Imagem: Crisley Santana/Comunicação Visual – Jornalismo Júnior
“É som de preto
De favelado
Mas quando toca ninguém fica parado
Tá ligado” – Som de preto, Amilcka e Chocolate.
Entre batidas, graves e tambores, o funk brasileiro nasce. Derivado da soul music, gênero musical inspirado no Rhythm and blues (R&B) e no gospel dos Estados Unidos, o ritmo chega ao Brasil na década de 1970. Inicialmente instalado na zona sul do Rio de Janeiro, o funk começou a adentrar o subúrbio carioca com os Bailes da Pesada. Com batidas e letras fáceis de serem decoradas, sua adesão à camada popular foi momentânea, enquanto incitava-se um novo ritmo musical, forte e com peso de identidade nacional.
A batida simplista e a não exigência de vários instrumentos fizeram do funk um ritmo inteligente. Não precisa estudar anos de música ou gastar dinheiro com instrumentos. O pouco entendimento sobre o ritmo e o depósito de uma vivência faz o funk ser facilmente disseminado e incorporado ao cotidiano. Com a força da simplicidade, ele ascende e agrega cada vez mais a ideia de identidade nacional. No entanto, vislumbra-se impasses na aceitação cultural brasileira. Questiona-se: o funk é arte?
A malícia do funk é, juntamente com as batidas, seu aspecto mais marcante. Seu tom transgressor invade e transforma em atmosfera dançante e isolada. As letras ficam em segundo plano e assim, ideias são dissipadas de forma automática e inconsciente. No entanto, observar a ascensão do funk é mais do que observar a tendência de graves e passinhos, mas indagar sobre a letra e reflexo social que ela traz. Por isso, a relutância em aceitá-lo e o anseio em levar à criminalização.
Como espelho social
A ascensão do funk trouxe mais visibilidade às letras. Com intenso teor sexual, as músicas abordam o sair em festa, se divertir e se relacionar. Mas necessita-se de uma maior análise sobre os pensamentos por trás delas. Elas variam, mas variam até chegar num funk pesado, que explana machismo, objetificação da mulher, pornografia e até estupro. Afastadas da sociedade, as periferias brasileiras eram a representação de um isolamento social e geográfico. O que acontecia nelas, era abafado. Agora, o espanto da sociedade perante às letras faz com que problemas e descaso sejam aparentes. O país se incomoda com a letra, essa um reflexo das favelas, ou com a disseminação de tais relatos, antes restritos apenas às comunidades?
Segundo Danilo Cymrot, doutor em criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), já havia ideia de que o funk, por ser uma música feita por favelados e para favelados, não podia ser considerado arte, como uma coisa baixa, vulgar e com vocabulário pobre. “Existia o preconceito mas as pessoas são muito intolerantes com o gosto alheio. Se não gostam, não presta e chegam ao ponto de defender inclusive a proibição pelo fato de acharem que não tem qualidade, independentemente ou não de haver reações reais com o crime”. O retrato do funk imerso em estereótipos não é arbitrário. Em 2017, tramitou no Congresso um projeto de lei que decretava a criminalização do gênero. Dito como “crime de saúde pública”, a proposta alegava: “É fato e de conhecimento dos brasileiros, difundido inclusive por diversos veículos de comunicação de mídia e internet com conteúdos podre alertando a população o poder público do crime contra a criança, o menor adolescente e a família. Crime de saúde pública desta ‘falsa cultura’ denominada funk.”
Barrada pelo Senado, a proposta não vigorou. Mas escancarou um movimento já ocorrido na música brasileira. Não é a primeira vez que isso acontece na história do país. Assim como o funk, o samba, rap e capoeira passaram pelos mesmos trâmites e barreiras no momento de sua ascensão social e midiática. Agora, os três são considerados elementos indispensáveis à cultura nacional, os quais dão maior unicidade e identidade ao Brasil.
Marcelo Gularte é músico e autor do livro “A Lenda do Funk Carioca”. Para ele, o funk é um reflexo real da periferia, mas que a generalização do estilo às pessoas não pode acontecer. “A grande massa das comunidades é formada por pessoas humildes, trabalhadoras e que sonham com condições mais dignas de sobrevivência. A poesia do funk resulta desse processo de ausência total do poder público.” Ela surge como voz potente que narra de forma criativa essa dura realidade em que está submergido. “Por intermédio da música, o funkeiro reinventa esse cotidiano voraz, apontando para algo que está para além de seus supostos limites”. Trata-se de um grande canal de comunicação que permite a expressão daquilo que se vive. Com as ferramentas que tem, inventa-se um novo significado àquele contexto.
Estabelecer um paralelo entre a ascensão do ritmo e o declínio da cultura brasileira incita um questionamento: a cultura no Brasil já esteve em seu ápice? Se sim, esse ápice era para todos ou era guetificado? Para António José Costa, amigo do Apafunk (Associação de Profissionais e Amigos do funk), “o que muda hoje em dia é que as coisas aparecem e circulam mais e, por isso, ganham adeptos em todos os lugares. Quando o funk toca, ele emociona e é sentido até por quem é rico”. E o questionamento leva à resposta que, o que para muitos traduzem como um declínio moral, para outros é um dos únicos meios de sair daquela condição. Funk é trabalho e, para alguns, um dos meios mais próximos do que é cultura. Afinal, cultura engloba todos.
Antônio entende que “para ser declínio, devia ter subido todo mundo, mas nem todo mundo subiu. Não tem como colocar a proporcionalidade e a potencialidade do funk a ponto de fazer uma cultura declinar”. É uma dicotomia: o funk não criou o machismo, a objetificação da mulher nem a ascensão da cultura do estupro mas, mesmo que de uma forma inconsciente, seu discurso reafirma tais temáticas. Ele colabora para a violência, mas não é o desencadeador dela.
O discurso que transcende o funk
Como parte de uma violência que precisa ser radicalmente responsabilizado por disseminar nos meios de comunicação conteúdos e valores, a discussão deve-se voltar a como acabar com o discurso e como implementar na sociedade as problemáticas dele. Para Danilo, o discurso machista choca, mas entende-se que, até por parte das mulheres, que a criminalização não é o único caminho a seguir. “As mulheres encontraram meios de atacar isso de uma forma não criminalizante. Ao invés de pregar prisão das pessoas, elas acabam dando respostas para os homens”. Como Valesca, Anitta, Ludmilla e MC Karol, suas músicas demonstram uma autonomia e empoderamento feminino. O próprio processo de criminalização glamouriza o gênero e o crime. “Jovens começam a conhecer o funk por meio dessas denúncias e acabam achando interessante e exótico. Tudo o que é transgressor tende a atrair a atenção de muita gente e faz com que o sucesso aumente”.
Mais do que uma análise de letras do funk, é necessário fazer uma análise sobre o contexto sociocultural da sociedade brasileira. O questionamento trata-se sobre o motivo que possibilitou cenas e posicionamentos nas músicas e o porquê tais canções permanecem por tanto tempo com licença poética. A produção do pensamento e a propagação pelos seus respectivos autores interessa, mas a propagação em geral, não apenas a observada no funk. Para Marcelo, é problemático esquecer a trajetória onde facilmente é identificado um traço machista entre os ícones da música popular brasileira. “Colocar esse ônus na conta do funk para que o moleque da favela ‘pague o pato’, justamente ele que está efetivamente vulnerável a reproduz os valores impostos pela sociedade no qual está inserido em busca de empoderamento e representatividade.”
A reprodutibilidade sempre existiu, mas o peso dado a tal discurso se intensifica quando outras pessoas ascendem. Ou, quando uma realidade se torna mais visível. Para Antônio, o que precisa questionar é sobre as pessoas que vivem essas realidades. “Como uma criança de 12, 15 anos consegue falar sobre vários tipos de armas diferentes, mas não se levar em foco o porquê as crianças ricas gostam de cantar isso.” Ele relata que “o que se canta é a situação que acontece e eu só fico sabendo por causa do funk. Isso horroriza e choca, mas a vida está acontecendo aí”. Mesmo que representando um lugar de exclusão, entendê-lo apenas como uma voz dada às comunidades é limitar a potencialidade do ritmo. Ele questiona e, ao mesmo tempo, afirma o pertencimento. Com sua potência cultural, o funk existe, mas ele vem de um lugar que acontecem muitas coisas não dignas e ele faz parte disso. E tal indignidade é o gatilho para o consumo.
