Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Imagem e palavra: a complementaridade entre fotografia e literatura na arte

A incorporação mútua de duas manifestações artísticas relevantes transparece algo que vai além do retrato ou da escrita

Ao pensar no conjunto de obras de Clarice Lispector, a demonstração de uma inquietação diante da impossibilidade de capturar, através das palavras, o que a escritora chama de “o é da coisa” ou “instante-já” sempre foi uma constante. É a descrição narrativa de um sentimento que falta à palavra. Clarice deixa essa mensagem clara em seu livro Água Viva (Artenova, 1971), quando diz:

“Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer […]
Quero apossar-me do é da coisa […]
Fotografo cada instante […]
O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa.
O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha” 

 

Maureen Bisilliat, fotógrafa inglesa radicada no Brasil, de certo modo compartilha de inquietações próximas às de Clarice. A artista publicou o fotolivro Os Sertões: luz e trevas (IMS,1982) baseado no livro de Euclides da Cunha que retrata os acontecimentos da Guerra de Canudos, no sertão baiano. Sua ideia é fazer o espectador se deparar com aspectos que ultrapassam a narrativa do livro de Euclides, e ali algo é revelado além das fotografias que compõem a obra da artista: a captura de um elemento primordial, que se dá no encontro entre imagem e palavra.

O entrelaçamento entre o trabalho de Maureen e a narrativa de Euclides da Cunha, que em 2019 foi tema de exibição no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (IMS Rio), evidencia a intenção de apresentar uma composição sertaneja que ultrapassa os limites da escrita. Sentimento, inclusive, que permeia grande parte da obra de Maureen, como o trabalho A João Guimarães Rosa – Fim de rumo, terras altas, urucúia (Gráficos Brunner, 1974), em que a artista fotografa pessoas que inspiraram os personagens do livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, grande amigo da fotógrafa.

Exemplos clássicos como esses são pontos de partida para compreender a relação entre duas artes muito difundidas atualmente: a fotografia e a literatura. Artes que, sob uma primeira observação, não se entrelaçam, caminham por vias diferentes: a literatura através da escrita, sem o recurso visual, e a fotografia pelas imagens, sem o uso mais comum da narrativa pelas palavras. A reflexão que surge com os trabalhos de Maureen é o motivo de se racionalizar o deslizamento dessas manifestações artísticas para os campos uma da outra, onde o caráter narrativo da literatura é acrescido pela essência imagética da fotografia, e vice-versa. Onde tanto ficção quanto não ficção tornam-se imagens, e a impressão fotográfica de realidade, uma narrativa.

Para a escritora e crítica de arte Verônica Stigger, tal relação surge a partir de um namoro entre as artes, uma fascinação mútua. Ao relembrar a história da fotografia, a escritora comenta que, ao longo do tempo, a fotografia se tornou “uma arte interessada em pensar uma certa narrativa, ou a se constituir como um instante da narrativa”.

 

Imagem e palavra: duas fotos preto e branco, do rosto de homens, lado a lado em um livro branco
“Sertões: luz & trevas” (Raízes Artes Gráficas, 1982), de Maureen Bisilliat, com texto de Euclides da Cunha. [Imagem: Divulgação/Acervo IMS]
Imagem e palavra: imagem de homem com capa e chapéu pretos, encostado em uma parede, entre batentes de porta
“A João Guimarães Rosa” (Gráficos Brunner, 2a ed., 1974), de Maureen Bisilliat, com texto de João Guimarães Rosa. [Imagem: Divulgação/Acervo IMS]

A aura na fusão artística

Um elemento de proximidade na fusão das artes fotográfica e literária, nem sempre percebido de forma consciente, é a busca pelos espectros da narrativa, pelo que ultrapassa o visível ou o legível. Elemento tal que o filósofo Walter Benjamin chama de “aura” da obra de arte em seu ensaio A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1935), no qual explica que toda produção artística possui uma singularidade, uma aura que a torna única. Em combate ao argumento final de Benjamin, a complementação de elementos característicos de duas artes não leva à perda de autenticidade ou senso de unicidade, tendo em vista as capacidades técnicas de se reproduzir fielmente os espectros que nascem dessa relação.

