Por Sofia Aguiar (sofia.aguiar@usp.br)
Eu protesto. Tu protestas. Nós protestamos.
Eu manifesto. Tu manifestas. Nós manifestamos.
(Movimento quilombola – 1670) Os verbos “protestar”, no sentido de se rebelar, e “manifestar” são classificados como verbos transitivos indiretos, podendo ser acompanhados pelas conjunções “por”, “contra” e “em favor de”. Conjugados tanto no singular quanto no plural, vislumbra-se que a existência de tais verbos depende inteiramente de um sujeito, ou seja, de alguém que faça.
(Inconfidência Mineira – 1785) Em questão de falar e de ser ouvido, protestos e manifestações traduzem um caminho social. Como forma de representação, busca-se notoriedade. As ruas deixam de ser apenas um meio de acesso e locomoção e ganham novo significado: tornam-se palcos de espetáculos democráticos que marcam a história nacional. Sob a incerteza dos resultados e das mudanças que trarão, ir às ruas, muitas vezes, mostra-se como a única maneira de buscar representatividade, até mesmo em regimes voltados à vontade do povo. Constroem estruturas e fecham pautas. Ilustram a liberdade em exigir direitos e, principalmente, em ganhar notabilidade.
(Conjuração Baiana – 1798) A liberdade de expressão é assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, no Artigo 5º, que retrata os direitos fundamentais e deveres individuais. O inciso XVI aborda a liberdade de expressão e de protesto: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.
(Protesto contra o regresso de D. Pedro a Portugal – 1822) Tal inciso, apesar de garantir o protesto, define três limites. Primeiramente, assegura o direito de reunião em locais abertos ao público, desde que os manifestantes não estejam armados. Exige-se a premissa de uma reunião pacífica. Em segundo lugar, se o ato for realizado em um recinto fechado, é necessária uma autorização. Por último, limita-se ao fato de que não é permitido realizar qualquer tipo de manifestação que frustre uma reunião anteriormente marcada para o mesmo lugar.
(Revolta do Cangaço – 1830) O direito de reunião aparece na virada do século XIX para o XX. Até então, não havia qualquer garantia de manifestação, essa dissolvida pelo poder público a fim de manter ordem social. O Estado ainda não entendia a importância deste ato. Ou entendia, até vislumbrava seu símbolo e força na sociedade e, por esses motivos, o declarava como inconveniente e proibido. Sem organização livre, os sindicatos eram incapazes de exigir que tal direito fosse assegurado por lei. Aos poucos, com maior força das instituições sindicais, as reivindicações são canalizadas e o direito à reunião é conquistado legalmente. Passa a se figurar nas declarações, nas constituições e nas cartas internacionais. Apresenta-se como direito humano.
(Revolta dos Malês -1835) Esse nunca foi deixado de lado na história do Brasil. De tão utilizado desde antes da República até a vida contemporânea, é intrínseco na cultura nacional, que almeja a representatividade, um ingrediente a mais na insatisfação. Uma cultura de protesto.
(Cabanagem – 1835) Daniela Mussi, doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que o Estado brasileiro, por ser periférico, consolidou-se de forma intensamente dependente de demais economias. “Aquelas estruturas que adquirem mais solidez nos países centrais, de economia capitalista mais forte, têm maior dificuldade de se estabilizar na periferia, porque não há um Estado tão estável.”
(Revolta dos Farrapos – 1835) Tais países periféricos fazem com que a imposição de regras dos demais fragilize a própria natureza nacional. Como esta não é forte, se enfraquece mais e inicia-se um ciclo constante de destruição das instituições, que desfazem-se de seus direitos e autonomia. “Cada crise não é só fruto da ação de mobilização dos indivíduos, ela afeta a própria estrutura institucional por onde os conflitos passam e por onde as coisas são administradas.” Imerso em constante falta de representatividade e descrença política, o direito à reunião foi e continua sendo, muitas vezes, a única forma de expressar indignação e exigir ser ouvido.
(Sabinada – 1837) A democracia é definida como governo do povo e para o povo. O grau de sua qualidade passa a depender do nível de participação da sociedade nas decisões tomadas. Apesar de assegurada constitucionalmente, em nosso país a liberdade transpassa o âmbito jurídico, e sua discussão passa a ser feita, principalmente, em meios político e social. Ao ultrapassar tal exclusividade jurídica, a população brasileira mostra-se como grande exemplo do poder de manifestar.
(Balaiada – 1838) A falta de representatividade dentro de um regime democrático alimenta a vontade de protestar. Talvez paradoxal, uma vez que o objetivo deste regime é representar anseios sociais, mas justamente essas manifestações são o que simbolizam o poder da democracia, como engrenagens para seu contínuo movimento. Entender a heterogeneidade dentro de tal regime é começar a compreender o protesto, e concluir que a representatividade em uma democracia ultrapassa o que está escrito nas leis ou o poder do voto. A democracia não está à mercê de anos, nem de letras em folhas de papel. E sim, de uma atuação individual diária, consciente, acompanhada do direito à liberdade de expressão.
(Movimento abolicionista – 1871) O historiador Marcos Napolitano, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), retrata o protesto como uma oportunidade de manifestação que, se ausente, compromete a democracia. “Mesmo não acreditando que o protesto vá ter um efeito direto na pauta demandada, a própria indignação, causada pelo ressentimento e descrença, faz ir à rua protestar.” Não é só sobre o resultado, é sobre o que o ato representa. É levar os olhos da sociedade para demandas muitas vezes invisíveis ou esquecidas.
(Revolta do Vintém – 1879) Bruno Paes Manso, pesquisador no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, acrescenta que quando se coloca o protesto como público e ao público, “consegue-se mobilizar a sociedade sob a relevância da pauta, ganhar força no jogo político e fazer com que o governador ou legislador se sensibilize e tome decisões que favoreçam o bem comum.” Restringir a democracia apenas ao pilar do voto imerge em uma falsa ideia de que ela só deve e pode ser feita de anos em anos. O pensamento de utilizar-se do protesto não se resume em uma descrença do voto, mas sim em aproveitar os mecanismos de representação que o regime oferece, transpassando o espaço apenas político.
(Revolta de Canudos – 1896) O voto começa a se consolidar e se tornar abrangente após o fim da Ditadura Militar, com muita reivindicação. Durante os 30 anos que
sucederam de democracia, passou-se a perceber a ineficácia de se afirmar apenas por ele, ao mesmo tempo em que se firma uma desconfiança nas eleições e um afastamento da política. As pessoas opinam e decidem pouco.
(Revolução Federalista – 1893) O voto passou a ser forma de legitimar uma gestão, em uma versão bem minimalista da democracia. “É como se, ao votar, houvesse uma transferência de todo o poder aos representantes e, depois, a população tem que aguentá-los”, observa Daniela Mussi. Acrescenta que, “embora o povo se ressinta por não estar perto da política, há todo um aparato normativo e cultural para que se espere a próxima eleição chegar e então fazer uma mudança.” Isso acumula ressentimento, até que explode. As pessoas sentem que no protesto estão opinando e decidindo mais. Não porque as eleições não são importantes, mas porque a maneira como estão sendo feitas não traz representatividade verdadeira.
(Revolta da Armada – 1893) O protesto e a descrença no voto fundam-se na representação e, dada a gama de manifestações nacionais, aparentemente eles traduzem com maior exatidão os anseios da população. Para Daniela Mussi, “protestos retomam a memória daqueles que antes vieram e reivindicaram certo núcleo de direitos. Relembram pessoas comuns, que viveram certas situações e torna a memória delas uma luta.” Buscam outro tipo de representação, agora vindo da própria população. Esses processos são muito mais ricos. Sentimos, vivemos e lembramos mais porque são nossas histórias, nossas famílias e conhecidos.
(Revolta da Chibata ou Revolta dos Marinheiros – 1910) No entanto, a ideia das manifestações, ao mesmo tempo que essencial, não deixa de passar por períodos de intensa idealização e apresentam limites além dos estabelecidos constitucionalmente. O advogado pela Universidade de São Paulo (USP), Marcos Perez, relata que, em tese, manifestações não deveriam apresentar outro limite a não ser o escrito na lei. Mas a sociedade não pode creditar seus direitos apenas ao que diz a regulamentação jurídica.
(Revolta do Contestado – 1912) “A democracia impõe que a liberdade de manifestação seja observada e que tenha argumentos de ambos os lados. Entretanto, ela não pode convergir para ser uma liberdade em torno de uma agenda de ódio, que contraria os pressupostos da própria Constituição”, diz o advogado. É contrasenso se manifestar para restringir a liberdade de opinião de outro. Existe uma fronteira entre o que é razoável e o que não é, em termos de manifestação pública. Para Daniela Mussi, esse discurso de ódio é o limite normativo, em que a pessoa perde a razão política. Mesmo existindo uma razão mobilizadora, o direito de manifestar é perdido com o uso dessa linguagem.
(Revolta de Juazeiro – 1914) Este discurso também é muito presente no Brasil. É uma forma de protesto que não visa somente causas sociais. Apresenta ideais de estupro, machismo e ódio, claramente indo contra os fundamentos do Estado Democrático de Direito. Estes manifestantes passam a interpretar o protesto de outra forma, e estabelecem-se na sociedade.
(Greve geral dos operários – 1917) Para Marcos Perez, este tipo de protesto tem que ser combatido, não pelo fato de ser uma manifestação, mas por fazer apologia a um comportamento criminoso e antidemocrático. Mas, se a manifestação prega algo que a lei proíbe, como o aborto, ela não está indo contra os fundamentos do Estado. Anseia mudar a lei, mas não mudar, efetivamente, o Estado democrático. “Na dúvida, prevalece o direito de manifestação, e não o limite ao direito dela.”
(Revolta dos 18 do Forte de Copacabana – 1922) No entanto, em que medida o direito à manifestação é superior ao direito do cidadão? O protesto tem um inconveniente: atrapalhar. E justamente por isso é tão notório, ele tem que chamar atenção, quer ser notado e incomodar. Fechar ruas e avenidas, principalmente em cidades que já apresentam um alto nível de caos, coloca em voga o direito dos demais cidadãos. Segundo Daniela Mussi, “o discurso mais comum do Estado ou do governo ao lidar com uma greve é dizer que ela afeta a democracia pois, se bloqueia uma estrada, afeta o direito de ir e vir daquele que não faz parte do protesto.” A democracia está atravessada por conflitos de entendimentos do que ela dignifica.
(Movimento Tenentista – 1922) A dicotomia se instala quando há quem entenda que uma greve nunca pode favorecer uma democracia, porque a liberdade é, teoricamente, não ser impedido de se deslocar. E, quem entenda que a democracia não é só uma relação técnica de deslocamento da pessoa, mas uma questão formal. Ela é substantiva. Tolera-se bloquear a passagem dos indivíduos com a finalidade de que o bem de todos seja preservado. A suposta noção de que a liberdade é focada apenas no indivíduo cria sociedades desiguais. “A ideia de uma sociedade livre é poder eventualmente impedir a passagem do indivíduo, caso aquilo que esteja conquistando e reivindicando com essa solução do passe seja algo que beneficie a todos e diminua as desigualdades”, observa. Os protestos causam prejuízo, mas a partir de uma reivindicação que acreditam ser legítima para o indivíduo e para a sociedade.
(Proclamação da República – 1922) Para Marcos Perez, tal situação traduz nada mais que um jogo democrático. “O direito de incomodar não possibilita retirar liberdades fundamentais ou fazer uma pregação de ódio. Apesar dessa fronteira não ser clara, ela pode ser rompida e, quando for, deve-se dissolver a manifestação.” É o ônus que se paga por viver em uma democracia. “Se não houvesse democracia, ninguém iria se manifestar, mas as pessoas iriam chegar em casa mais cedo. Quer dizer, o objetivo de se viver em sociedade é andar de carro? O fato de não ter manifestação é o que deveria incomodar, pois não se teria um alto grau de convívio político e social.”
(Coluna Prestes – 1924) Em algum nível, movimentos sociais comprometem, mas devem ser dissipados apenas quando tornam-se abusivos. Ao chegar neste caso, analisa-se outro agravante nos protestos: a ação da polícia. Ela tem por objetivo acompanhar e fazer com que a situação não se desvirtue a ponto de se instalar a violência. Se isso ocorrer, como detentora do monopólio legítimo da força, é de sua função agir, o que pode ser feita de diversas maneiras.
(Revolução de 30 – 1930) Segundo o advogado, “a tropa é treinada e depende do comando dissolver ou não a manifestação. A polícia age em autodefesa ou em represália a violência dos manifestantes. Sua ação deve se dar no sentido de prevenir que essas coisas aconteçam, de proteger o patrimônio público.” Tudo depende do contexto e, a partir daí, a polícia pode extrapolar a relação de prevenção e torna-se agressiva.
(Revolução Constitucionalista – 1932) Manifestar é sobre ação e reação. Se manifestantes provocam os policiais, vindo a comprometer a ação do governo ou da própria polícia, necessita-se ter preparo para não reagir a esse tipo de provocação. Ao fugir do controle, visualiza-se o tipo de armamento usado, este, necessariamente, não letal. Mas, em momentos de limites, armamentos não letais podem ser usados como qualquer outro tipo de armamento. Quando isso ocorre, se evidencia a estrutura da polícia. Como uma herança da história patrimonialista e autoritária nacional.
(“Áporo” – Carlos Drummond de Andrade – 1945) Levando em conta tal legado e a recente instalação da democracia, as polícias evidenciam a mesma estrutura da época da Ditadura. Caminhou-se muito em algumas áreas mas caminhou-se muito pouco em outras. “Vivemos neste momento: temos um pé no futuro, com instituições maduras, interessantes e democráticas de um lado, e um pé no passado, de outro. A polícia fica meio imóvel e não sabe como sair desse espacate institucional que estamos vivendo”, diz Marcos Perez.
(Movimento Feminista – 1960) Construiu-se um abismo entre manifestantes e polícia, considerando o outro como inimigo. O treinamento e comando existentes nos batalhões policiais não eliminam a possibilidade de acabar em violência. “A bala de borracha tem que ser usada? Não sei, porque no limite, ela pode ser usada além daquilo protocolado.”
(Golpe Militar – 1964) Nesse dilema institucional, os direitos vão sendo criados a partir de lutas e conquistas realizadas pela sociedade, dando origem às gerações de direitos. Com a democracia nacional tardia, eles vêm sendo metralhados e o Estado tem que ser capaz de lidar com toda essa gama, a primeira, segunda e terceira, simultaneamente. Imersa em uma espécie de curto circuito institucional, a sociedade visualiza as gerações de direitos digladiarem e rivalizarem publicamente. “O Estado não consegue criar políticas públicas nem regulamentar todas. O passado e o futuro convivem, brigam e, por isso, há a sensação de morar em um país muito avançado e, ao mesmo tempo, muito atrasado”, observa Marcos Perez.
(Marcha da Família com Deus pela Liberdade – 1964) Essa dúvida de qual tipo de país o Brasil faz parte se evidencia e é pauta de muitos protestos. É um país que ainda precisa reivindicar elementos fundamentais ao andamento da sociedade e que se baliza na liberdade, mas também na repressão. Tal dicotomia nacional é traduzida na ideia de ser mais fácil finalizar protestos com negociação de pautas legítimas pelo medo policial. Acreditam na violência como propulsora da ordem, mas não percebem as consequências que ela tem para um regime democrático. “Quando é precisa usar a violência, significa que seu poder esvaiu e se fragilizou, uma vez que não consegue-se fazer as pessoas terem a disposição para obedecer, porque a figura pública já não representa interesse coletivo”, analisa Bruno Paes.
(Tropicália – 1967) Daniel Arroyo é fotojornalista no canal Ponte Jornalismo e cobre questões de segurança pública, justiça e direitos humanos. Durante o evento “Na Linha de Tiro”, comentou um pouco sobre suas experiências em manifestações. Diz visualizar a transição entre o protesto e o caos principalmente pela ação policial repressora e, poucas vezes, pontual. “Manifestação não tem lugar errado. Riscos e acidentes podem acontecer, mas não pode se tornar uma guerra ou uma linha de tiro. As pessoas não deveriam se machucar por isso.” O medo e o anseio de reportar traduzem um conflituoso embate para Daniel, enquanto ele narra sequências de fatos da manifestação ocorrida em Brasília, no dia 24/05/2017:
“8 ministérios depredados, PMs machucados, um manifestante baleado.
Colocaram grade e começaram a revistar. Decidiam quem ia entrar ou não.
Cavalaria batia e recuava.
Pessoas começavam a devolver a violência.
Quando a tropa ta com escudo, não tem diálogo.”
(Passeata dos 100 mil – 1968) No mesmo evento, Gabriela Billó, também fotojornalista de conflitos urbanos, principalmente de manifestações e protestos, comenta uma canalização de raiva, adrenalina e descontrole nas manifestações. “Enquanto a polícia é treinada e armada, há manifestantes que não tem nenhum tipo de proteção, seja uma câmera ou máscara de gás.” Acrescenta que “esses sentimentos de raiva e repressão fazem com que a manifestação vire contra a polícia, já que o objeto que impede o protesto é ela.” E admite: “às vezes, bate um sentimento de cidadania além da câmera.”
(“Cálice” – Chico Buarque – 1978) A ação policial nas manifestações se evidenciou após os protestos ocorridos em Junho de 2013, período em que Black Blocs notabilizaram-se nas manifestações e nas mídias. Tal grupo usa uma tática direta que tem por objetivo a violência simbólica. Quebram-se vidros e patrimônio público como forma de chamar atenção da sociedade para sua pauta e acelerar a negociação política. Eles passaram a discutir até que ponto o pacifismo na manifestação acaba beneficiando o Estado. É sobre usar essa tática de violência simbólica para pressionar o Estado e atender as causas, colocando- a no debate político.
(“Bêbado e equilibrista” – Elis Regina – 1979) Em represália principalmente à ações deste grupo, a violência evidenciou-se no vocabulário dos novos movimentos políticos, tanto na ação dos manifestantes quanto na dos policiais. “Às vezes, a ação dos Black Blocs é tão intensa que a polícia não consegue prevenir o dano ao patrimônio público ou privado. Esses manifestantes, se identificados, terão que responder legalmente pelos atos.” defende Marcos Perez. “Se em uma manifestação algumas pessoas se radicalizam e quebram um patrimônio, não é a manifestação que é ilegal, e sim a ação de algumas pessoas que se extremam.”
(Movimento LGBT – 1981) Tais extremos passaram a servir de receio à ida de pessoas a muitos protestos. O que era com intuito de reivindicar pela coletividade, pacifismo e voz, passou a tornar-se notório pela onda de violência que causou, muitas vezes, desestabilizando o evento e a própria população.
(“Inútil” – Roger Moreira – 1983) Além da evidência dos Black Blocs, 2013 para a sociedade brasileira é maior. A onda de protestos iniciou-se nas ruas contra o aumento da tarifa do transporte público na cidade de São Paulo. Pelo fato da mobilização ter alcançado a diminuição das tarifas, a sociedade brasileira foi relembrada sobre o impacto do protesto e sua capacidade de conquista. A partir de então, reivindicações foram surgindo constantemente, assim como a consciência do poder da população e o sentimento de nacionalismo.
(Diretas Já – 1983) Essa revitalização dos protestos e das manifestações deixaram marcas na contemporaneidade. Para Bruno, sua importância se deu, principalmente, no modo de organização, no qual “não há mais apenas uma liderança hierárquica e representativa de toda uma categoria. Ela tornou-se plural e afastou-se da carga de partidarismo que tinha.” Passou a traduzir no povo uma imagem de reivindicação e representatividade, sejam apartidárias ou não. “Representa uma fragilização das instituições, dos sindicatos e um empoderamento dos indivíduos. As próprias redes sociais formaram lideranças que antes eram inexpressivas e, agora, passaram a articular grupos e ser seguidas por muitas pessoas.”
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – 1984) Para Daniela, a população entendeu que protestos referem-se, primordialmente, às demandas democráticas, progressistas e do cidadão, “mas isso não significa que eles não tenham ideologia.” Protesto tornou-se nacional, recorrente de uma onda de descrença nos partidos, principalmente por conta de traições que as pessoas sofreram. Grande parte de tal mudança deve-se à capacidade de alcance das redes sociais, tornando debates políticos não só restritos à partidos, sindicatos ou escolas, mas à capacidade geral de ir às ruas, de debater e se expressar.
(“Que país é este?” – Renato Russo – 1987) Os métodos continuam os mesmos, como a panfletagem, mas a escala se potencializou. Está se profissionalizando a forma de lidar com essas mídias, na qual a nova estratégia é a consolidação do contato. Criar o evento e divulgar. Transmitir por mídias que não monopolizam o protesto traz uma aproximação com os movimentos e cria uma nova linguagem, do celular na mão e do improviso. As pessoas sentem-se parte daquilo e sentem ânsia em participar, como se estivessem dentro, em união do coletivo com o pessoal. Um processo de desespetacularização e desglamourização midiática.
(Geração Caras Pintadas – Impeachment Collor – 1992) A cobertura pela câmera do helicóptero, em uma cabine sem barulho, cria uma ligação passiva e afastada com a política, tanto pelas imagens quanto na abordagem. E então, começa uma filmagem embaixo, do meio e no calor do acontecimento, com pessoas gritando e polícia atacando. Para Daniela, isso muda a relação, cria empatia. “As pessoas se ativam, se identificam, têm vontade; isso seria impossível se tivesse uma forma de fazer definida, uma orientação de cima pra baixo. Essa nova linguagem, do celular na mão, precisou ser inventada.”
(Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST – 1997) O indivíduo se enxerga fazendo parte do coletivo, não só de uma demanda. O protesto, além de ser uma pressão às autoridades, é também forma de se mostrar em público e ganhar aceitação. Segundo Bruno, a Parada LGBTQ+ foi um dos principais tipos de manifestação nesse sentido. “Faz parte do jogo democrático. Uma democracia viva é justamente uma democracia na qual as minorias ou as partes que se sentem prejudicadas levem pra política sua reivindicação. Tem que ser aceita, discutida e considerada legítima.”
(Revolta da Catraca – 2004) Tony Martins participou do 22º Evento da Parada LGBTQ+, ocorrida em São Paulo dia 03 de Junho de 2018. A importância do movimento, para ele, é transparecer na sociedade o respeito que muitas vezes não se tem. “É neste momento que temos visibilidade, quando podem olhar para gente e refletir sobre o preconceito.” Protestos transpassam a ideia de grandiosidade naquilo que é dito como minoria. Para Franciele, de 23 anos, que também foi à Parada, “esse evento é o que dá mais coragem de assumir e se aceitar.”
(Escola Sem Partido – 2004) Movimentos sociais trazem à tona a reivindicação e o respeito. Ilustram o ato de protestar de forma notória para causas sociais ainda imersas em preconceitos diários e, cada vez mais, afastadas da tendência partidária. São movimentos a favor da cidadania, acima de tudo, e se estruturam ao longo do tempo. “A ideia de movimento é porque está acontecendo, atores políticos e ideologias não estão decididos a priori. É a ideia de que a identidade política se forma no ciclo de protestos, e o que é vivido neles afeta a maneira como ela se forma”, observa Daniela. Ganha força pois, além de interesse social, torna-se interesse político. É feito para um coletivo.
(Movimento do Passe Livre – MPL – 2005) Aqueles que protestam anseiam a dissolução do poder por meio de uma transformação interna, com pessoas descobrindo sua importância e posição. Reflete-se em mudança cultural, como vislumbrada pelos movimentos feministas, LGBTQ+ e em defesa de negros e índios. É outra forma de protesto, de embate a uma cultura e política, que não necessariamente vai à rua.
(Protestos em Junho de 2013) Sua ação dissipadora é tão forte que afeta o âmbito artístico de uma sociedade. Na Ditadura Militar, imersa em intensa opressão, a arte foi feita como refúgio e única saída para mínima expressão popular, com músicas e poemas que se eternizaram. A importância desta arte é visualizada até a contemporaneidade. Traz ao público o questionamento do que seria considerado arte e quebra paradigmas até então intocáveis. Obras, poemas, canções e textos em expressão de protestos escondidos.
(“Não é só por 20 centavos” – 2013) Em um maniqueísmo social e político, protestos exaltam o orgulho nacional. Mobilizar, interditar e tornar notório o anseio social de querer mudança e reivindicação é, no mínimo, impactante. Orgulha e dignifica. A cultura do protesto faz com que a questão ideológica se torne secundária, o poder e capacidade de mobilização transparecem o real valor dela. Causas são apoiadas, não necessariamente partidos ou ideologias.
(“Vem para a rua” – 2013) No dia 25 de maio de 2018, ocorreu um ato promovido pelo Movimento do Passe Livre (MPL), contra o corte no passe livre da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo). O contexto era de caos na cidade paulistana, no auge da greve dos caminhoneiros, ruas e avenidas estavam interditadas. Mas isso não apagou o anseio por mudança. Victor Serino, de 22 anos, é estudante do último ano de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e diz frequentar protestos desde Junho de 2013. Com falas interrompidas por músicas, vozes ao microfone e aplausos, ele entende o protesto como algo mais expressivo do que a própria voz, algo que chega a emocionar.
(Movimento Brasil Livre – MBL – 2014) “Acho muito incrível. Mesmo com algumas confusões ou com bandeiras que não são exatamente as melhores para resolver os problemas, a única forma que temos de tirar conclusões corretas é estando na mobilização.” E admite: “prefiro pessoas com bandeiras ‘meio erradas’ na rua do que com ‘bandeiras certas’ dentro de casa, no Facebook ou no sofá. A rua é nosso lugar e é lá que as coisas mudam.”
(Protesto para impeachment de Dilma Rousseff – 2015) Ele compreende tal fervor no Brasil devido seu passado histórico balizado em pobreza, desigualdade e exclusão. A sociedade precisa entender que “as coisas devem vir de baixo para cima. Restringir o protesto apenas ao âmbito jurídico atrapalha o debate sobre a liberdade de expressão, pois ela relaciona-se, inteiramente, à vida política e social.”
(Protesto contra a reforma da Previdência – 2017) Em 29 de maio de 2018 aconteceu, em São Paulo, uma mobilização de 103 escolas particulares, aglutinando alunos e professores contra a proposta do sindicato de retirada de direitos da categoria, como bolsa para filhos de professores e recesso de fim de ano. O professor Ricardo Teixeira*, participante da campanha “Nenhum direito a menos”, diz ser muito claro que, ao sair para rua e parar as escolas, o efeito é muito grande. “As reações esperadas são de pessoas que consideram que a paralisação só vem atrapalhar a vida. Mas, na verdade, ela é uma demonstração de que sem o nosso trabalho as coisas não andam, não funcionam.” Ao paralisar, há uma movimentação muito maior no sentido de se tentar entrar em acordos, uma vez que a manifestação mostra uma força muito maior da categoria que está paralisando. “É uma forma de mobilização para que aqueles que foram colocados como representantes, de fato nos representem. Acredito ser a democracia o melhor sistema, mas ela é muito falha.”
(Exposição Queermuseu – 2017) Segundo Fabiana Garcia*, professora de História que também estava no protesto, ao mesmo tempo em que há no Brasil uma cultura de protesto, há também uma de conformismo. “O Brasil gosta e anseia a manifestação, desde que ela não atrapalhe a vida”, enaltecendo uma falta de pensamento coletivo. “A sociedade ambiciona a manifestação, mas depois querem voltar dela como se nada tivesse acontecido. É um conformismo que vem após. Ela tem que ser um movimento contínuo e levado até o final.”
(Manifestações pela morte de Marielle – 2018) Se posicionar e fazer algo para mudar. Desde jovens até idosos, protestos aglutinam causas para eternizarem acontecimentos. Mas tal consciência social deve ser constante e transformadora. Giovana Souza, de 17 anos, é estudante da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e visualiza vácuos nas manifestações, sendo um deles a organização. “As pessoas esperam que algo ocorra para então se articularem. Há um corte e depois que começam as assembleias e atos. Seria mais importante articulação sempre. Quando explodisse, o povo já estaria organizado e o resultado seria mais imediato.”
(Greve dos caminhoneiros – 2018) “Meu nome é Inês Ferreira. Sou brasileira, paulistana, tenho 83 anos e estou aqui na rua”, se apresenta uma das figuras mais emblemáticas do ato a favor da greve dos caminhoneiros, na Avenida Paulista. Desde Inêses até Giovanas, protestos são universalizados.
(Paralisação de escolas particulares – 2018) Discursos que chamam atenção. Panfletos. Aplausos. Voz ao microfone. Contemplação. Cartazes. Gestos raivosos. Mais aplausos. Microfone aberto. Informes. Capacetes. Óculos para gases. Panelaço. Debates. Respeito. Direitos.
(“Mas, se ergues da justiça a clava forte/ Verás que um filho teu não foge à luta/ Nem teme, quem te adora, a própria morte” – Hino Nacional Brasileiro) Manifestações são imprevisíveis e retomar a importância delas à consciência nacional devolve ao centro pautas legítimas, e a noção de respeito para com o cidadão. Depois que terminam, voltam ao subsolo do cotidiano, seus impactos e mudanças serão percebidos quando um outro processo começar, e as pessoas reaparecerem em cena. Até então, o copo d’água social é enchido aos poucos, à espera de uma gota para fazê-lo transbordar. Sempre à mercê de mais reivindicações e representatividade, em uma cultura de protesto. E isso não mudou.
*Nomes fictícios para preservar a identidade das fontes.