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Mineração urbana

Hoje fizemos mais uma busca por coisas de valor no último turno. Sem sucesso. Trouxe um tipo de caderno que encontrei. Finalmente algo diferente de plástico.

Por Nathalie Rodrigues (nathalie.rodrigues@usp.br)

Sinceramente, acho que esse caderno só foi conservado por estar envolto em muito plástico e em uma caixa de mesmo material. Se não foi isso, devem ter jogado lá de cima por estar ocupando espaço. Parece ser um diário que provavelmente foi esquecido ao longo dos anos. As folhas estão amareladas e soltando, talvez eu tenha ainda mais dificuldade para lê-lo por estar em português antigo. Mas, pior que a dificuldade, é a falta de coragem para isso.

As datas estão marcadas com desenhos de flores entre o dia, mês e ano e não consigo compreender as palavras manchadas pelo tempo. Pelos desenhos de uma das páginas, sei que aquela anotação é sobre um dia de pescaria. Então realmente havia peixes nos rios. Não continuarei a leitura. A marcação em relevo da capa diz que é de 2024, há exatos 200 anos. Não terei coragem para encarar um mundo em que ainda era possível fazer algo. E não pela última vez, a humanidade não fez nada — ou melhor, fez tudo o que não devia.

Ainda era possível entrar no mar. De certa forma ainda é, mas com muitas restrições. Depois de tantos acidentes petrolíferos ao longo da história, na década de 2140 quase todos os animais marinhos que foram ameaçados de extinção já eram declarados como extintos em pouco tempo. Claro, a intoxicação dos oceanos não foi totalmente culpa do petróleo, o micro e o nanoplástico deram conta de asfixiar e contaminar grande parte do restante de sobreviventes marinhos. A acidificação extinguiu várias espécies de moluscos, mariscos, algas e corais, mas o aumento da média de temperatura deve ter sido o ápice do massacre.

Nunca entrei no mar. Queria entender como era essa sensação de colocar os pés diretamente na areia e sentir a água fria na pele, sem me preocupar em como a toxicidade poderia me prejudicar. Os informativos que ficam em cidades costeiras pedem distância das praias. Aquelas que já cobriram parte da região urbana são apelidadas pelos habitantes daqui de Cidades Marinhas

O primeiro e último animal marinho que vi estava morto em uma delas. Lembro que consegui me enfiar na multidão que assistia a retirada do cadáver de um lugar que parecia ter sido um telhado, uma operação cautelosa de funcionários da prefeitura. Foi uma surpresa para todos o fato de ainda ter um espécime daquele vivo perto de uma praia — até aquele dia. 

Ouvi dizer que uns séculos atrás os cientistas sabiam mais sobre o espaço do que os oceanos do próprio planeta. Sempre achei que esse era o motivo de terem-no abandonado para colonizar Marte. Parece que hoje é tarde demais para recuperá-lo, então tratam tudo e todos que ficaram aqui como doentes terminais em cuidados paliativos.

A questão é que tem muita gente. Mais ou menos na época dos meus avós a humanidade começou a ser segregada (o governo odeia que usemos esse termo). A população cresceu exponencialmente e a desigualdade social era tão gritante que todos foram divididos em quatro classes: os ricos, que vivem nas Cidades Orbitantes; os quase ricos, colonizadores de Marte; os operários, que são a mão de obra pouco qualificada dos dois planetas; e a massa, que é a população que sobra nesse sistema e permanece na Terra, onde estou. Não temos moradia própria, saneamento básico, nem água e comida o suficiente. Os recursos são escassos e muito caros há algumas décadas. Desde que me entendo por gente o mundo é assim, e ainda não cheguei aos meus 50.

Quantos anos a pessoa que escreveu este diário viveu? Será que ela imaginava que suas memórias chegariam tão longe? Qual era a expectativa de vida na época? Bom, se eu chegar definitivamente aos 50 já estarei ultrapassando muito a expectativa atual daqui. Talvez a pessoa desse diário soubesse da aproximação daquele cometa em 2014, quando pela primeira vez a humanidade conseguiu pousar em um. Se teve a oportunidade, poderia até tê-lo visto no céu. E se esse pedaço de rocha tivesse consciência, estaria decepcionado com o que viu aqui quando retornou há oito anos. Eu estou.

Depois que as florestas desapareceram para dar espaço a plantações e moradias, muitas doenças surgiram. A Ana, uma moça gentil que trabalha na classe operária, me explica essas coisas. Às vezes me parece que ela é ativista, mas não gosto de pensar isso. É crime e ela poderia ser presa. Mas é interessante saber que tudo isso era previsto e poucos esforços foram feitos para impedir. No norte do país, onde existia boa parte da Amazônia, hoje é um lugar insuportavelmente quente e seco, em processo de desertificação. O sudeste do país ainda é frio, mas o ar também é seco, o que é intensificado pela poluição. 

Na verdade, a qualidade do ar de todo o planeta piorou depois do desmatamento da floresta. Disseram que os níveis de dióxido de carbono estão mais elevados, já que há poucas árvores para absorver o excesso, o que também justifica o calor intenso seguido de chuvas torrenciais em todos os lugares. 

Por causa da péssima qualidade do ar, o governo instalou purificadores em locais fechados, mas ainda assim, grande parte da população continua morrendo de doenças respiratórias. A maioria já está fadada à morte logo no diagnóstico, pois um tratamento decente com cilindros de oxigênio é um luxo que ninguém aqui consegue pagar.

Existiam geleiras nos pólos antes de tudo isso, mas não suportaram o calor. Ana me disse que esse era o sinal mais visível de que o planeta precisava de ajuda, e os líderes mundiais assinaram acordos e tratados com metas para diminuir a emissão de CO2 na atmosfera, além de outros gases do efeito estufa. No fim, poucos levaram a sério essa missão.

Acho que se alguém tivesse que ler esse diário, seria ela. Ana tem o desconforto que sumiu de todos nós. Ou melhor, a esperança. Não tenho descendentes por opção — e considerando as condições atuais, por bom senso —, mas se eu tivesse uma filha, me orgulharia se fosse como ela. Embrulharia esse caderno velho para deixar de herança. “A única coisa realmente valiosa que já encontrei nos escombros”, eu diria. Ironicamente, o embrulho seria de plástico, o material quase quadricentenário seria usado para nos salvar dessa vez. 

“Salvação”… Será que o choque dessas memórias fariam as pessoas mudarem? Tenho certeza de que as outras classes vivem realidades completamente diferentes e talvez nem imaginem como é a vida por aqui. Acho que estou velha demais para pensar sobre isso e esperar algo. Mais um motivo para entregar esse fardo à Ana. 

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