com filmes como Eu Não Quero Ser um Homem (Ich möchte kein Mann sein, 1918) e Diferente dos Outros (Different from the Others, 1918), o primeiro filme abertamente gay do cinema – que, inclusive, condenava a homofobia.
A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, 1929), com a primeira aparição de uma mulher lésbica nas telas e Senhoritas em Uniforme (Mädchen in Uniform, 1931), com a primeira história lésbica explícita, também foram obras alemãs. Infelizmente, com a ascensão do nazismo nas décadas seguintes, a produção de filmes progressistas como esses foi amplamente desencorajada.

Foi nesse momento que os estereótipos a respeito de homens e mulheres gays ou transexuais começaram a se fixar no imaginário popular. Homossexuais do gênero masculino, por exemplo, eram sempre afeminados e excessivos, enquanto as mulheres geralmente eram brutas e se vestiam como homens, como se fosse apenas uma questão de inversão de papéis.
Em Marrocos (1930) e Sylvia Scarlett (1935), personagens femininas eram caracterizadas com ternos e chapéus masculinos. A partir dos anos 1960, muitos filmes começaram a adotar a chamada “codificação queer”, em que havia apenas indícios e sugestões a respeito de personagens LGBT, pistas que apenas a comunidade ou um público muito atento conseguiria pegar.
Por outro lado, obras como Meu Passado me Condena (Victim, 1961), Retrato de Jason (Portrait of Jason, 1967), Triângulo Feminino (The Killing of Sister George, 1968) e O Funeral das Rosas (Funeral Parade of Roses, 1969) desafiaram o preconceito e os boicotes da época, apresentando personagens e narrativas LGBTQI+ em seus enredos.
Nas décadas seguintes, outras produções se destacaram positivamente, a exemplo de Os Garotos da Banda (The Boys in the Band, 1970), que conseguiu trazer uma realidade da comunidade gay, Pink Flamingos (1972), com a presença forte de um elenco queer, e Olhares de Despedida (Parting Glances, 1986), que trouxe um olhar mais empático da epidemia de AIDS.
Houve destaques negativos também, como Parceiros da Noite (Cruising, 1980), com uma abordagem prejudicial relacionada à criminalidade de pessoas LGBTQIA+.

Por fim, em 1992, B. Ruby Rich, professora da UC Santa Cruz e crítica de cinema, criou o termo Novo Cinema Queer para classificar algumas produções com aspectos em comum que vinham surgindo, como a subversão de ideais heterossexuais e a representação explícita de pessoas da comunidade.
Foi o caso de Orlando – A Mulher Imortal (1992), Garotos de Programa (My Own Private Idaho, 1991), Veneno (Poison, 1991), Boogie Nights: Prazer sem Limites (1997), Almas Gêmeas (Heavenly Creatures, 1994) e Ma vie en rose (1997).
“Rompendo definitivamente com abordagens humanistas mais antigas e com os filmes e vídeos alinhados à política identitária, essas obras são irreverentes, enérgicas, ora minimalistas, ora excessivas. Acima de tudo, são cheias de prazer”
— B. Ruby Rich
A tragédia no cinema
Ao longo da história, foi se concretizando a ideia de que filmes com temáticas LGBTQIA+ são sempre melancólicos, violentos e quase nunca apresentam um final feliz. Apesar de não se aplicar a todas as obras, essa configuração é frequente, mas o que muitos não sabem é que sempre houve uma motivação por trás das histórias trágicas.
Ainda lá atrás, diretores como Alfred Hitchcock contribuíram para popularizar a imagem de personagens homossexuais como vilões. O longa Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940), traz uma figura feminina obcecada por sua patroa, já em Festim Diabólico (Rope, 1948), há um casal de homens gays assassinos. O objetivo era mostrar que pessoas que fugiam da heteronormatividade eram assustadoras e perturbadas.
Outra barreira que impedia a criação livre era o Código Hays, conhecido também como Código de Produção de Cinema. Criado com a finalidade de impôr regras e censuras aos filmes americanos durante a Era de Ouro, o código proibia a representação de pessoas gays felizes nas telas.
Em outras palavras, quando raramente apareciam, os homossexuais deveriam ser vistos como perversos, doentes ou simplesmente aberrações. É daí que surge a cultura de narrativas trágicas, como em Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955) e De Repente, no Último Verão (Suddenly, Last Summer, 1959).

