Por Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)
As cinebiografias musicais aplicam uma fórmula bem sucedida nas bilheterias. Inicialmente, o espectador acompanha a infância traumática do cantor; seguido pelo desenvolvimento de sua carreira, adicionada a dificuldades financeiras ou de aceitação pública. Após uma hora de filme, provoca-se um conflito generalizante que envolve drogas ou relacionamentos problemáticos com parceiros; e enfim, um desfecho com um momento icônico do artista. Por meio dessa estrutura, cria-se um protagonista caricato simplificado da figura pública, e as empresas cinematográficas arrecadam milhões ao longo desse processo.
Alguns poucos longas sobre cantores não utilizam esse ordenamento. Nesse caso, priorizam exibir um recorte da vida do artista. Essa opção é feita para retratar um determinado momento crucial da carreira dele. Exemplos dessa estrutura variada é Meu nome é Gal (2023) e Bob Marley: One Love (2023).
As cinebiografias musicais em prática
O filme Johnny & June (Walk the Line, 2006) compromete-se com uma manutenção fiel e exemplar da fórmula das cinebiografias. A história começa com Johnny Cash (Joaquin Phoenix), adulto, rememorando a infância no Arkansas, caracterizada pelos problemas com o pai, as colheitas na fazenda e a morte do irmão mais velho. No início de sua carreira musical, o desinteresse de um produtor sobre sua música gospel usual força-o a arriscar-se para ir além.
Ao desenrolar da obra, o protagonista trai a esposa com June Carter (Reese Witherspoon), o clássico interesse romântico que tira um sorriso do rosto do espectador. No entanto, apenas com a denúncia ao uso de drogas de Johnny, há-se o clímax do longa. Ao fim do filme, o protagonista desprende-se do ramo da fama e redime-se; o que corresponde aos moldes das cinebiografias musicais: uma infância conturbada, um sucesso meteórico, decadência na carreira e sua redenção.
À respeito do cinema nacional, por sua vez, a cinebiografia Elis (2016) também deixa a desejar. Seu início é caracterizado pela clássica cena de migração dos campos para a cidade grande — o Rio de Janeiro —, em busca da gravação de um disco. O filme esforça-se para homenageá-la a partir da bela cinematografia e as constantes composições originais da cantora, mas peca no roteiro.

A história e importância cultural de Elis Regina não foi desenvolvida propriamente diante da falta de tempo do longa. Percebe-se que houve uma escolha em proporcionar fatos específicos da sua carreira, e não uma experiência completa. Fica a cargo do público a responsabilidade de conhecimento prévio da história da cantora. A falta de uma narrativa coesiva e coerente culminou a 29% de aprovação do Rotten Tomatoes. O que sugere um descontentamento dos críticos em relação à incompreensível dinâmica de cenas estabelecida pelo filme.
Bohemian Rhapsody (2018) é o mais clássico exemplo dessa receita. Os diretores Dexter Fletcher e Bryan Singer mantêm a caricata “jornada do herói” para retratar a história de uma das maiores bandas de rock de todos os tempos. É por meio do enfrentamento de contratempos e redenção, que Freddie Mercury (Rami Malek) é perpetuado como um gênio da música, reduzindo os conflitos pessoais — tais como drogas e sexualidade — a apenas insinuações, com pequenos momentos de tela. O longa claramente pretendia homenagear Freddie Mercury com cenas icônicas das melhores músicas do Queen, como no desfecho em que reproduziram a última apresentação da banda no Live Aid.

Outras obras cinematográficas como Rocketman (2019), Elvis (2022) e Cazuza – O Tempo Não Pára (2004) também mantêm a mesma fórmula. Em tais casos, os conflitos dos filmes estão centralizados no uso de drogas e/ou relacionamentos abusivos com um personagem secundário problemático. Dessa forma, eles são capazes de transmitir uma mensagem moralizante ao público, contribuindo para a construção da imagem de mito do protagonista.
O papel das cinebiografias
Segundo Jonaedson Carino, professor na Faculdade de Educação e mestrando na UERJ, as biografias possuem uma função socialmente educativa, “podendo ser apreciadas no contexto de uma pedagogia do exemplo”, como descrito no artigo A biografia e sua instrumentalidade educativa. Logo, há uma intenção de escrever sobre tal vida com intuito de educar. Ele adiciona que “biografar é, pois, descrever a trajetória única de um ser único, original e irrepetível; é traçar-lhe a identidade refletida em atos e palavras; é cunhar-lhe a vida pelo testemunho de outrem; é interpretá-lo, reconstruí-lo, quase sempre revivê-lo”.
Essas ideias podem ser exemplificadas pela irreverente história do alemão Oskar Schindler, quem auxiliou na sobrevivência de milhares de judeus na Alemanha Nazista, em A Lista de Schindler (Schindler’s List, 1993). Ou o longa Belfast (2021), que ilustra os conflitos políticos e econômicos na Irlanda do Norte através da história de infância do cineasta Kenneth Branagh.
Carino aborda que a biografia é capaz de se tornar um instrumento de modelagem de conduta ao espectador, a partir de um personagem marcante. O modelo é formado por meio do seu caráter revolucionário, ou caricato. A partir de seus erros no conflito do drama, é possível distinguir a moral que se prescreve socialmente ao redor do viés do roteiro. Essa função educativa pode ser aplicada às cinebiografias musicais.

