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De Alien a Lady Bird: A construção do feminino no cinema

No clássico de ficção científica Alien – o oitavo passageiro (Alien, 1979), Sigourney Weaver interpreta a amada heroína Ripley, a última sobrevivente da espaçonave USCSS Nostromo. Ripley é forte, decidida e segue um código de ética muito definido em que prioriza a proteção de seus colegas de bordo. Além disso, é extremamente inteligente, conseguindo derrotar …

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No clássico de ficção científica Alien – o oitavo passageiro (Alien, 1979), Sigourney Weaver interpreta a amada heroína Ripley, a última sobrevivente da espaçonave USCSS Nostromo. Ripley é forte, decidida e segue um código de ética muito definido em que prioriza a proteção de seus colegas de bordo. Além disso, é extremamente inteligente, conseguindo derrotar a vida alienígena. 

Ripley foi escrita originalmente como um homem.

O diretor do filme, Ridley Scott, mudou o gênero da personagem após Alan Ladd Jr., o então presidente da 20th Century Fox, distribuidora do filme, dizer: “Por que Ripley não pode ser uma mulher?”.

E, realmente, por que não?

No microcosmo composto pelos oito tripulantes da USCSS Nostromo, gênero não é um fator influente na caracterização dos personagens: todos foram escritos da mesma forma. Embora essa seja uma forma interessante de abordar a história e tenha canonizado uma das maiores heroínas do cinema, quando se trata de filmes que buscam maior proximidade com a realidade, o gênero, querendo ou não, é um fator de influência. 

 

Sigourney Weaver como Ripley, personagem feminino, segurando um gato, no filme Alien - o oitavo passageiro. Ela faz parte do grupo de mulheres em filmes que foram incialmente escritas como homem. [Imagem: Divulgação/20th Century Studios]
Sigourney Weaver como Ripley no filme Alien – o oitavo passageiro [Imagem: Divulgação/20th Century Studios]

Como a nossa sociedade ainda é submetida ao patriarcado, as vivências de homens e mulheres são diametralmente opostas. E quando se trata de Hollywood, uma indústria cheia de preconceitos na qual mulheres dificilmente têm vez na cadeira de diretoras, a abordagem de personagens femininos no cinema muitas vezes é falha. Vemos isso nos grandes clichês: temos a femme fatale, a manic pixie dream girl… são arquétipos que não correspondem a realidade feminina e, muitas vezes, não passam de projeções do desejo masculino.

Outras vezes, porém, os diretores acertam a mão. Esse foi o caso de Ripley e tantas outras, que irão ser exploradas neste texto do Cinéfilos.


Mudanças ao longo dos anos

Embora a noção dicotômica de personagens que são apenas ‘bons’ ou apenas ‘maus’ já tenha sido superada há tempos, seja no cinema ou em livros e séries, às vezes, permanece entre a audiência a sensação de que alguns personagens não são verossimilhantes o suficiente. Não são complexos, não contêm tanto o bom quanto o mal que habita em todos nós, não são a contradição ambulante inerente de ser humano. 

Muitas mulheres retratadas no cinema seguem esse padrão nocivo, que reduz suas questões internas. Este, felizmente, não é o caso da icônica Céline, interpretada por Julie Delpy, na trilogia que compreende os filmes Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995), Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) e Antes da Meia-Noite (Before Midnight, 2013).

Conhecemos Céline com vinte e poucos anos, cheia de idealismos e emoções que tenta decifrar ao longo do dia que passa ao lado de Jesse (Ethan Hawke) sem rumo por Viena. O filme não limita-se aos grandes gestos de amor, comuns em romances, mas foca na conversa entre o casal, que discute relações amorosas e familiares, arte, gênero, cultura e ciência.

 

Céline em Antes do Amanhecer. [Imagem: Divulgação/Columbia Pictures]

Os depoimentos de Céline dão vida ao filme, que convida o telespectador a enxergar as coisas como ela, muitas vezes de perspectivas que eram desconhecidas. Ela fica animada falando de seus pontos de vista e frustrada quando sente que não consegue expressar o que sente e como pensa.

Algo que pode ter colaborado para a veracidade que a personagem Céline passa à audiência é o fato de que o primeiro filme da franquia foi inspirado em um evento real. Richard Linklater, o diretor, conheceu Amy Lehrhaupt em 1989 e, tal como Jesse e Céline, os dois passaram um dia inteiro juntos, conversando. “Ela é a inspiração de tudo isso”, contou Linklater ao New York Times.   

Após aquele único dia juntos, Jesse e Céline se separam e se reencontram 9 anos depois, dessa vez em Paris, onde se passa Antes do Pôr-do-Sol. Eles passam outro dia juntos e percebem que a conexão que partilharam em Viena continuava lá, possivelmente mais forte do que nunca. Vemos uma outra faceta de Céline, mais preocupada e neurótica com a vida adulta, com alguns idealismos já abalados e mais consciente de sua própria confusão interna. 

Mesmo com uma dose de romantização ainda presente, Céline parece cada vez mais real e, por consequência, mais apaixonante e encantadora nos olhos do público — e de Jesse.     

Mas, possivelmente, o mais realístico e interessante da franquia é Antes da Meia-Noite. Neste filme, Céline, hospedada com Jesse na casa de um escritor na Grécia, está menos preocupada com questões filosóficas abstratas e dá uma maior importância a algo que nunca havia sido abordado intensamente na trilogia: o que significa ser mulher. 

Agora dentro de um casamento, Céline vê como, em seu cotidiano, tem de abdicar mais coisas do que seu marido. A rotina havia naturalizado essa disparidade que, apesar de não ser tão grande quanto em outros casamentos, está sempre presente. 

 

Céline, 18 anos depois, em Antes da Meia-Noite. O personagem feminino está sentado no banco passageiro de um carro. [Imagem: Divulgação/Sony Pictures Classic]
Céline, 18 anos depois, em Antes da Meia-Noite. [Imagem: Divulgação/Sony Pictures Classic]

O clímax do filme acontece em um quarto de hotel: o que era para ser uma noite romântica, sem filhos e outras obrigações, logo se torna um divisor de águas do casamento. Jesse quer conversar sobre se mudar para os Estados Unidos — o casal vive em Paris — com o objetivo de ficar mais próximo do filho do casamento anterior. O momento não poderia ter sido pior. Céline havia acabado de ser oferecida um emprego que almejava há tempos.

Durante a discussão, Céline argumenta que ela deve à todas as mulheres que lutaram por mais igualdade de gênero (olha a idealista Céline de 20 anos aí!) não abdicar de suas ambições para seguir o marido. Jesse logo diminui a vivência de Céline como mulher. Para ele, não há como ela ter sofrido opressão crescendo como uma parisiense de classe média. 

É uma briga feia. Daquelas que podem colocar o casamento em cheque ou fortalecer ainda mais o casal. Coisas terríveis são ditas de ambas as partes, é impossível não simpatizar tanto com Jesse quanto Céline e é isso que torna Antes da Meia-Noite um filme tão bom. 

A trilogia de Linklater passa por amor, perda e reconstrução. Jesse e Céline são personagens tão complexos quanto qualquer ser humano. Ela não passa o filme na sombra dele — muito pelo contrário. Citando Patrick (Walter Lasselly), o escritor que hospeda o casal na Grécia: 

“Quando eu o vi [Jesse] pela primeira vez no aeroporto, eu pensei ‘um homem vestido desse jeito não pode ser um escritor!’. Mas agora acho que aprendi o seu segredo. Convidamos muitos escritores nos últimos anos, mas nunca um que tivesse uma esposa mais interessante do que ele.”

Falando mais sobre mulheres sob a ótica de Richard Linklater, é impossível não mencionar a mãe solteira Olivia, em Boyhood: Da Infância à Juventude (Boyhood, 2014). Patricia Arquette, que interpreta a personagem, levou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel.

Apesar do filme focar no crescimento do filho dela, Mason Jr. (Ellar Coltrane), as dificuldades da maternidade são retratadas sem amenizações e são um dos fios condutores da trama.

De início, Olivia está criando duas crianças sozinhas, porque o pai, Mason (Ethan Hawke) ainda não “está pronto para ser pai”. Ela também não tinha idealizado ocupar o papel de mãe tão cedo e acaba deixando de lado suas maiores aspirações profissionais por um tempo e lidando com as esporádicas visitas do pai, que são aquele clichê da realidade: muita diversão e muitos presentes… por apenas um dia. É fácil amar e criar apenas por um dia.

Tanto Mason Jr. e sua irmã, Samantha (Lorelei Linklater), quanto Mason, vão amadurecendo e o pai decide voltar a ser mais presente na vida dos filhos. À certa altura, ele próprio constituiu uma nova família, com esposa e filho. Ele seguiu seu tempo ideal, mas Olivia não pôde se dar esse luxo. 