Mesmo com o abandono do código, em 1968, esse tipo de filme continuou sendo feito. Temas como a dor da autodescoberta, amores proibidos e o medo do julgamento sempre foram muito conhecidos pela comunidade, e o fato de fazerem sucesso até hoje revela que a mentalidade conservadora e preconceituosa ainda perdura na sociedade atual.
Filmes como O Segredo de Brokeback Mountain, Tudo Sobre Minha Mãe (Todo sobre mi madre, 1999), Meninos Não Choram (Boys Don’t Cry, 1999), Felizes Juntos (Chun Gwong Cha Sit, 1997) marcaram e continuam marcando gerações de pessoas queer.
Recentemente, produções como Me Chame Pelo Seu Nome (Call Me by Your Name, 2017), Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016) e Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait of a Lady on Fire, 2019) marcaram um público mais novo, trazendo identificação e realismo, ainda que com finais trágicos.
A epidemia da AIDS e o cinema LGBTQIA+
Em 1981, casos de uma pneumonia rara que parecia atingir jovens homossexuais foram registrados nos Estados Unidos. No mesmo ano, o jornal The New York Times publica em 3 de julho o artigo intitulado “tipo raro de câncer encontrado em 41 homens homossexuais”, uma das primeiras matérias sobre o que dois anos depois, em 1983, seria identificado como AIDS, doença derivada da infecção pelo vírus HIV.
Nos Estados Unidos, estima-se que a doença tenha causado a morte de mais de 400 mil pessoas entre as décadas de 1980 e 1990. Enquanto ao redor do mundo, milhões de mortos. A epidemia da AIDS afetou diretamente a comunidade LGBTQIA + e mudou a forma como se expressava para sempre, principalmente no cinema.
Companheiros (Buddies, 1985) acompanha David (David Schachter), um voluntário num hospital que cuida de pessoas com AIDS, que estabelece uma relação próxima com Robert (Geoff Edholm), um homem doente e solitário. Apesar de dramático e trágico,o longa apresenta um olhar empático e incomum para pessoas LGBTQIA+ à época, sendo considerado o primeiro filme americano a tratar do assunto.

Dirigido pelo cineasta Arthur J. Bressan Jr., um dos precursores do cinema queer independente norte-americano, Companheiros foi essencial para as novas formas de representação queer no cinema. No ano seguinte, Olhares de despedida começa a apresentar um novo olhar sobre pessoas LGBTQIA+ e a epidemia da AIDS.
O longa é uma dramédia e acompanha a última noite do casal Michael (Richard Ganoung) e Robert (John Bolger) juntos, já que Robert irá trabalhar na África. Enquanto isso, Michael reflete sobre os reais motivos de seu parceiro deixar o país, além de lidar com seus sentimentos por Nick (Steve Buscemi), um amigo de longa data diagnosticado com AIDS.
Diferentemente de outras representações, Nick não é um personagem miserável ou à beira da morte, pelo contrário, tem uma postura crítica e quase arrogante aos doentes que sentem pena de si mesmos e sua situação.
Com momentos cômicos e debates profundos, Olhares de Despedida é um dos primeiros filmes a abraçar uma postura menos amedrontada da AIDS, abordando personagens diferentes e uma nova forma de olhar para as pessoas queer.