Criminalizando é que se silencia (vozes, pessoas e situações)
Antônio relata que a produção do funk ainda é muito restrita e muitas músicas são impedidas de serem gravadas justamente porque não ressalta incessantemente um cunho transgressor e violento. Apesar da ascensão, MCs e gravadoras não têm a autonomia de gravar ou divulgarem o que é de interesse próprio. E a visibilidade e o consumo da sociedade são superados em músicas violentas e que explanam transgressões. Enquanto isso, outros funks que não apresentam tal teor são barrados. É um ciclo vicioso: a produção ocorre porque há o consumo.
Impor limites à produção musical e não permitir certos discursos é muitas vezes necessário, mas necessita-se de uma legitimidade. Danilo concorda, ao mesmo tempo que reitera um posicionamento social: “As pessoas têm a tendência de resolver todos os problemas sociais por meio de criminalização. Como elas não sabem lidar com alguns fenômenos e problemas, o jeito é defender a criminalização, porque a solução é simples e rápida”. Só que na maioria das vezes isso não resolve.
A música tem a força de um gatilho para iniciar uma discussão empoderada sobre machismo, cultura de estupro e violência. Respostas devem ser, acima de tudo, preventivas, em que tais temáticas devem ser afrontadas no cotidiano de maneira pedagógica, problematizando-as e entendendo-as pelo contexto, como em escolas, e com a retirada das músicas das plataformas digitais. Danilo ressalta que “o direito penal muitas vezes é discutido por pessoas que não querem resolver o problema, é mais uma punição simbólica. Criminalização é um termo vago porque não necessariamente estamos falando de medidas de fato penais, que estão tipificadas.”
Entender sua ascensão é dar visibilidade à juventude da periferia que está por trás do funk, marginalizada e criminalizada independente do gênero musical. Nem todos os funkeiros cantam proibidão, assim como nem todos cantam ousadia, ostentação ou corroboram com exploração infantil. Mas são um reflexo de uma realidade abafada e invisível. Criminalizar o funk é silenciar mensageiros, mas realidades não pararão de existir. A cultura do estupro continuará, assim como a objetificação, machismo, pornografia e exploração. Mas elas serão ouvidas sem a batida e, provavelmente, não notadas.
Antônio entende que criminalizar implanta uma aura de luz que funks proibidões não precisam. A repercussão deles já ocorre, e a criminalização a estimulará ainda mais. Apesar de dicotômico, criminalizar glamourifica e eleva a notoriedade. Ao proibir, instala-se um anseio ainda mais de transgredir e, portanto, de consumir. Para ele, é necessário estabelecer uma maior plataforma e possibilitar a ampliação de uma cadeia produtiva para que novos funks sejam gravados e poderem circular. Enquanto isso, os que elevam violência, tráfico e pornografia serão esquecidos.
Para quem canta funk, a violência já está banalizada. Tanto social quanto musicalmente. Trata-se de uma violência simbólica que não acabará com leis sendo implantadas. O funk existe e bailes, gravidez na adolescência e danças sensuais existiam antes mesmo de seu aparecimento nos noticiários. A mídia fala porque dá audiência ou dá audiência porque ela fala? Músicas repetidas de forma inconsciente naturalizam um discurso, mas há métodos para combatê-lo se não pela censura. No final, a ascensão do funk e sua consequente criminalização giram em torno da ideia sobre o que é arte. Mas, atenção: essa resposta é subjetiva.
“Na noite carioca
O funk é isso aí
Quem tá de fora vem
Quem tá dentro não quer sair” – Danada vem que vem, Mc Koringa.
Por Sofia Aguiar
(sofia.aguiar@usp.br)
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