Abará, acaçá, feijoada, vatapá, mungunzá. Talvez você já tenha escutado ou até experimentado algumas dessas iguarias da culinária afro-brasileira. Reconhecida pelo seus temperos fortes e uso de ingredientes como o dendê, a tapioca, a pimenta e o coco, essa cozinha é muito rica em suas diferentes técnicas de preparo, que se relacionam diretamente com as origens histórico-culturais do país.
Cozinha como tradição cultural
Em 2004, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) reconheceu a importância dos saberes tradicionais que constituem o ofício das baianas de acarajé, e o registrou como patrimônio imaterial. O acarajé, famoso representante da culinária afro-brasileira, é um exemplo do relacionamento estreito que essa cozinha guarda com a cultura.
O bolinho, que tem registros de origem na Nigéria e cujo nome original é “akara”, era vendido nas ruas das cidades pelas escravas de ganho. Obrigadas pelos escravocratas a vender iguarias em tabuleiros, muitas vezes elas conseguiam formar economias as quais empregavam em cartas de alforria.
A técnica de preparo desse prato, usada como forma de sustento de muitas mulheres chefes de família após a abolição, foi transmitida de mãe para filha através dos séculos e demonstra a importância da oralidade e da ancestralidade para a formação de saberes culturais.
É o que diz Aissa Guimarães, pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Espírito Santo (NEAB-UFES), em entrevista à Jornalismo Júnior: “Muitos desses conhecimentos foram e são perpetuados no seio das relações familiares por meio da transmissão oral, isto é, da vivência e da convivência, e assim ocorreu durante todo o processo histórico de formação do Brasil. Embora os conhecimentos afro-brasileiros tenham sido negados e invisibilizados pela cultura hegemônica, eles persistem na sociedade brasileira”.
Os conhecimentos culinários trazidos da África vão desde a introdução de novos ingredientes, tais quais a pimenta malagueta e o azeite de dendê, até modos de preparo e técnicas de cozimento. Sobre isso, o antropólogo e babalorixá Vilson Caetano lembra que “muitas vezes não nos damos conta de que esses homens e mulheres africanas eram pessoas profundamente conhecedoras de suas culturas e de outras terras com as quais o continente africano dialogou.” Vilson ainda destaca que nunca se fala que os africanos já conheciam as especiarias como o cardamomo e o açúcar. “O fato dos africanos conhecerem esses elementos, de que já dominavam técnicas como saltear, torrar, cozinhar no vapor e flambar, possibilita que intervenham de forma positiva nessa culinária que foi formada aqui”.
A culinária autêntica do Brasil
A culinária formada no Brasil pode ser considerada como uma amálgama de várias outras cozinhas: indígena, italiana, portuguesa e africana. Por isso, alguns estudiosos indicam que não é possível falar em uma culinária unicamente brasileira.
De acordo com Aissa Guimarães, “a culinária brasileira é riquíssima — não é única, ao contrário, se diversifica em cada região em função dos alimentos próprios de cada local e das diferentes tradições culturais que se perpetuam; de modo que numa mesma região podemos ter variadas formas de alimentação, seja na preparação, combinação ou consumo dos alimentos”. Já o professor Vilson Caetano complementa ao afirmar que a genuinidade da culinária do país está justamente em sua origem a partir do diálogo entre as várias matrizes culturais que aqui exerceram sua influência.
A contribuição africana já se inseriu de forma tão eficaz no imaginário cultural brasileiro que muitos arriscam falar em um “sincretismo cultural”, ou seja, a união de elementos de diferentes culturas que formam uma nova por diferentes processos antropológicos. Neles geralmente há um grau de hierarquização ou subjugamento envolvido.
Por isso, Aissa alerta que “a culinária afro-brasileira é principalmente uma representante de culturas negras no Brasil, que foram sendo aceitas e apropriadas por outras parcelas da população, e pouco a pouco ganharam maior abrangência. Mas penso ser cada vez mais importante não generalizar, afinal a herança afro-brasileira é patrimônio das populações negras”. Vilson Caetano prefere o uso da palavra “diálogo” para caracterizar esse processo, já que para ele, “quando se fala em sincretismo a gente sempre pensa em sobreposição, em dominação, em adaptação”.
Comer e rezar
Outro viés de influência na construção da culinária brasileira — em especial a cozinha afro-brasileira — é a religiosidade. Inúmeros pratos possuem ligações com tradições religiosas de matriz africana.
O acaçá, por exemplo, bolinho de milho macerado em água fria e depois moído e cozinhado na folha de bananeira, faz parte do ritual do candomblé e todas as cerimônias são realizadas com a sua presença. Já o ado é feito de milho torrado e moído, que é misturado com azeite de dendê e mel. Ele também faz parte da ritualística do candomblé, e é ofertado especialmente a Ogum e Oxum.
Em relação a isso, o babalorixá Vilson Caetano lembra que a religiosidade teve papel fundamental na preservação desses saberes culinários, visto que foram e são repassados até hoje através da tradição oral. Devido a seu caráter ancestral, de conexão de um povo com suas raízes, “o processo de preservação dessa cozinha, a chamada cozinha ritual dos terreiros de candomblé, cozinha votiva ou cozinha sacrificial teve papel fundamental porque nos terreiros, o cuidado, a escolha, o modo de preparo vão aparecer associados a ancestralidade”.