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Observatório | Novo edital propõe mudanças no modo de uso das câmeras corporais em Policiais Militares de SP

Segundo o documento, o policial poderá escolher se vai gravar ou não uma ocorrência. Especialistas e sociedade civil criticam a decisão do governo Tarcísio.
Por Fernanda Franco (fernanda.francoxavier@usp.br) e Yasmin Constante (yasminconstante@usp.br)
Câmeras corporais da PMESP
Câmeras corporais da PMESP.
[Imagem: Divulgação/Governo do Estado de São Paulo]

O governo de São Paulo publicou, no dia 22 de maio, um novo edital para a compra de 12 mil câmeras operacionais portáteis (COP) para a Polícia Militar do estado. Apesar do número representar um aumento de 18%, o documento sofreu alterações significativas em relação às funções das novas câmeras. As duas principais mudanças estabelecem que as gravações passarão a ser acionadas de forma intencional pelo policial e terão seu tempo de armazenamento reduzido para 30 dias.

Atualmente, são 10.125 câmeras em operação para 80.037 policiais militares no estado de São Paulo. Elas foram compradas por meio de dois contratos anteriores e todas serão substituídas pelo edital proposto. Os gastos com o projeto vigente são a principal justificativa do Governo de São Paulo para a mudança de edital e a expectativa da Secretaria de Segurança Pública é que haja uma redução entre 30% e 50% dos custos. 

Durante o período eleitoral, o argumento do governador do estado, Tarcísio de Freitas,  era de que as câmeras atrapalhavam o trabalho policial e contribuíam para um aumento na criminalidade — ainda não justificado. Com o passar do tempo, o discurso anterior foi deixado de lado e o político agora alega que as câmeras deveriam funcionar como um objeto operacional da polícia, e não de controle dela. É com base nesse raciocínio que as novas funções foram propostas no edital.

Quais são essas mudanças?

No projeto vigente a PM não tem autonomia para escolher o que deseja gravar. Tudo é registrado em vídeo a partir de duas categorias centrais de gravação: a de rotina e a obrigatória. Os vídeos de rotina registram todo o turno do policial de forma ininterrupta, sem necessitar de um acionamento, e ficam armazenados por 90 dias no sistema do Centro de Operações da Polícia Militar (Copom). 

Por outro lado, os vídeos obrigatórios são acionados pelo policial quando está em alguma operação, seguindo as regras normativas da polícia, e ficam armazenados por um ano. A diferença de uma categoria para outra é que as gravações obrigatórias possuem uma qualidade maior de som e imagem.

O novo edital menciona apenas as gravações obrigatórias, sem citar as rotineiras, esse acionamento da câmera poderá ser feito à escolha do próprio policial ou de forma remota pelo Copom. O documento também informa que o tempo de armazenagem dessas gravações intencionais será de apenas 30 dias.  

Para Daniel Edler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, essas mudanças são problemáticas quando é levado em consideração o controle do uso da força e o funcionamento do sistema judicial brasileiro. 

“Sem o modo de gravação ininterrupta, os policiais tendem a gravar menos suas interações com a população e a fazer maior uso da força de forma ilegítima. Isso deve diminuir a qualidade do serviço prestado. Além disso, é fundamental considerar que o funcionamento do sistema judicial brasileiro é demorado. Com apenas 30 dias é muito provável que a evidência se perca ou suma do sistema antes de se completar o seu ciclo de investigação”.

Daniel Edler

Também está prevista no edital a adição de novas funcionalidades, como baterias duradouras, áudio direcional, reconhecimento facial e leitura de placas de veículos. Nesse sentido, o especialista aponta que o problema é substituir um dispositivo de controle policial, que trouxe mais transparência, para um equipamento só operacional. “As funcionalidades prometidas já poderiam ser usadas no hardware que existe hoje. Então esse não vai ser um equipamento melhor, mas um que tem uma função diferente na rotina do policial, e isso responde atualmente aos interesses da polícia”. 

Para Daniel, mudar esse modelo pode trazer diversos prejuízos no trabalho judiciário e até no nível mínimo de habilitação técnica das empresas que se candidatarem para fornecer a quantidade de câmeras previstas e com boa qualidade.