Para a fotógrafa paulista Alix Breda, que incorpora escritas autorais como parte de suas fotografias, a “poesia, assim como a fotografia, abre caminho para a imaginação, para o que existe além da visão, seja ela verbal ou não verbal; apreendem instantes, lampejos de tempo. Elas conduzem o olhar para além da imagem em si, rumo ao invisível”. 

A captura fotográfica do instante narrativo torna-se também aura imagética e acaba por brincar com os limiares entre realidade e ficção: o que é mostrado na imagem se aproxima da realidade, sem perder o estímulo da encenação. O jogo de aproximação e afastamento de uma representação mais realista apresentado nessa fusão é potência para imaginar e refletir sobre o que é exibido. Na literatura, tudo que está escrito e contextualizado é a verdade naquele universo narrativo, assim, ao ser vinculada ao universo literário, a fotografia pode ser questionada quanto à autenticidade da realidade que expressa. O que é registro de um simulacro e o que é absorção do real?

 

View this post on Instagram

 

A post shared by alix breda (@springspells)

 

Por que unir imagem e palavra

A fotografia também é utilizada como forma de prolongamento da memória documental e como clareza da representação, característica explorada na relação com a literatura. Verônica comenta que, ao esbarrar com a narrativa, “ela [a fotografia] não é uma ilustração, mas funciona como um documento, como se quisesse atestar que aquilo que é dito na escrita narrativa é verdade e que está tudo dentro de um jogo da ficção”. Ou seja, a fotografia é um atestado da verdade, mas uma verdade dentro do universo ficcional, ao mesmo tempo em que está no universo da não ficção. É esse movimento que traz o jogo da encenação e da realidade para o caminho da razão e do consciente, algo que pode ser absorvido com mais clareza, tanto na intencionalidade de construção da narrativa quanto na composição fotográfica.

Trazer essa inter-relação entre imagem e palavra para vivências exploratórias também eleva o leitor e espectador a um outro primor artístico. A aura, ou fantasma da narrativa, quando capturada pela imagem, adiciona a substância do surreal, de algo que se mostra apenas quando há a visualização do sujeito sobre o qual se trata. Portanto a racionalização, enquanto processo necessário para a escrita, é abandonada sob o uso da imagem e nos conecta e comunica com uma sensação além-palavra que apenas o suposto realismo existente na fotografia é capaz de saciar. Os seres humanos são bastante visuais e é por isso que a narrativa literária, quando abarcada no âmbito fotográfico, ganha o ar da visualização concreta, ainda que por um processo subjetivo.

Incorporar a misticidade oculta é uma constante no trabalho de Alix, que afirma: “Como uma mistura, penso que na escrita imagética, a não verbal, quero apresentar a presença desse invisível, de algo que ao desaparecer, sobrevive na imagem. Uma insuficiência que a linguagem verbal me traz e que pode ser descrita somente ao se fazer essa captura. Mas, ao mesmo tempo, usar fragmentos escritos para pontuar a memória entrelaçada com os instantes dessa esfera íntima, de aproximar as palavras visíveis com o que está escrito fora do olho nu”.

 

 

View this post on Instagram

 

A post shared by alix breda (@springspells)

 

A imagem por meio das palavras

Na literatura, o detalhamento minucioso é o que carrega a bandeira da imersão fotográfico-literária. Uma das formas de se realizar um detalhamento minucioso pode ser verificada no uso das écfrases. Termo vindo do grego, significa um procedimento retórico e minuciosamente descritivo de uma pessoa, objeto, situação ou paisagem. A intenção primária da écfrase é descrever verbalmente de forma vívida, como se o acontecimento ocorresse diante dos olhos do leitor. Com a utilização das écfrases, a narrativa transforma-se em imagem-palavra. O caráter evocativo deste procedimento coloca o leitor no campo imagético do que ocorre na narrativa.

Na fusão das artes, sair pelo mundo real tentando demonstrar o “é da coisa”, oinstante-jáou a “aura” da obra literária é parte essencial desse namoro, através da busca dos sujeitos e instantes narrativos. Seja o flerte espontâneo ou encenado, tudo faz parte. Novamente, o jogo entre a ficção e a realidade é o que vale. O sertão de Euclides da Cunha e o sertão de Maureen são os mesmos, mas sob perspectivas diferentes. A intenção final é sempre o que se representa na imagem versus o que se percebe na narrativa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima