Jornalismo Júnior

logo da Jornalismo Júnior
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Como a mídia afeta a relação cultural entre Brasil e Portugal

Conexão entre os dois países é marcada por influências e preconceitos, enquanto se torna mais próxima graças à internet
Sala de estar com televisão mostrando a bandeira de Portugal ao fundo e personalidades brasileiras como Lula, Ivete Sangalo, Pelé e Silvio Santos em primeiro plano.
Por Isabella Lopes (isabella.tomaz.lopes@usp.br)

Brasil e Portugal são nações irmãs e possuem um relacionamento de longa data, marcado por conflitos, confusões, violências e um sentimento de fraternidade ambíguo. Dos dramas das telenovelas às batidas do funk, das telinhas do streaming às páginas de livros, essa troca cultural continua clara na mídia e na internet. Porém, mesmo com essa redução nas barreiras, os brasileiros continuam a ser discriminados por seu modo de falar e conviver, além de seus hábitos e costumes.

Bandeira de Portugal à esquerda e bandeira do Brasil à direita.
A população brasileira constitui cerca de 30,7% dos estrangeiros em Portugal, segundo o governo local, e é grande alvo de xenofobia. [Imagem: Reprodução/Flickr]

Da telenovela ao Youtube

A chegada da cultura midiática brasileira teve como marco a estreia da telenovela “Gabriela”, em 16 de maio de 1977. A obra, que retrata os retirantes, a seca e a sociedade patriarcal baiana, fez tanto sucesso no país lusitano a ponto de assembleias políticas serem adiadas para que seus participantes pudessem acompanhar o desenrolar dos acontecimentos dramatizados. 

Os atores da novela se tornaram famosos no território europeu, influenciando, inclusive, a fala do público, que passou a utilizar os bordões das personagens no cotidiano. Esse fenômeno fez com que a ala mais conservadora portuguesa reclamasse de um certo “abrasileiramento” de seus costumes, idioma e comportamentos. 

Com o surgimento de canais pagos, novelas, telejornais e outros programas brasileiros — especialmente os produzidos pelo Grupo Globo — passaram a compor o dia a dia de Portugal. A Globo inicialmente vendia suas produções para a emissora estatal Rádio e Televisão de Portugal (RTP), mas em 1992 tornou-se parceira do canal aberto privado Sociedade Independente de Comunicação (SIC). Essa associação foi renovada em 2022 por mais seis anos e garante a exibição de pelo menos duas novelas da colaboradora por dia.

A presença de mulheres tipicamente do Brasil nas obras resultou na consolidação no imaginário europeu da identidade da brasileira sensual, calorosa e ótima para se relacionar. “As brasileiras são cativantes e muito sorridentes, enquanto as portuguesas são mais recatadas. Os homens ficam encantados com isso”, explica Suely Gouveia, brasileira ex-moradora de Portugal. O sotaque e a diferença de significados nas palavras são fatores que ampliam a aversão ao conteúdo brasileiro, especialmente pelo público mais velho, que é maioria no país.

De forma a retomar a portugalidade, visão nacionalista que busca mostrar como o português vive e encaixa-se no mundo, uma saída encontrada foi transformar as produções televisivas locais. Assim, as novelas portuguesas passaram por uma reformulação, com a criação de ambientes mais familiares, profissionais melhor preparados (muitas vezes, brasileiros) e mais qualidade nos roteiros e efeitos. 

O surgimento da internet caracteriza-se como um ponto de mutação para a ligação entre diferentes culturas e pessoas. Redes cada vez mais rápidas, novos aplicativos e tecnologias inovadoras — novidades que acompanham o processo de globalização —, auxiliaram na disseminação de conteúdos brasileiros, sejam eles infantis, de moda, de jogos ou informativos, facilitando o seu acesso. 

Iberê Thenório, fundador do canal Manual do Mundo, focado no ensino de ciência e tecnologia, afirma que os telespectadores portugueses são a maior audiência estrangeira do seu conteúdo, “com cerca de 2% da audiência, à frente dos Estados Unidos e de outros territórios que falam português, como Moçambique e Angola”. Além disso, a relação com esses fãs europeus é boa: o youtuber promoveu um encontro em Lisboa, no ano de 2015, e foi bem recebido na cidade.

Ibere Thenório dá autógrafos para dezenas de fãs em Lisboa.
Fãs portugueses do Manual do Mundo usam os comentários no canal para mostrar que o conteúdo atinge locais distantes. [Imagem: Reprodução/Instagram]

A influência é tão grande que crianças do país, sem parentesco com pessoas deste lado do Atlântico, começaram a falar como brasileiros, o que deixou pais e professores descontentes. Os conteúdos são principalmente relacionados ao público infantil, pré-adolescente e adolescente, produzidos por influenciadores digitais como Felipe Neto e Luccas Neto.

À esquerda, as palavras "relva", "rebuçado", "frigorífico", "autocarro" e "riscas". À direita, as palavras "grama", "bala", "geladeira", "ônibus" e "listras".
Algumas das principais palavras substituídas pelas crianças portuguesas. [Imagem: Isabella Lopes/Arquivo pessoal]

De acordo com Umberto Neto, professor de língua portuguesa formado pela USP, a população mais velha portuguesa é mais conservadora com as mudanças que ocorrem no idioma. Ela acredita que o “português correto” é aquele que segue a gramática normativa, sem contrações e formas coloquiais de se falar. “Estar aberto a mudanças vindas de um país como o Brasil é muito problemático. Estamos falando de um senso de superioridade de uma população europeia, com um racismo muito marcado”, nota o professor. 