 

Olivia do filme Boyhood. O personagem feminino está deitada na cama lendo uma história de ninar para Mason Jr. e Samantha. [Imagem: Divulgação/IFC Films]
Olivia lendo uma história de ninar para Mason Jr. e Samantha. [Imagem: Divulgação/IFC Films]

No decorrer do filme, o público vê Olivia entrando em relacionamentos abusivos e tendo força para sair deles, mas não sem muito sofrimento e resiliência. Vê também o desenvolvimento de sua carreira, em que ela finalmente encontra uma realização pessoal além da maternidade. Mas a cena mais impactante é com certeza ao final do filme: quando chega a hora de deixar o caçula, Mason Jr., na faculdade. Ela atinge o ápice de sua vulnerabilidade e, todos nós, como filhos, somos lembrados que nossas mães e nossos pais são pessoas individuais, aprendendo, errando, sentindo e necessitando de aprovação e amor tanto quanto qualquer outra pessoa.

Para interpretar Olivia, Arquette usou de sua própria experiência. À semelhança da personagem que interpreta, a atriz também ficou grávida muito cedo e construiu uma carreira posteriormente. Outro aspecto interessante de Boyhood é que o filme foi gravado ao longo de 12 anos e, da mesma forma que vemos as crianças crescerem ao longo da trama, vemos Arquette envelhecendo, sem vaidade. Tudo isso deixa o filme ainda mais autêntico e, apesar de Olivia não ser a protagonista, é com certeza uma das personagens mais interessantes e bem construídas.  

A maternidade em Boyhood não é glamourizada, e vemos como o famoso “coração de mãe” também precisa de algo em retorno.


Ocupando ambientes ‘masculinos’

Outra personagem que tem a sua trajetória diretamente influenciada pelo gênero é Clarice Starling (Jodie Foster) em O Silêncio dos Inocentes (Silence of the Lambs, 1991). 

Buscando informações sobre o novo serial killer à solta, Starling, agente do FBI, se encontra em uma briga de gato e rato com o ex-psiquiatra e atual homicida canibal Hannibal Lecter. Cada um está constantemente tentando manipular o outro, e Lecter se “afeiçoa” por Clarice, entre outros motivos, pelo seu cheiro. 

Toda a força de Clarice vem de sua sensibilidade. O título original do filme, que em tradução livre é “o silêncio dos cordeiros”, revela isso: quando criança, após perder o pai e se mudar para uma fazenda de familiares, Clarice foge durante a noite, levando um cordeiro que iria ser abatido. Como tinha pouca idade, a fuga acabou falhando, e o destino do cordeiro continuou o mesmo. Sendo agente do FBI, Starling queria o mesmo de quando era mais nova: salvar os inocentes, impedindo-os de serem silenciados. 

 

Jodie Foster como Clarice Starling [Imagem: Divulgação/Orion Films]
Jodie Foster como Clarice Starling [Imagem: Divulgação/Orion Films]

Apesar de a sensibilidade feminina de Clarice ser uma das coisas que atraiu Hannibal, o que O Silêncio dos Inocentes faz de mais incrível é mostrar como é ser uma mulher dentro do FBI, um ambiente esmagadoramente masculino. 

Em praticamente todas as áreas de trabalho, há uma grande disparidade salarial entre homens e mulheres, mesmo ocupando as mesmas funções. Além disso, o assédio moral e sexual é algo muitas vezes naturalizado no dia-a-dia profissional das mulheres. Na película em questão, isso é ainda mais forte, já que Clarice trabalha em uma área dominada por homens. 

 

Starling após um treino do FBI, sendo uma das únicas mulheres da equipe. Na imegm ela está em elevador rodeada de homens. [Imagem: Divulgação/Orion Films]
Starling após um treino do FBI, sendo uma das únicas mulheres da equipe [Imagem: Divulgação/Orion Films]

Durante a trama, a câmera faz movimentos que simulam a visão de Clarice. A caminho do primeiro encontro com Hannibal Lecter, o diretor do sanatório e carcereiro de Lecter, Dr. Frederick Chilton (Anthony Heald), dá em cima de Starling mesmo após recusas da agente, deixando-a constrangida. Esse desconforto transparece para a audiência pela sensação de enclausuramento que a câmera dá, filmando Chilton de perto.