O protagonista
Pelo viés dos idealizadores do roteiro, o cantor é um gênio da sua geração. Seja uma figura problemática ou não, sempre representou um modelo que inspirou e influenciou o mundo da música como um todo. Para tanto, o filme compromete-se a apresentar uma homenagem ao artista.
Em entrevista aos Cinéfilos, a diretora cinematográfica Dandara Ferreira afirma que a produção de cinebiografias musicais “é querendo ou não, um olhar dos realizadores. Eu estou falando realizadores porque não é só o diretor, mas o ator que interpreta também. Uma recriação em cima desse personagem.” Com intenção de ter a sua cinebiografia, Gal Costa pediu que a amiga diretora realizasse uma ficção sobre sua vida. E assim, criou-se o longa sobre a gênese de Maria da Graça, de Gracinha à Gal Costa, denominado Meu nome é Gal.
Ao comentar sobre as inspirações da audiência com relação aos longas, Dandara diz que “a gente [a produção] já acaba trabalhando com personalidades [artistas] do imaginário popular; pessoas que já tem o interesse; que normalmente já tem conhecimento muito mais ligado ali na questão musical, questão artística, e o público conhece pouco da história desses nossos personagens. Então, acho que ele tem interesse em saber um pouco mais.” Entretanto, a diretora ressalta que os documentários sobre celebridades do âmbito da música não arrecadam grandes bilheterias, mas ficções, sim.
A representatividade nesses filmes é essencial para seu sucesso. Não trata-se de emocionar o público com sua identificação ao protagonista, mas de suscitar a nostalgia com uma representação fiel ao artista. Isso é propício a partir das roupas icônicas, as músicas populares em lip sync e cenas clássicas captadas antes em uma câmera antiga, agora nas telonas. Sobretudo, Dandara fala que o grande desafio para criar a narrativa é não limitar-se aos acontecimentos do artista de maneira superficial, pois implica na conexão com o público.

Quando perguntada sobre como é a criação do protagonista de uma cinebiografia musical, Dandara esclarece ser “um desafio muito grande para quem vai trabalhar com roteiro.” Ela aprofunda que “você também tem que trazer as fragilidades desse personagem […]. Porque não dá para só contar os grandes acontecimentos, grandes feituras, mas tem que trazer também as fragilidades […], você faz com que o público tenha mais empatia com seu personagem […].”
A tendência no cinema atual
As cinebiografias musicais na última década foram lançadas em grande proporção e receberam grande destaque pelo interesse do público, que lotou salas de cinema pelo país. Os longas com maiores bilheterias no Brasil de 2023 foram Meu nome é Gal — que arrecadou na primeira semana R$1,4 milhão; Nosso sonho – A História de Claudinho e Buchecha (2023), que arrecadou R$8,8 milhões; Mamonas Assassinas: O Filme (2023), que arrecadou R$9,7 milhões e quebrou recorde de bilheteria nacional.

Outros dramas musicais mundo afora arrecadaram bilheterias com índices benéficos. Straight Outta Compton – A História do N.W.A. (Straight Outta Compton, 2015) arrecadou US$201,6 milhões. Elvis arrecadou US$288,7 milhões. Sobretudo, Bohemian Rhapsody arrecadou US$910 milhões. A única cinebiografia que superou essa receita foi Oppenheimer (2023), com US$953,8 milhões.
Um grande atrativo desses filmes é a história do artista pronta. O que os roteiristas realizam é transformar essa narrativa em cinema. Dandara destaca que “a gente não pode mudar 100% da história, mas às vezes uma outra coisa baseado em cima da história dela. Tem que dar uma mexida para ter filme, […] ser interessante como narrativa, como estrutura dramática.”
No entanto, após grandes lançamentos bem-sucedidos, muitos críticos e fãs demonstram-se apreensivos com o futuro dessa tendência. Esse é o caso de Back to Black (2024), filme que decepcionou os fãs por contar uma história simplificada de Amy Winehouse, banalizando os relacionamentos complexos da artista.