Do inglês Folk (povo, nação, raça) + lore (conhecimento, saber), o folclore é a junção de expressões da cultura popular que fazem parte da identidade de uma nação. No Brasil, ele é o conjunto de lendas, brincadeiras, danças, festas, comidas típicas, histórias sobre criaturas míticas e fantásticas, que representa os costumes dos povos tradicionais de diversas regiões.
O folclore brasileiro e suas criaturas estão nas nossas raízes, e vez ou outra aparecem nas muitas produções do país. Algumas ficaram famosas e ganharam o coração de todos, como Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, mas, no geral essas histórias são pouco reconhecidas. Além de produções pouco populares, o folclore também tem se perdido na memória coletiva, e se torna cada vez menos presente no dia a dia do brasileiro.
Na cidade não cresce bambu
“Nana neném
Que a cuca vem pegar
Papai foi na roça
Mamãe foi trabalhar”
(Cantiga Popular)
Uma das canções de ninar mais conhecidas, cantada para boa parte dos brasileiros – pelo menos os nascidos e criados nas zonas rurais e pequenas cidades – usa a figura da Cuca para amedrontar crianças e fazer com que durmam na hora certa. Essa velha com cabeça jacaré que pega crianças desobedientes; o Saci, que some com objetos e trança o pelo dos animais; uma vassoura atrás da porta para visitas irem embora; adquirir verruga nos dedos por contar estrelas: tudo isso faz parte de crendices ligadas ao imaginário popular e à vida na roça. Com a ida da população para as cidades, o misticismo fica no campo, e é atenuado pela razão que marca o meio urbano.
![A Cuca, em ‘Sítio do Picapau Amarelo’ [Imagem: Divulgação/TV Globo]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2020/09/imagemcuca_tvglobo.jpg)
O folclore está fortemente ligado à educação informal, aos ensinamentos passados de geração para geração. Na educação formal, ele acaba sendo tratado de forma simples e rasa. O designer Anderson Awvas, criador do projeto Folclore BR: Uma Nova Visão, menciona que os ensinamentos folclóricos se reduzem aos primeiros anos de ensino e são quase sempre focados em contos de fadas. Isso vai se perdendo conforme o ensino avança, e o conhecimento do folclore é quase sempre remetido a esse período de nossas vidas. “Não há problemas em haver um conteúdo infantil ligado ao folclore, mas acredito que conduzimos mal o entendimento disso e essa palavra fica jogada no fundo da mente, acesa em momentos bem específicos”, diz Anderson.
Redemoinhos vindos de outras bandas
Além da perda decorrente da urbanização, a influência de culturas estrangeiras também pode ser apontada como um dos fatores para o distanciamento do folclore. A exportação cultural ocorre desde que povos diferentes começaram a interagir entre si, no Brasil, não foi diferente. A chegada dos portugueses e seu contato com os povos indígenas e, posteriormente, dos africanos, foram importantes para a construção das bases culturais do folclore brasileiro.
Entretanto, a chegada de novos povos e culturas que contribuiu para a formação folclórica brasileira também foi e continua sendo agente da sua perda. Apesar de outras nuances, o capitalismo pode ser destacado nesse contexto, pois a internacionalização que favoreceu a construção capitalista brasileira é o que provavelmente relativizou a importância do folclore na cultura nacional. Ricardo Mendes acredita que o surgimento de novas crenças sempre ocorrerá, mesmo que modernas e principalmente se atreladas ao consumo.
O escritor Egidio Trabaiolli Neto aponta que o que está em alta é o que vende, e que o folclore não possui investimentos para competir. “Quantas produções já foram feitas com vampiros, bruxas e heróis? Quantas mais serão feitas? Tudo é uma questão de oportunidade. Quando saiu a saga Crepúsculo, várias outras obras foram criadas no embalo do romance vampiresco.” Mas, apesar de a cultura nacional ser sufocada pelo estrangeiro, ele ressalta que quando personagens do folclore são usados em produções, eles fazem sucesso, basta olhar o Saci e a Cuca nas adaptações de Sítio do Picapau Amarelo ou a Caipora em Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997).
Abrindo a garrafa
Ulisses no País das Maravelhas, Spectro e Aritana, são alguns dos títulos que de alguma forma resgatam o folclore nacional, e vão de livros à produções audiovisuais e jogos. Egidio, que também é pedagogo e criador do grupo no Facebook Folclore e Lendas Urbanas do Brasil, conta que a ideia de criar a comunidade surgiu como forma de preservar nosso folclore e mostrar nossas lendas. Ele faz questão de publicar histórias que poucos conhecem, porque são as que mais correm risco de desaparecer. Além dos contos no grupo, ele também se dedica a escrever livros que trazem um pouco mais dessas lendas, como a saga de Ulisses, já com dois títulos publicados.
!['Ulisses no país das maravelhas' [Imagem: Divulgação/Editora Uirapuru]](http://jornalismojunior.com.br/wp-content/uploads/2020/09/livroulisses_editorauirapuru.jpg)
Anderson Awvas conta que após se interessar em fazer artes baseadas no folclore brasileiro, especificamente nos personagens e criaturas, criou o projeto Folclore BR: Uma Nova Visão para divulgar seus trabalhos e suas inspirações. Com o tempo foi divulgando outros trabalhos que já tratavam do tema. Anderson é autor da série de desenhos que recria capas de filmes da Disney como se fossem personagens folclóricos do Brasil. As artes ficaram famosas e ganharam muitos compartilhamentos por despertar o interesse do público, que acreditava se tratar de divulgações de novos filmes.
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Incorporar o folclore brasileiro em outras histórias já muito conhecidas tem sido também uma forma de evitar a perda. Segundo Egidio, “a Disney faz recontagens de obras o tempo todo. Eu também optei por seguir essa trilha em várias obras”. Ele ainda ressalta que a invasão de outras culturas ocorre o tempo todo, somos engolidos por personagens estadunidenses, europeus e japoneses. Usá-los em suas histórias, portanto, é considerado por ele como um ato de ousadia.
Já Samir Machado de Machado, um dos quatro escritores de Corpos Secos (Alfaguara, 2020), livro que nacionaliza os zumbis sob o nome de um personagem folclórico brasileiro, acredita que não se trata apenas de resgatar esse elementos culturais, mas de usá-los como base para contar novos histórias. Em seu livro, por exemplo, troca a explicação sobrenatural da existência dos corpos secos por uma interpretação de ficção científica.
Samir acrescenta que “a cultura popular é uma das coisas mais políticas que há, pois ela é a essência de identidades nacionais ou regionais, muito mais do que bandeiras ou hinos, que são apenas símbolos”. Para ele, diante os momentos surreais que vivemos, o realismo perde força. Nesse cenário “é a literatura fantástica e de ficção científica, com suas metáforas e alegorias, que traz as ferramentas para interpretarmos a realidade.”