Com o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus, museus em todo o mundo foram fechados temporariamente. Em meio a isso, muitos ainda tomaram medidas que buscavam levar arte para a população de outras formas, nem que fosse necessário deslocar as obras de arte de seus espaços convencionais.
Exposições a céu aberto, obras de arte em outdoors e grafite na fachada de museus foram algumas das tentativas de levar arte para a parcela da população que nunca foi além da entrada desses espaços. Esse movimento levantou debates que desde o início do século 20 protestam contra as tradicionais casas de exposição e já questionam qual a função da arte e que lugares ela ocupa.
Historicamente o consumo de arte é elitizado, segundo Ana Gonçalves Magalhães, diretora e curadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da Universidade de São Paulo (USP). Quando se discute um conceito mais estrito e eurocêntrico de arte – aquele que foi concebido a partir da primeira era moderna com a constituição dos gabinetes de curiosidade e que se desdobrou depois nas ditas belas-artes – essa elitização pode ser vista, ainda que o termo “consumo” seja anacrônico no contexto da primeira era moderna, anterior à consolidação do mercado da arte no século 19, explica Ana. “No que chamamos de sistema de arte (que envolve as instâncias do mercado de arte e as instituições artísticas tradicionais), ele continuou a ser elitizado, mesmo hoje em dia”, completa.
De acordo com Gonçalves, a consolidação dos museus de arte ao longo do século 20 veio em paralelo a um debate muito relevante sobre a educação pela arte. Nesse ponto, destaca-se a Mesa de Santiago de 1972, na qual os membros debateram o papel dos museus da América Latina. Gonçalves conta que “uma tomada de decisão muito importante foi justamente a de que os museus devem estar abertos e a serviço da sociedade, têm a função de educar e serem capazes de representar a diversidade social. Embora ainda haja questões em relação ao acesso de todos aos museus, há uma política internacional em que os museus no mundo, através de sua ação educativa, devem ser inclusivos”.
De maneira oposta à elitização em meio à pandemia, surge a mostra “No Calor da Hora”, do Projeto Mapa (Modos de Ação para Propagar Arte). A exposição reúne 27 artistas e expõe obras em todas as capitais brasileiras em outdoors, ou melhor, artdoors.
“O objetivo é fomentar a arte no espaço público urbano, na contramão de uma produção feita para acesso restrito e elitizado”, conta Patrícia Wagner, curadora do projeto. Entre os artistas que compõem a exposição, estão Arnaldo Antunes, Anna Maria Maiolino e Paulo Bruscky. De acordo com Patrícia, o objetivo é que cada artista, a partir de sua prática, apresente um trabalho que problematize as questões do presente, em uma reflexão acerca da realidade social e política à luz da pandemia.
Outdoors são plataformas essencialmente direcionadas à publicidade. Por isso, reciclar as dimensões práticas desses grandes cartazes nas margens das rodovias e nos grandes centros é interessante sob o ponto de vista artístico, principalmente quando se percebe seu alcance visual e populacional.
O caráter marginal do outdoor como suporte artístico permite o embate com um público pouco familiarizado com exposições de arte e o acesso na dinâmica da vida cotidiana e em confronto com uma situação de total heterogeneidade de interesses, hábitos e possibilidades, explica Patrícia.
Por conta da Lei da Cidade Limpa, que proíbe outdoors, a capital paulista é a exceção da mostra, que acontece, portanto, em Osasco, nos arredores da cidade. Isso apenas reforça o questionamento sobre o lugar da arte, sua confusão com a publicidade e a poluição visual. “Ocupar o lugar usual e nada neutro da publicidade é estar aberto às contradições inerentes ao meio, incorporando a alta voltagem de seus entornos, mas sem se render a ele enquanto suporte”, completa Patrícia.
“A ideia de se valer do espaço urbano como campo de reflexão ocorre não apenas a partir da suspensão do acesso aos equipamentos culturais do país, como também da impossibilidade de manifestações coletivas em espaços públicos. O caráter descentralizado da mostra visa fortalecer um programa de deslocamento entre os artistas e seus locais habituais de fala e exibição, acessando um novo público, não habituado a frequentar exposições de arte”, afirma.
Gonçalves conta que a pandemia os levou a pensar em várias formas de manter contato com os públicos, o que inclui o uso das redes sociais, por exemplo, com um importante papel para a divulgação dos acervos e da produção artística. “A utilização de outdoors é apenas uma delas, e não é nova – artistas contemporâneos usam dispositivos assim pelo menos desde a década de 1970”, afirma.
No Brasil, em abril de 1979, um grupo de três estudantes de artes plásticas, Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França, encapuzaram estátuas na capital de São Paulo ilegalmente com sacolas plásticas, o Ensacamento. Os monumentos históricos tiveram suas cabeças cobertas pelo plástico barato como protesto ao governo militar ditatorial. Nomeados como 3NÓS3, o grupo propunha a ocupação e apropriação de espaços públicos da cidade. A proposta também criticava a institucionalização dos espaços de arte em detrimento da arte fora de museus e galerias. A ação Galeria X, em uma noite, lacrou portas de galerias com fita crepe, no formato de um X com o seguinte recado: “O que está dentro fica, o que está fora se expande”.
Quem já questionava os limites da arte e seus espaços, na década de 1910, era o francês Michel Duchamp. Conhecido pelo movimento dadaísta, o artista levou um urinol, batizado como A Fonte (1917), para um museu. A ideia era questionar a utilidade prática da arte, e ainda, com bom senso, zombar do mercado da arte e da institucionalização dos espaços artísticos. As obras fazem parte do conceito ready-made, que ressignifica objetos comuns para um viés artístico e sustentou o movimento dadaísta. Esse, por sua vez, indiretamente influenciou as intervenções urbanas pelo mundo.
Ainda no exterior, Pascal Knapp criou uma das maiores intervenções urbanas no mundo. O Cowparade leva ao mundo esculturas de vacas de tamanho natural produzidas com fibra de vidro e pintadas por artistas locais. As obras são postas em zonas urbanas de alta circulação, como praças, proximidades de metrôs etc. “Vacas têm a superfície, a estrutura óssea, a altura e o comprimento perfeitos para servirem de tela. Nenhum outro animal pode produzir o mesmo nível de façanha artística evidente nesse muuuuuuuuuseu….”, afirma Knapp.
De volta ao Brasil, Hélio Oiticica se destaca na vanguarda das intervenções. Em 1965, o artista inaugurou uma performance de conjunto de bandeiras, roupas coloridas e tendas, misturadas à dança, poesia e música, conhecido como Parangolés. Nesse ato, a exposição nomeada “Opinião 65”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), uma ala de passistas da favela, convidados por Oiticica, foram impedidos de adentrar o museu. O motivo: não estavam caracterizados com ternos. O conflito se tornou um protesto e marco da luta pela democratização da arte e da junção da cultura erudita com a popular. Oiticica se desenvolveu como um artista, o que o levou a proclamar: “O museu é o mundo”.
Ainda nessa tendência de impedimento de visitação de museus pela pandemia, o Museu de Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) exibiu uma obra do grafiteiro Ota, na exposição Parede em Movimento, ação que ocupou a fachada lateral do museu.
Em entrevista ao Sala33, Ota conta que o grafite é gênero impuro por essência e se dá na espontaneidade do fazer, é intervenção urbana e não se atrela a instituições de vendas ou quaisquer encomendas que possam induzi-lo de alguma forma. “É ilegal em sua essência estética e em seu fazer como ato político e por vezes politizado”, completa.
Ota explica que, quando realiza um projeto para uma galeria ou museu, o que está presente não é o grafite, mas sim o artista que tem em sua “formatividade” ser grafiteiro. Já o grafite realizado com autorização em um local não destinado ao consumo de arte é um mural.
De acordo com ele, com a mudança de contexto de uma manifestação que é originalmente das ruas para os museus, as obras, tanto uma parede grafitada exposta por um museu, como um registro fotográfico ou uma pintura, ganham olhares diferentes. “Quando pensamos em arte exposta num espaço pensado para isso, qualquer coisa acaba por ganhar uma visão para o espectador de arte, dado o repertório que cada pessoa traz ao olhar aquele trabalho. Por isso a grande responsabilidade de se fazer um trabalho que tem a finalidade de ser visto como arte”. O artista ainda questiona se esse movimento, das ruas aos museus, é ligado à ideia de pertencimento ou ao lucro.
Ana Gonçalves acredita que não o consumo, mas a democratização do acesso e da frequentação da arte se dá através de processos educativos e de mediação. Para ela, promover acessibilidade envolve a redução dos custos cobrados de ingressos ou até lançar mão da prática de gratuidade para camadas mais pobres da população, principalmente alunos das redes públicas de ensino. Além disso, ela destaca a importância de equipamentos e estruturas de acesso adequadas a portadores de deficiências ou limitações físicas e outros tipos de público que necessitem deles para circulação no museu.
Guilherme, um prazer ler teu texto, muito precioso ter como fonte a profa. Ana Gonçalves Magalhães.
E ainda você trazer a fonte Duchamp…
Jornalismo cultural em tempos de crise é muito bem-vindo, fazendo da arte uma criativa ferramenta de reflexão.
Deixo meu forte abraço, Atílio
Eu simplesmente amei a matéria, meus parabéns 🙂