Em 1992, um dos mais importantes diretores do Novo Cinema Queer, Gregg Araki, dirigiu e roteirizou Viver até ao Fim (The Living End, 1992). O filme acompanha dois homens com HIV que após um assasinato acidental, partem em uma viagem pelos Estados Unidos com um caráter despreocupado e postura combativa ao mundo.
O cinema LGBTQIA+ e a década de 1990

[Imagem: Reprodução/IMDb]
Os anos 1990 foram férteis para esse novo tipo de produção do cinema queer, principalmente devido a pandemia da AIDS, o aumento das produções independentes ao redor do mundo, o surgimento da teoria queer e o próprio Novo Cinema Queer.
Com um cenário pessimista e pouco receptivo a pessoas LGBTQIA+, surgiu uma nova forma de representação, mais positiva e até catártica da comunidade, apresentados diferentes narrativas queer e suas diferentes características e personalidades.
Gregg Araki é um dos nomes mais emblemáticos da época, responsável por algumas das produções mais únicas do cinema independente queer. Nos anos 1990, dirigiu o que mais tarde ficou conhecido como Teenage Apocalypse Trilogy, três filmes com temática LGBTQIA+, críticas aos Estados Unidos, uma visão pessimista do mundo e um humor baseado no absurdo.
Totalmente Tramados (Totally Fucked Up, 1993) foi o primeiro filme lançado e é considerado como um marco do Novo Cinema Queer. “Originalmente, eu queria fazer isso como uma espécie de Masculino-Feminino, explorando as questões enfrentadas por adolescentes gays/lésbicas em um clima sociocultural bastante hostil (os dias da epidemia de AIDS, babacas homofóbicos como Lyndon Larouche, etc”, revelou o diretor em uma entrevista ao portal IndieWire, em 2005.
Geração Maldita (The Doom Generation, 1995), segundo da trilogia, acompanha o casal Jordan (James Duval) e Amy (Rose McGowan), que se unem a Xavier (Johnathon Schaech) depois de se conhecerem em uma festa. Depois de um acidente violento, os três partem uma jornada pelos Estados Unidos em que lidam com pessoas e situações absurdas.
Com o pessimismo já visto no filme anterior, Geração Maldita abusa do caos como forma de comédia, substituindo o drama antes tão comum a narrativa queer por momentos cómicos derivados de um mundo caótico regado a absurdos.

Estrada para Lugar Nenhum é o último longa da trilogia e o mais caótico de todos. A trama acompanha um grupo de estudantes que passam por uma série de experiências bizarras enquanto lidam com as dificuldades de suas vidas pessoais.
Cheio de subtextos, interpretações e até mesmo alienígenas, Estrada para Lugar Nenhum é um dos mais excêntricos e diferentes produções do cinema queer.
A década de 1990 também viu o auge de produções independentes com foco em personagens lésbicas. Prazer Sem Limites (The Incredibly True Adventure of Two Girls in Love, 1995), uma comédia romântica lésbica, narra a história de duas meninas que apesar de praticamente opostas, se apaixonam perdidamente.

No ano seguinte, A Mulher Melancia (The Watermelon Woman, 1996), foi lançado. O filme acompanha Cheryl (Cheryl Dunye), uma jovem com um projeto em que procura uma atriz negra da década de 1930 que era conhecida como watermelon woman.
Ao decorrer de sua pesquisa, descobre mais sobre a atriz e acaba se envolvendo com uma mulher chamada Diana (Guinevere Turner). Um dos filmes mais aclamados e queridos pelo público, A Mulher Melancia se tornou um clássico do New Queer Cinema.
O mais famoso dessa leva é Nunca Fui Santa (But I’m a Cheerleader, 1999), uma comédia que usa estereótipos e preconceitos para construir um humor cheio de deboche e sarcasmo.
Na trama, uma jovem líder de torcida é enviada por seus pais, que suspeitam de possíveis tendências homossexuais de sua filha, para um acampamento de terapia de conversão sexual. O filme caçoa da lógica heteronormativa e usa situações absurdas promovidas pela terapia de reversão para construir boa parte das cenas cômicas.

Outros nomes de destaque são Todd Haynes, diretor do clássico Veneno (Poison, 1991), uma ficção científica com três narrativas em um único filme, sendo elas a história de um menino que atira em seu próprio pai, um cientista obcecado e dois detentos que se apaixonam. Isaacs Julien, Gus Van Sant e Laurie Lynd também são importantes nomes do movimento.
O cinema queer contemporâneo

Nos últimos anos, narrativas queer tem se apresentado das mais diferentes formas, não só limitadas a tragédias mas também não apenas presas a narrativas imaginativas e caóticas.
Amor em Sangue (Love Lies Bleeding, 2024) por exemplo é um thriller que abraça romance, ação e fantasia, numa história regada a violência,debates sobre dinâmica familiar e uma relação entre duas mulheres apresentada de maneira natural, sem maiores tragédias para além de seus passados misteriosos.
A representação de personagens e relações LGBTQIA+ tem assumido caráter cada vez mais natural, tomando a identidade queer como uma característica igual a qualquer outra e raramente o ponto central da narrativa como em Carol (Carol, 2015) de Todd Haynes, por exemplo. No filme, o desenvolvimento amoroso entre a protagonista, Therese (Rooney Mara), e Carol (Cate Blanchett).
Eu Vi o Brilho na TV (I Saw the Tv Glow, 2024) é um filme inteiramente feito sobre analises e metáforas da vivência e mais especificamente, da vivência de pessoas transgêneros. Assim como Matrix (The Matrix, 1999), o filme é reconhecido como uma alegoria trans, uma história que usa elementos narrativos e imagéticos para construir características que aludem a experiências de pessoas trans.
No longa, Owen (Justice Smith) conhece Maddy (Jack Haven), uma jovem esquisita e isolada que apresenta a ele um programa de TV misterioso chamado The Pink Opaque.
Na série, as protagonistas Isabel (Helena Howard) e Tara (Lindsey Jordan) lutam contra ameaças e protegem o mundo do tenebroso vilão, Senhor Melancolia. Regado a subtextos e surrealismo, Eu Vi o Brilho na TV é um questionamento existencial sobre o terror em viver uma vida que não é sua.

Em entrevista ao The Guardian em 2024, Jane Schoenbrun, responsável pela direção e roteiro, revelou que a produção acompanha jovens que apesar de se sentirem diferentes, não sabem ainda no que esse sentimento se fundamenta, e sua obsessão por um programa de TV inacabado é uma alegoria para perceber e conceber sua identidade queer.
“Eu tinha uma obsessão com a ideia de personagens que nunca conseguiram superar o final não resolvido de uma série de TV. A metáfora principal do filme gira em torno de algo que está errado, quase como uma identidade ou caminho sendo fechado”, disse em entrevista.
Jane Schoenbrun também apontou a forma como a identidade transgênero é vista por Hollywood, e que Eu Vi o Brilho na TV subverte a ideia de que entender a si mesmo é algo inato a pessoas trans e apresenta uma narrativa marcada por questionamentos e muito reflexão, ao que Schoenbrun aponta como experiência mais realista para pessoas queer.
“A imagem hollywoodiana clássica de uma pessoa trans, que acredito ter propagado muitas inverdades sobre a experiência trans, é uma criança triste se olhando no espelho ou alguém em um discurso de Oscar sobre como sempre soube que deveria ter sido uma menina.”, revelou.
“O tempo não estava certo. Estava passando rápido demais. E de repente eu tinha 19. E depois eu tinha 20. Eu me sentia como uma daquelas bonecas que dormem em supermercados. Empalhada. E depois eu tinha 21 anos. Como capítulos pulados em DVD. Eu disse para mim, ‘Isso não é normal. Não é assim que a vida deve ser’”
— Maddy, Eu Vi o Brilho na TV