Por Bernardo Medeiros (bernardo10medeiros@usp.br)
Era um ritual constante. Eu acordava, fazia as minhas coisas e ia almoçar com a minha família. Depois de comer, enquanto os meus pais ainda estavam na mesa, eu começava a procurar no meu celular algum filme passando no cinema. Ilusões Perdidas (Illusions Perdues, 2022), Oppenheimer (2023) ou O Conde de Monte Cristo (Le Comte de Monte-Cristo, 2024). Eu enrolava o resto do dia, sabendo o que me esperava para o final da noite. Meu pai me chamava no quarto e falava que ia se arrumar. E eu ia tomar banho, colocar uma roupa bonita e arrumar o meu cabelo, tudo isso pra sair por algumas horas. Me sentia um aristocrata indo assistir a uma nova ópera. Enfim, a carruagem partia pela rua escura, silenciosa, a não ser pelo MPB que tocava no pen drive.
Posso jurar que conheço quase todos os cinemas de Brasília, porque sempre íamos em um diferente. O que eu realmente gosto é meio escondido: fica em um shopping sem movimento que também funciona como prédio comercial. As salas ficam no segundo andar. Elas são pequenas, fundas e íntimas. A pipoca não é exageradamente cara e tem gosto de pipoca normal, não aquelas do Cinemark ou do Cinesystem. E só vai velho lá, o que é, de certa forma, muito bom. Eu apagava da minha mente as ansiedades de adolescente e entrava na sala escura com a leveza de uma criança.
As luzes se apagam, o projetor brilha e os comerciais começam. Meu pai murmura uma coisa ou outra sobre o filme, com a sala já em silêncio. Normalmente, a presença de outra pessoa me tiraria do sério. Mas aqueles momentos com o meu pai eram tão íntimos e pessoais que estar junto dele ali era uma experiência agregadora. Não é a mesma coisa de ver um filme com os amigos, esses sim, podem ser muito barulhentos. Ou ir com o namorado ou a namorada em um encontro, até porque aí as coisas se tornam muito pessoais. E ir sozinho, bem, sempre é uma boa opção, mas, ao longo do tempo, ela se revelou não ser a melhor. Estar ali com ele, de alguma forma, era como estar comigo mesmo.
Não sei se é pela forma como nós somos, tão parecidos. Mas, no escuro da sala, eu me sentia perdido e ao mesmo tempo guiado. Rir quando ele ria, ver aquela felicidade tão genuína, sentir quando ele dormia e prever a crítica: “o começo é muito bom mas o filme fica lento”. De alguma maneira, eram sessões de cinema em que eu via a mim mesmo, e não apenas o filme. Éramos os melhores atores daquela projeção: eu fingindo ser cada vez mais ele e ele fingindo cada vez mais ser uma criança. Também me sentia um intruso, me embrenhando pelas memórias daquele homem, que reconheci assim, como um homem, por toda minha vida. Só que, naquele momento, ele era um adolescente, como eu, vendo a nova estreia de Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, 1981) em algum cinema de rua do Recife.

As luzes acendem, esperamos quase até o fim dos créditos e saímos da sala, em silêncio. Ficava assim, até algum comentário ou outro. Se o filme era bom, ele recebia poucos elogios, pouca saliva gasta. Um filme ruim era sempre ignorado, geralmente porque meu pai dormia no meio e não tinha nada a comentar. Agora, um filme excelente, bom mesmo, era sempre uma alegria. Ainda me lembro quando vimos A Substância (The Substance, 2024): a sua felicidade vendo o filme, as risadas contidas mas genuínas, o choque e a surpresa. Na volta, ele ficou o caminho inteiro gracejando a obra, extasiando essa peça de exageros descomedidos. Era uma criança maravilhada. E, nesses momentos, eu não tinha mais opinião, nem queria tê-la. Se me perguntarem o que eu achei de A Substância, simplesmente responderei: “ótimo, maravilhoso, divertidíssimo”.
Arriscava a minha opinião uma vez ou outra, quando ele não comentava nada e eu ficava impressionado com o que via. Lembro como fiquei após ver Oppenheimer, completamente seduzido por aquele sentimento surreal e épico de ver um filme do Christopher Nolan projetado na tela do cinema. Não lembro exatamente o que eu disse ao meu pai, apenas que comparei o filme com Interestelar (2014). Com certeza, foi uma visão única. Ou, mais recentemente, quando vimos O Conde de Monte Cristo, minha opinião foi de “amor à primeira vista”, mas meu pai, bem, não tinha dormido muito no dia anterior, e o filme tem três horas. Ele não teve muitas opiniões.
As melhores sessões, no entanto, eram aquelas polêmicas. Filmes que todos julgam ruins, mas meu pai adorava e eu acabava concordando. Por exemplo, Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie À Deux, 2024) e Megalópolis (Megalopolis, 2024), dois filmes indicados à Framboesa de Ouro, a premiação que agracia as piores obras e artistas de cada ano. Não há argumentos que eu possa usar aqui para defendê-los, e, de fato, talvez não sejam obras-primas. Mesmo assim, não consigo me convencer de que ter visto esses filmes com ele tenha sido perda de tempo. Ainda mais quando ele abria a boca para começar a sua crítica. Veja bem, não é apenas por orgulho que falo isso, mas meu pai daria um tremendo crítico de cinema.
Voltando para casa, chega uma das melhores partes. Paramos, como de costume, no drive-through de um McDonalds. Peço um combo do Big Mac, fritas médias e milkshake de chocolate. Vou bebericando e comendo batatinhas no caminho, não tão longe, entre o restaurante e a minha casa. Chegando lá, coloco tudo em cima da mesa e troco o pacote de batata que comi pelo pacote intocado do meu pai. Culpado? Eu sei. Com muita felicidade, escondido de remorso, devoro o meu jantar, sabendo que não me sentirei nada bem quando acordar às seis horas da manhã para a aula do dia seguinte. A casa está vazia, as luzes, fracas e amarelas, e um silêncio descomunal resiste, envolto do clima ameno da madrugada que chega. E, o mais importante, uma cabeça vazia.
Daria tudo para ir ao cinema com meu pai esse final de semana. Mas agora ele está longe, a uns 1000 km. É a distância entre São Paulo e Brasília, não se preocupe. A Terra e o Céu estão ainda mais longe. Mesmo assim, vou ficar um tempo sem a sua companhia, pois, ano passado, ele fez uma promessa de ficar um ano inteiro sem ir ao cinema. Eu não entendi. Foi como um colapso. É engraçado, ele me contou com uma certa seriedade, mas quem realmente levou o tombo fui eu. Ainda não entendo. Sempre o vi mais feliz dentro de uma sala escura com um projetor ligado, e talvez nunca tenha me sentido tão abalado pelas penitências de outra pessoa. No entanto, a verdade é outra. Sabia que, naquele momento, ele ficaria um ano sem ir ao cinema, mas também entendi que, a partir daquele momento, eu ficaria um ano sem ir ao cinema com ele.
*Imagem da capa: Reprodução/Wikimedia Commons