Na prática, segundo o pesquisador, essas alterações impactam, sobretudo, as investigações de casos de violência policial, as quais vêm diminuindo sucessivamente desde 2020 — quando as câmeras corporais foram implementadas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) por meio do programa “Olho Vivo”

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que, entre 2021 e 2022, houve uma queda de 63% das lesões corporais e 57% das mortes decorrentes de intervenção policial nos batalhões que começaram a usar essa tecnologia.

Gráfico que mostra mortes decorrentes de intervenções policiais - militares e civis - durante e fora do serviço, no Estado de SP. As mortes em serviço diminuíram drasticamente a partir de 2020, quando as câmeras corporais entraram em vigor.
Mortes decorrentes de intervenções policiais – militares e civis – durante e fora do serviço, no Estado de SP. Fonte: Resolução SSP-516/00; Diário Oficial do Estado de São Paulo. Gráfico divulgado por: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para o especialista, esses resultados demonstram que a câmera corporal com gravação ininterrupta é uma das políticas públicas de segurança mais efetivas no momento e de sucesso no estado, ainda mais considerando seus efeitos indiretos. “Ao evitar que uma situação escale para o uso da violência, a câmera evita também custos com o judiciário, investigações, sistemas de saúde e assistência social, por exemplo. Se for computar tudo isso, você tem uma economia muito grande no final das contas”, destaca ele. 

O modo de gravação intencional já foi utilizado anteriormente durante a fase de testes do projeto no estado de São Paulo, mas não apresentou resultados favoráveis como os do modelo hoje em uso. De acordo com o secretário do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Marivaldo Pereira, o edital propõe a mudança de um sistema que é referência nacional e internacional para um que, comprovadamente, não funciona. 

“Há um risco muito grande de que a gente tenha um grande desperdício de recursos públicos e uma redução drástica dos ganhos que a experiência anterior vinha trazendo para a população, especialmente em relação às mortes ocorridas durante a atividade policial”

Marivaldo Pereira

Ele explica que a câmera em uniformes policiais é uma tecnologia extremamente importante para analisar a execução de protocolos treinados nas academias, isto é, como se comportam na prática. Ao mesmo tempo, é a tecnologia que permite à sociedade acompanhar como está sendo desenvolvido o trabalho do agente de segurança pública. 

“A transparência é um pressuposto para qualquer agente do serviço público. Qualquer pessoa que fala em nome do estado e em nome da sociedade, pela constituição, tem esse dever. O uso da força sem qualquer tipo de transparência não é recomendado em nenhum regime democrático”

Marivaldo Pereira

O secretário ressalta que a transparência fornecida pelas câmeras é positiva tanto para o cidadão quanto para o policial. “A câmera protege o policial porque inibe o comportamento violento ao mesmo tempo em que contribui para que o trabalho dele seja eficiente, na medida em que a imagem constitui uma prova essencial para o processo judicial”. 

Movimentos do Governo Federal

No dia 28 de maio, cinco dias após o lançamento do edital, o Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, Ricardo  Lewandowski, lançou diretrizes para o uso das câmeras corporais em policiais com o objetivo de criar um padrão federal para o uso do equipamento.  

A Portaria nº 648/2024 editada pelo ministro reitera a obrigatoriedade das gravações de três formas: por acionamento remoto, decisão do próprio agente ou de maneira automática – como é preferencialmente dado. Além disso, é determinado que as câmeras sejam acionadas obrigatoriamente em 16 situações, como por exemplo, no atendimento de ocorrências, atividades de fiscalização e ações operacionais.

Essas normas foram criadas com o objetivo de garantir uma implementação ideal da tecnologia e devem ser seguidas, rigorosamente, pelos estados que desejarem receber recursos do Governo Federal para a implementação desse projeto — não sendo obrigatórias para aqueles que recusam os recursos. Já as forças federais, como Polícia Federal e Rodoviária, serão obrigadas a seguir tais diretrizes, com exceção dos serviços de inteligência. 

“O problema é que não tem lei sobre isso, é uma questão constitucional. Segurança Pública é um assunto que tem o estado como ator principal. O que a união pode fazer é gerar incentivos para que os estados adotem políticas públicas. Há diretrizes mínimas do que seriam os padrões ideais para implementação, mas nada disso é obrigatório, o que deixou muitos pontos dúbios em relação à gravação ininterrupta”, explica o pesquisador Daniel Edler.

Segundo Tarcísio de Freitas, o edital lançado em São Paulo não discorda das diretrizes criadas pelo Governo Federal. “A diretriz do ministério deixa a critério do estado a definição de como as câmeras vão funcionar. Então, o ministério diz que elas podem funcionar ininterruptamente, elas podem ter acionamento pelo agente, elas podem ter acionamento automático. Então, todas as formas de acionamento estão alcançadas pela diretriz do Ministério da Justiça”, afirmou o governador após sua participação no evento Summit Mobilidade.

Nesta segunda-feira (10), o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), negou um pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo de suspender o pregão de contratação de câmeras corporais para PM’s porque não previa a gravação ininterrupta. Barroso justificou sua decisão dizendo que a regra fixada pela pasta estabelece preferência pela gravação ininterrupta mas que não há proibição para outras formas de gravação.

Foto de perto de uma câmera corporal no uniforme policial
A PMESP publica a portaria complementar com as diretrizes que disciplinam o uso das câmeras corporais.
[Imagem: Divulgação/Governo do Estado de São Paulo]

Opiniões públicas

A Jornalismo Júnior realizou uma pesquisa com 101 moradores do estado de São Paulo, sendo 70% da capital, a qual apontou que 92,9% dos participantes apoiam o uso das câmeras corporais em PM’s. A mesma porcentagem afirmou que se sentiria mais segura se a abordagem policial fosse realizada com câmeras ligadas. 

Os entrevistados se mostram favoráveis ao modelo atual, devido à proteção oferecida tanto aos policiais quanto para a população, prevenção do abuso da força e transparência nas atividades de agente públicos. Além do mais, grande parte acredita que o uso das câmeras ajuda sobretudo pessoas pobres, negras e LGBTQIA+. 

Para 81,2%, as câmeras contribuem totalmente para a segurança pública, já 15,8% acham que isso ocorre apenas parcialmente. Por outro lado, 3% dos entrevistados não apoiam o projeto. Estes acreditam que a utilização do material seja invasiva, que ela coaja a ação policial e que existam medidas mais úteis para a contribuição do trabalho dos agentes. Outros 3% se disseram indiferentes, afirmando que a medida não altera a eficiência policial, mas também não a prejudica.

Mesmo que o projeto apresente alto nível de aprovação por parte da população, entre os policiais militares que fazem uso das câmeras no cotidiano, elas podem não ser vistas como aliadas. O Sargento Rogério Walter, policial militar aposentado, por exemplo, é contrário ao equipamento e conta que quando fazia uso das câmeras corporais se sentia desconfortável em “ser monitorado durante 12h de trabalho”. Para ele, as câmeras não devem ser uma prioridade porque não é um dinheiro bem investido.

“Muitos pensam que os policiais são contrários às câmeras porque querem fazer o que bem entenderem. Isso não é verdade. Somos submetidos ao Regime Militar, então qualquer ação que não condiga com o regulamento pode gerar uma punição com Pena Privativa de Liberdade, sendo essa ação crime ou não. O uso das câmeras nos causa desconforto, podendo retardar a ação do policial, pondo em risco a própria vida ou de outras pessoas”, completa o ex-agente.

Daniel Edler conta que em todos os países em que projetos como este foram implementados, o maior desafio é que os agentes aceitem totalmente o uso das câmeras, de forma ininterrupta ou não. “O principal mecanismo criado pela câmera corporal é o de dissuasão, é a ideia de que você evita que situações mais tranquilas escalem para uma mais tensa”, comenta. 

Marivaldo Pereira pontua que é comum que novas tecnologias causem certa resistência e, por isso, levam tempo para serem implementadas e aceitas, ainda mais quando são favoráveis também para os agentes policiais.

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