 

Anthony Heald como Dr. Frederick Chilton em O Silêncio dos Inocentes. Ele dá em cima de Starling (e de outras mulheres) mesmo após recusas da agente, deixando-a constrangida[Imagem: Divulgação/Orion Films]
Anthony Heald como Dr. Frederick Chilton [Imagem: Divulgação/Orion Films]

Clarice tenta sair daquela situação pela qual já passa rotineiramente, mas custa para conseguir. O diretor finalmente desiste, mas não aceita a rejeição.

Combinada com essa frustração, há a sensação mesquinha de inveja: Starling rapidamente consegue fazer Hannibal falar, coisa que Chilton tentava fazer há séculos, sempre falhando. Vendo uma mulher fazer seu trabalho bem melhor do que ele, e ainda mais uma mulher que lhe rejeitou, Chilton faz de tudo para arruinar os planos de Starling — mesmo que isso signifique comprometer a investigação da agente. 

Já no final do filme, Clarice confronta o serial killer que buscava, o Buffalo Bill. O homicida apaga as luzes, cegando Starling, mas continua a vê-la por um óculos de visão noturna.

Ele a observa por muito tempo, se debatendo e tentando tatear as paredes, em um jogo sádico. 

 

Um dos maiores momentos de tensão em O Silêncio dos Inocentes, Starling se sentindo impotente no escuro, em confronto com o assassino em série Buffalo Bill [Imagem: Divulgação/Orion Films]
Um dos maiores momentos de tensão em O Silêncio dos Inocentes, Starling se sentindo impotente no escuro, em confronto com o assassino em série Buffalo Bill. [Imagem: Divulgação/Orion Films]

Neste momento, Clarice parece o que todos esperam dela: indefesa, sendo observada por homens com intenções de voyeur, que no fundo só querem vê-la falhar para terem suas superioridades comprovadas. Contrariando todas as expectativas novamente, porém, Starling usa a sua inteligência e sensibilidade para sair por cima.


A arte de retratar o amadurecimento: filmes
coming-of-age

Mulheres encontraram um lugar privilegiado de participação em filmes do gênero coming-of-age, que enfatiza a passagem da juventude para a vida adulta. Além de muitas vezes os filmes terem protagonistas femininas, a direção também é com frequência feita por mulheres.

Greta Gerwig, que tem ganhado cada vez mais reconhecimento em Hollywood, por si só já é responsável por três filmes coming-of-age de sucesso: Adoráveis Mulheres (Little Women, 2019), Lady Bird: A hora de voar (Lady Bird, 2017) e, esticando um pouco o conceito, Frances Ha (Frances Ha, 2012), que roteirizou junto de seu marido, o também diretor Noah Baumbach, e protagonizou.

Em Lady Bird: A hora de voar, conhecemos Christine (Saoirse Ronan), que insiste em ser chamada por ‘Lady Bird’. O foco do filme é a relação que tem com a mãe e a necessidade universal de se impor para poder de fato crescer. Uma das grandes contribuições que filmes como Lady Bird fazem para a construção do feminino no cinema é colocar a vida romântica dos protagonistas como algo importante (porque é para todo mundo), mas não como o foco da trama.

A Lady Bird, apesar de passar por sua cota de namorados durante a película, e ter sofrido com eles, não os coloca como o centro de sua vida, e sempre supera. Vemos isso quando a personagem escreve o nome dos garotos na parede do seu quarto, mas sempre acaba riscando-os posteriormente. 

 

Ladybird escreve o nome dos garotos na parede do seu quarto, mas sempre acaba riscando-os posteriormente. A imagem mostra dois nomes de garotos que o personagem feminino já riscou. [Imagem: Divulgação/A24]
[Imagem: Divulgação/A24]

Fundamentalmente, Lady Bird busca aceitação sem ter que abrir mão de quem ela é — de quem ela escolheu ser: não Christine, mas Lady Bird. A hesitação de sua mãe em lhe chamar assim e em aceitá-la torna o relacionamento das duas complexo e Lady Bird, apesar de cometer inúmeros erros, sempre busca ser corajosa e verdadeira consigo mesma.

Outros filmes vão na mesma linha de Lady Bird, como Quase Dezoito (The Edge of Seventeen, 2016) e Fora de Série (Booksmart, 2019), ambos dirigidos por mulheres jovens. A construção do feminino no cinema não tem nenhuma regra rígida e, como foi explorado neste texto, pode ser feita de várias maneiras. Filmes como os mencionados são importantes porque desconstroem arquétipos femininos clichês e, além de criarem personagens com que a audiência feminina pode se identificar mais, dão novos ares ao cinema, evitando os estereótipos há muito já ultrapassados. 

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