“Os portugueses consideram o português brasileiro ou o brasileiro em geral como uma língua errada. Não é o português, é o brasileiro, a própria designação como um idioma novo já é diferente”

Umberto Neto, professor de língua portuguesa

Entre algumas medidas que os pais adotaram para evitar certas mudanças idiomáticas, consideradas gravíssimas, estão consultas a fonoaudiólogos, acesso à internet supervisionado, bloqueio a conteúdos brasileiros e defesa de medidas mais duras nas escolas.

Preconceito

Segundo balanço da Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial de Portugal, houve um aumento de cerca de 505% nas denúncias de xenofobia contra brasileiros no país, no período de 2017 a 2021. Nunca houve tantos brasileiros morando em Portugal quanto agora: os números se aproximam a 400 mil brasileiros em situação legal no país europeu, segundo pesquisa feita pela Agência para a Integração, Migração e Asilo, em 2023. Em um ano, o número de residentes legais aumentou em 36%.

Suely Gouveia, ex-moradora de Braga e de Guimarães, duas cidades lusitanas, relata que o preconceito é ainda maior quando se é uma mulher brasileira negra. “Tudo pode virar alvo de ofensas: desde o tipo de cabelo, o sotaque e o próprio fato de se identificar no gênero feminino. As portuguesas acreditam que moças vindas do Brasil vão para Portugal para ‘roubar marido’, já que são consideradas mais cativantes, sorridentes, ousadas e sensuais.”

Suely também afirma que muitas empresas nem consideram a contratação quando é um brasileiro que está à procura de emprego. O irmão e a cunhada dela, ambos formados como advogados, não encontraram trabalho em suas áreas de atuação: ele trabalha em uma loja de peças de automóveis para entrega e ela, em uma fábrica. 

Quando são contratadas, muitas pessoas nascidas no Brasil passam por falta de acolhimento, discriminação e vulnerabilidade. “Seus colegas de trabalho tratam os imigrantes com grosseria, dizendo que terão seus empregos roubados por gente de fora”, comenta Suely. Também são comuns casos de demissões sem aviso prévio, salários atrasados ou menores que os de nativos e recusas em firmar contratos.

A notoriedade que um indivíduo ganha graças à internet pode fazer com que ele não passe por situações de preconceito. “Fui três vezes a Portugal. Sempre fui reconhecido na rua pelo trabalho no Manual, tanto por brasileiros quanto por portugueses e nunca fui maltratado”, como lembra Iberê Thenório.

A ascensão da extrema-direita portuguesa é um aspecto que gera preocupações em muitos moradores vindos de fora do país. Em 2024, a Aliança Democrática (AD), formada pelos partidos de centro-direita Partido Popular (CDS-PP), Partido Popular Monárquico (PPM) e Partido Social Democrata (PSD), conquistou as eleições legislativas.

A terceira via na disputa, o Chega!, mais radical, foi o que obteve crescimento mais expressivo em relação ao apoio da população. Uma das principais pautas defendidas é contra a imigração, para “limpar” o país, diminuir a quantidade de impostos pagos pelo povo e driblar a crise imobiliária piorada pelas pessoas que não são originalmente de Portugal.

Líder do Chega! em púlpito escrito "Limpar Portugal".
Partido conquistou 48 das 230 cadeiras nas últimas eleições legislativas. [Imagem: Reprodução/Chega!]

A transformação do idioma

A história da língua que une Brasil, Portugal e outras nações lusófonas, ou seja, que falam o português, remonta a séculos atrás. Sua construção foi influenciada por idiomas como o latim, o árabe, o catalão, o castelhano e o galego, desde a expansão do Império Romano, em 3 d.C., até a consolidação do território lusitano, no século 15.

A propagação do que seria o “português arcaico” durou até o século 16, quando Luís Vaz de Camões escreveu a famosa obra “Os Lusíadas”, tematizada no contexto das navegações ultramarinas e da descoberta da rota para as Índias. A versão que chegou ao Brasil colonial estava em português clássico, o qual, após se associar com dialetos dos povos originários brasileiros, africanos e de outras culturas que chegaram a essa terra, deu origem ao modo falado atualmente no país.

Entre as variantes portuguesa e brasileira, existem algumas diferenças. A primeira delas acontece na prosódia, área da linguística que estuda a entonação, o ritmo e a influência de sotaques e outros atributos da fala na pronúncia de algumas letras. De acordo com Umberto Neto, os portugueses tendem a valorizar as regras que já regem o idioma enquanto se mostram fechados às mais recentes.

“Usar aquilo que foge do padrão não necessariamente é errado, porque a gente considera que a comunicação é mais importante. Se ela se torna efetiva, a parte do fio da língua que a pessoa usa, mesmo que não siga regras estabelecidas, pode ser aceita como certa” 

Umberto Neto, professor de língua portuguesa

Algumas dessas distinções estão nos pronomes pessoais. Em Portugal, a palavra “você” é pouco utilizada no cotidiano e dá lugar a “tu” e suas devidas concordâncias. Porém, seu plural é “vocês”, expressão usada de maneira natural. No Brasil, “você” é a forma mais utilizada e os verbos às vezes não são conjugados corretamente com o “tu”, de acordo com a norma padrão.

Outra diferença se dá no uso do gerúndio: no país europeu, a forma é extremamente rara. A frase “alguém está sorrindo”, por exemplo, tende a ser dita em Portugal como “alguém está a sorrir”, com o verbo no infinitivo. É um detalhe característico do modo de falar de quem está do outro lado do Atlântico. 

1 comentário em “Como a mídia afeta a relação cultural entre Brasil e Portugal”

  1. Márcio José Lopes

    Reportagem muito interessante e enriquecedora, pois saber como a mídia afeta a relação cultural entre Brasil e Portugal é algo muito atual e necessário para todos os brasileiros. Parabéns!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima