Por Gabriela Nangino (gabi.nangino@usp.br)
Exibindo o Perdão (Exhibiting Forgiveness, 2024) é o longa-metragem de estreia de Titus Kaphar, renomado artista plástico norte-americano, como cineasta. Participante da seleção oficial de novos diretores do Sundance Film Festival, a obra chegou ao Brasil na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e faz sucesso ao propor reflexões importantes sobre a complexidade de relacionamentos familiares e a superação de traumas.
O filme é centrado na história de Tarrell (Andre Holland), um pintor negro, Aisha (Andra Day), sua esposa e cantora, e o filho pequeno do casal. Apesar do amor à própria arte, o protagonista não se sente pertencente ao mundo artístico — ele não tem interesse em exposições ou confraternizações, pois sua prioridade é dividir seu tempo entre o ofício e a família.
O enredo se inicia quando Tarrell precisa fazer uma viagem à sua cidade natal para buscar sua mãe, Joyce (Aunjanue Elis-Taylor), que está se mudando para mais perto da família. Porém, ele entra em uma enrascada, pois é confrontado com um grande fantasma de seu passado: seu pai, La’Ron (John Earl Jelks), ex-adicto em crack que passou recentemente pela reabilitação e deseja recuperar a relação com o filho.
O vício em narcóticos é explorado com frieza, demonstrando como é fácil se imergir em situações irreversíveis, e como o vício impulsiona a violência em todas as esferas da vida de La’Ron. A violência doméstica sofrida por Joyce também é retratada, porém, de forma pouco profunda, podendo ser ofuscada pelo restante da trama. Sem cenas gráficas, a abordagem ocorre de forma superficial, e merecia receber maior atenção.
Abordando o racismo e a marginalização sofridos ao longo da vida de Tarrell na periferia estadunidense, a obra tem fortes raízes na vivência da comunidade negra e nas questões socioculturais que a rodeiam, inclusive durante o processo de criação e educação. La’Ron, que foi um homem muito humilde antes de se perder no crack, considera essencial ensinar seu filho a trabalhar: segundo ele, a única coisa que o irá diferenciar dos demais é o seu esforço, e ninguém sentirá pena de um menino preto. Porém, o mesmo pai, alterado e agressivo, maltratava e negligenciava as necessidades de seu filho, deixando marcas para toda a sua vida.
A temática do trauma intergeracional é muito bem trabalhada, sob diferentes ângulos. Tarrell sofre com pesadelos e sonambulismo, que o levam a episódios de surto de raiva frequentemente. Ao longo da história, o público também entende a história de vida de La’Ron, igualmente marcada pela fúria e por uma família disfuncional. Entretanto, a obra se mantém sob o ponto de vista de Tarrell, afastando-se emocionalmente das vivências do pai — e a construção da empatia, ou não, fica a cargo do espectador.
É inevitável que essas experiências sejam projetadas para as futuras gerações: o protagonista sofre com a criação de seu filho, por não ter uma referência positiva de parentalidade na própria vida, mas luta diariamente para fugir de instintos agressivos e garantir uma infância feliz a ele. O longa deixa claro que, enquanto não houver um momento de ruptura, o sofrimento também será cíclico.
Outro aspecto que tem destaque é a religiosidade e a fé como pautas comportamentais — e sua influência tanto positiva quanto negativa nos relacionamentos dos personagens. Por um lado, a Igreja é uma poderosa fonte de apoio emocional para a mãe de Tarrell, e é essencial para a saída de La’Ron do mundo das drogas. Ambos ressaltam sua ligação com Deus e a sua crença na salvação e no perdão.
Por outro lado, o discurso religioso é apropriado para justificar os erros do passado de La’Ron. O sofrimento de Tarrell é menosprezado devido à uma suposta obrigação moral, de perdoar o pai para que ele possa seguir em frente. Assim, a obra pauta uma questão pouco questionada: até onde se estende o amor incondicional familiar? O perdão anda lado a lado com a reconciliação? Estas perguntas põem em cheque muitos conceitos pré-estabelecidos no universo cinematográfico, como em Manchester a Beira Mar (Manchester By The Sea, 2016) e A Cabana (The Shack, 2017).
“Você levou o passado, e eu entendo.
Tarrell
Mas o futuro é meu.”
O casal de artistas carrega a mensagem de que é possível quebrar ciclos de ódio e ressentimento através do diálogo. Por mais que haja desafios, a família se mantém firme e é retratada como uma fonte central de apoio para Tarrell. Essa imagem de superação de desafios, apesar de ser um tema recorrente, é muito bem retratada na obra, que vai muito além do clichê.
Em relação aos aspectos técnicos, a trilha sonora de Jherek Bischoff desperta diversos sentimentos intensos ao longo do filme. Incluindo uma música autoral de Aisha, ela contribui para uma atmosfera impactante, apesar de um pouco melodramática — condizente com a atuação dos protagonistas. A dimensão estética da obra também é interessante, visto que Lachlan Milne, responsável pela cinematografia, aposta no uso de cores vibrantes, que se relacionam com as pinturas de Tarrell.
As cenas de flashbacks da infância de Tarrell, talvez a parte mais interessante da obra, são responsáveis por momentos de aflição. Fortes visualmente e emocionalmente, elas ajudam o espectador a se conectar com o protagonista, por permitir que ele entenda, realmente, o que aconteceu no passado.
Como o protagonista exerce um trabalho semelhante ao do diretor do filme, fica o questionamento ao público se a história teria um cunho autobiográfico. Kaphar é pintor, escultor, e artista de instalações, e tem como objetivo artístico desmantelar estruturas clássicas e estilos de representação visual na arte ocidental, a fim de subvertê-los. Destrinchando narrativas ultrapassadas para compreender o seu impacto no presente, ele expõe de que forma os legados colonialistas manipulam a identidade cultural e pessoal da comunidade afro-americana.
Formado na universidade Yale e premiado internacionalmente, Kaphar conta, em entrevista à Reuters, que decidiu se aventurar no universo cinematográfico pois queria ajudar seus filhos adolescentes, de 15 e 17 anos, a entenderem as adversidades de sua criação. Em entrevista, ele disse: “Meus filhos estão em uma idade em que não posso continuar dizendo a eles: ‘quando vocês ficarem um pouco mais velhos, contarei mais. Vou lhe contar mais'”.
“Se não alterarmos a história criando novas imagens e novas representações, estaremos sempre nos excluindo.”
Titus Kaphar
A arte é um elemento intrínseco à obra, e é vista por Tarrell como uma ferramenta de reconstrução e releitura de seu passado. O poder canalizador da arte, que também tem peso pessoal para o diretor, é retratado com sensibilidade: a pintura funciona como uma válvula de escape para o casal protagonista, e ao mesmo tempo em que permite transmitir a sua realidade para o mundo, pode auxiliar no processamento de emoções complexas.
“Como posso pintar um dia de sol se não me lembro de já ter visto um?”
Tarrell
A obra, por vezes, reproduz alguns estereótipos cansativos, como o arquétipo de artista torturado, as cenas de sonambulismo violento e a ideia da pintura como cura para crises de ansiedade do protagonista. Porém, apesar das falhas pontuais, não deixa de ser comovente e de promover uma experiência especial para o público nas salas de cinema, possibilitando a reflexão acerca de diversos assuntos.
Confira o trailer: