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Ensaio | Em celebração ao Estúdio Ghibli

A vida narrada nos filmes do estúdio são permeadas por um conceito japonês reflexivo e os valores da humanidade
Cena de 'Castelo Animado' do Estúdio Ghibli
Por Regina Lemmi (regina_lemmi@usp.br)

Trinta e nove anos após a fundação do Estúdio Ghibli, não há dúvida a respeito de sua relevância para a indústria do cinema. Denominada como “O Quente Vento do Deserto do Saara” por um de seus criadores, a empresa já produziu 24 longas-metragens bem-sucedidos mundialmente. Sua popularidade internacional, para além de outros elementos, foi formada pelas belezas visuais intangíveis, de meros segundos, dos longas-metragens e que incitam uma vontade de adentrar nas animações. 

Em uma entrevista no site do jornalista Roger Ebert com Hayao Miyazaki, um dos fundadores do estúdio, o entrevistador elogiou o “movimento injustificado” que permeia as histórias do estúdio. O produtor respondeu que “Nós temos uma palavra para isso em japonês. É chamado de ma. Vazio. E está lá intencionalmente.”

Kiki ouvindo o rádio e refletindo em O Serviço de Entregas da Kiki (Majo no Takkyubin, 1989) [Imagem: Reprodução/ Instagram / ghibliusa]

Primordialmente, ma é uma compreensão que vai para além das telonas e está intrinsecamente relacionado à cultura japonesa. “O ma está presente em todas as manifestações culturais japonesas”, segundo Michiko Okano, professora da Universidade Federal de São Paulo e autora de MA: Entre-Espaço da Arte e Comunicação no Japão (Annablume). Em seu livro, ela conta que o ma “Possui múltiplas semânticas, uma delas é a do espaço de possibilidade e disponibilidade e a outra é a de espaços intervalares, que desconstrói o pensamento dual e aposta na possibilidade de um espaço intermediário que pode ser concomitantemente as duas coisas.” 

Trata-se também de um conceito que é essencial para a rememoração dos acontecimentos passados. Uma concepção que é aplicada diretamente no cotidiano através de uma pausa na correria do dia a dia para reflexão. 

O filme Memórias de Ontem (Omoide Poro Poro, 1991) aborda exatamente a ponderação a respeito da feliz infância passada e a prostração com o presente. A partir de poucas falas, o longa dirigido por Isao Takahata apresenta ao espectador Taeko, uma moça de 27 anos que demonstra-se nostálgica e incomodada com o seu ressentimento social. Há-se percepções conflitantes da realidade, transformando memórias frustrantes da protagonista em uma experiência única e sensível ao público. Ma está presente nos momentos de intervalo entre os elementos possíveis do passado e do presente da personagem. 

Trata-se de uma ideia que se opõe ao imediatismo intrínseco à sociedade ocidental. Esse conceito foi criado pelo professor, teórico da mídia e escritor Douglas Rushkoff. Conhecido por sua associação com a cultura cyberpunk, ele propõe a defesa de soluções de código aberto para problemas sociais. Segundo ele, quando o ser é sucumbido pelo imediatismo, se esquece do passado e vê o futuro incerto, como uma criança que ainda não possui inteligência emocional, ele clama pela satisfação de seus desejos já agora, no presente. 

Teoricamente, uma pessoa imediatista não é capaz de entender uma narrativa densa que o cinema proporciona, pois apenas compreende a cena que vê, não engloba toda história, e quer uma plenitude satisfatória em seu desfecho. Ma, portanto, seria um conceito que quebra esse ciclo vicioso; pois é capaz de induzir que o telespectador dos filmes contemple as obras cinematográficas e seja apto de tirar suas próprias conclusões.

Percebe-se que os longas do Estúdio Ghibli possuem uma atmosfera contemplativa no momento em que, por exemplo, em O Castelo Animado (Hauru no Ugoku Shiro, 2004), Sophie abre a porta da casa de Howl e se depara com uma paisagem de múltiplas cores entre verde e rosa; ou na cena em que em A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001), os personagens Chihiro e Sem Rosto sentam no banco do trem e apreciam a paisagem; ou quando Madame Gina, em Porco Rosso (Kurenai no Buta, 1992), senta à beira da janela para ler seu livro. Nesses instantes, há um silêncio, um vazio intencional, não é preciso palavras para explicar a existência dos personagens.

O Sem Rosto e Chihiro sentam no banco do trem e deparam-se com esse ambiente [Imagem: Divulgação / Studio Ghibli Japão]

Para além disso, no vazio de cenas estratégicas ao redor da obra cinematográfica, os produtores do Estúdio Ghibli incitam um sentimento de escapismo prazeroso. Eles não se preocupam em manter uma estrutura em que a narrativa permeia todos instantes da tela, mas construir uma experiência ao telespectador que respeita seu tempo de entendimento, e confia-lhe a compreender a história. 

Um exemplo disso é a cena em que Satsuki e Mei encontram pela primeira vez Totoro, na chuva, em que há um silêncio concreto entre os personagens. Em oposição a isso, as animações ocidentais ditam a narrativa para entendimento de todas as idades, não havendo um momento sem falas. Isso se aplica a, por exemplo, Enrolados dos Estúdios Disney, no qual utilizam da narração de José Bezerra para explicar o rejuvenescimento da Mãe Gothel com seu cantar à flor no início do longa.

“As pessoas que fazem filmes têm medo do silêncio, por isso querem encobri-lo. Eles estão preocupados que o público fique entediado.”

Miyazaki

A verdade é que, por meio dessa taciturnidade, muitos dos longas do estúdio japonês abordam a vida em uma perspectiva pacífica. A partir do distanciamento da realidade apressada, tal pacificidade se expressa em uma monotonia semelhante aos pequenos momentos na vida. Isso é expresso múltiplas vezes pelas cenas em que os personagens descansam banhados pela natureza ao seu redor, — no caso de Os serviços de Entregas da Kiki, — outro fator determinante para as narrativas. 

Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no Tani no Naushika, 1984), Princesa Mononoke (Mononoke Hime, 1997), Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988) e Ponyo – Uma Amizade Que Veio do Mar (Gake no ue no Ponyo, 2008) explicitam suas intenções de transmitir a essencial mensagem ambientalista a todo público. Em geral, as obras demonstram um contato entre ser humano e natureza, um intermédio ao ma. Tal dialética recorre a uma clássica desarmonia, também presente na realidade, entre esses dois elementos nos mundos criados por Hayao Miyazaki, mas superados no desfecho das narrativas. Então, a humanidade e o espaço convivem no mesmo cosmos harmoniosamente no final dos longas.

Ao curar os machucados de Moro, San olha direto para o público, há-se uma troca de olhares fixos entre ela e Ashitaka [Imagem: Divulgação/ Studio Ghibli Japão]

No entanto, deve-se distinguir a pacificidade da ingenuidade. A paz pode ser atingida ao final dos longas por meio do acordo, e o fim dos conflitos que permeavam as histórias; entretanto, não há sequer um personagem ou uma perspectiva fraca e simples da realidade retratada nos longas. Muitas dessas animações mostram cenas horrendas sobre a morte também. 

Hayao Miyazaki optou por um filme impactante sobre a dominação humana, tal qual Princesa Mononoke, porque odiou a imagem que o estúdio criou a seu respeito até 1997. “Comecei a ouvir que o Ghibli era ‘doce’ ou ‘terapêutico'” o diretor disse no documentário sobre a produção da cinematografia. À primeira vista, parece que os longas são ingênuos e superficiais nas telonas; entretanto, quando se analisa as mensagens por trás das cenas, nota-se uma densidade complexa, não captada pelo telespectador quando visto o filme apenas uma vez. 

Quando O Menino e a Garça (The Boy and the Heron, 2023) chegou aos cinemas, o público saiu das salas dizendo que não havia entendido a narrativa. Entretanto, a cinematografia recorre a uma alegoria crucial sobre o amadurecimento e o aprendizado de conviver com o luto por parte de Mahito, após o falecimento de sua mãe durante a Segunda Guerra Mundial. A garça-real-europeia, na qual os produtores se inspiraram, simbolicamente representa a melancolia e morte. 

A animação também possui um tom semi-autobiográfico. Segundo o produtor Toshio Suzuki em entrevista ao Entertainment Weekly, “o protagonista é ele [Hayao Miyazaki] mesmo e há todos esses outros personagens que aparecem no filme que são baseados em pessoas com quem ele trabalhou ao longo dos anos”. Suzuki afirma que “ele [Miyazaki] queria homenageá-los e expressar sua gratidão pelo apoio ao longo de sua carreira. Então esse foi o grande objetivo dele ao fazer este filme.”

Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, 2013) é outro filme que capta sentimentos autobiográficos de Hayao Miyazaki. Um longa sobre a vida de um menino com o sonho de se tornar um engenheiro aeronáutico, mas esse desejo revela-se perigoso com o início da Segunda Guerra Mundial. O filme parece ser por definição simples e monótono, mas traz uma abordagem sobre modernidade e amor, englobadas na fantasia de construir aviões. A partir dessas concepções, a obra sugere ao espectador uma verdadeira reflexão interna e ética sobre a beleza e o veneno de uma quimera.

Outros longas abordam também, por meio de um viés mais trágico, sobre a vida. Esse é o caso de Túmulo dos Vagalumes (Hotaru no Haka, 1988), o filme considerado pelos fãs como o mais triste do estúdio. Ele aborda o escapismo de dois irmãos que se vêem desamparados diante das perdas de seu pai e mãe na Segunda Guerra Mundial. 

Eles recorrem, então, à natureza, onde estão alheios da constante rejeição e conflitos da humanidade. Entretanto, o desfecho do longa sugere que ninguém é capaz de fugir da realidade, por mais dolorosa que seja. Esse longa foi produzido e roteirizado por Isao Takahata, o mesmo criador do indicado ao Oscar O Conto da Princesa Kaguya (Kaguya-hime no Monogatari, 2013).

Kaguya desvencilha-se da mansão e as amarras sociais e abraça a natureza, com saudade da vida passada [Imagem: Divulgação/ Studio Ghibli Japão]

Este último, por sua vez, aborda os valores da humanidade. Na obra, Kaguya é uma personagem que nasceu de um broto de bambu e se torna uma jovem moça cobiçada inclusive pelo imperador do Japão. Questionando a felicidade e a cobiça, a obra cinematográfica recorre a um visual diferente das animações do estúdio e difere-se de todos os outros longas a partir da abordagem extraordinariamente infeliz a respeito de tais dilemas. 

O longa também traz sutilmente uma crítica ao silenciamento social das vozes femininas. Importante ressaltar que a sua história é baseada no tradicional conto japonês “O cortador de bambu”. Ao final do filme, a única coisa que faltará são lenços para os olhos marejando.

Destacam-se também as belas lições sobre a importância de conhecer o diferente, em O Mundo dos Pequeninos (Kari-gurashi no Arrietti, 2010); da felicidade de encontrar um amor tão puro e nunca desistir de seus sonhos, ao qual Sussurros do Coração (Mimi wo Sumaseba, 1995) compromete-se; além da questão de pertencimento, que permeia a narrativa de A Viagem de Chihiro. Todas essas histórias são captadas coerentemente pela cinematografia estonteante das animações. A partir da técnica de reflexo dos sentimentos dos personagens no pano de fundo, é possível evocar a sensibilidade do público em uma atmosfera integralmente fenomenal.

Eu Posso Ouvir o Oceano (Umi ga Kikoeru), filme sobre um triângulo amoroso, nunca exibido no Brasil [Imagem: Reprodução / Instagram / ghibliusa]

Dizer que o Estúdio Ghibli é excelente em captar as emoções humanas e complexidades, é pouco para o esforço de trazer à vida uma fuga do óbvio. Sua importância é, sem dúvida, mais do que a paixão pelo cotidiano, mas reflexão a um futuro melhor, através do ma.

*Imagem de capa: [Reprodução / Instagram / ghibliusa]

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