Por Júlia Sardinha (juliasardinha@usp.br)
Dar à luz a um videogame não é tarefa fácil. Camille Regel e João Kecek são jovens desenvolvedores de jogos que partiram da curiosidade à tentativa e, hoje, já são capazes de dar vida aos seus próprios projetos, como o Mechanines Tower Defense (Flying Cakes Studios, 2024). A criação deles chega à Gamescom, considerada a maior feira anual de games do mundo, desde ano como indicados nas categorias “Melhor Jogo: Brasil” e “Melhor Jogo de Estudante”.
Camille enxerga os eventos de jogos como oportunidade única para se fazer conexões, conhecer criadores e trocar experiências. A ansiedade dos dois para conhecerem outros profissionais e projetos na Gamescom 2025 também divide espaço com as altas expectativas sobre as duas indicações que o Mechanines Tower Defense recebeu após Camille e João terem submetido o seu trabalho para a seleção da feira.
A notícia da indicação foi recebida por e-mail e ambos tiveram que guardar o segredo por um tempo. Já compartilhada entre conhecidos e apoiadores, a felicidade veio após o anúncio oficial da Gamescom e serve de incentivo para que Camille e João criem e inovem cada vez mais dentro do mercado de jogos digitais.
Lançado em outubro, o jogo de Camille e de João fez a sua estreia logo na maior feira de games da América Latina, na Brasil Game Show (BGS). Para ambos, a BGS tem ficado mais fraca a cada ano, uma vez que se tornou um encontro de grandes empresas, não dando muito espaço aos game makers independentes, como eles. A indicação na Gamescom 2025, por outro lado, indica se tratar de um evento mais inclusivo e diverso para os desenvolvedores.
Apesar dos embates por espaço e visibilidade, Camille e João foram recepcionados positivamente pelo público da BGS. “Nós ficamos muito felizes em ver o pessoal curtindo o jogo e deixando feedbacks, até mesmo engajando essa experiência que criamos com tanto carinho, sendo muito mais que um produto no mercado para nós”, afirma Camille.

Até ocuparem um espaço na Avenida Indie da BGS – reservada para criadores independentes –, Camille e João correram contra o tempo. “Nós trabalhamos muito e abrimos mão de muitas coisas para conseguir lançar o jogo a tempo da feira”, afirma a game designer.
Eles conseguiram lançar em tempo recorde, tanto para desenvolvedores profissionais – e já bem estabelecidos no mercado – quanto para ingressantes nesse universo. Custaram sete meses para que o Mechanines Tower Defense estivesse pronto para estrear os seus criadores no ramo.
De acordo com João Kecek, para um jogo pequeno ficar pronto – ou seja, já inserido e consolidado entre o público – são necessários, aproximadamente, dois anos. Ele acrescenta que o tempo de produção aumenta quando o game vem de empresas maiores, uma vez que testes de qualidade, chamados de playtests, devem ser feitos com maior frequência. Como exemplo, João coloca o desenvolvimento do Grand Theft Auto (GTA) 6, que foi anunciado há uma década, mas com lançamento previsto para 2025.
“Não adianta você fazer um jogo bom mas que o inimigo não morre nunca (…). Aí fica chato, entediante. Por isso é importante fazer um ‘ajuste fino’ [testes].”
João Kecek
Para Camille, outro fator importante no processo criativo de um game é a garantia de que será algo divertido, uma vez que a ideia do jogo é deixar o jogador imerso no mundo criado pelos desenvolvedores. No campo profissional dos jogos digitais, esse foco é chamado de “círculo mágico”, um lugar de intensa concentração no fantasioso que tem como objetivo desligar o usuário da realidade em que vive.
Imersos no mundo dos videogames desde cedo, os dois alunos do terceiro ano do curso de Jogos Digitais da PUC-SP se encantaram pela produção de jogos. O interesse de João — programador do Mechanines — veio após descobrir que alguns dos itens disponíveis para os personagens no jogo Team Fortress (Sierra Studios, 1999) foram criados por outros jogadores. Já para Camille — desenvolvedora da arte gráfica —, a paixão é de berço, tendo sido influenciada pelos seus familiares a gostar de jogos desde sempre.
Chamem os cachorros!
Logo no primeiro ano do curso, João e Camille tiveram que criar um videogame como trabalho final. O que foi apresentado veio a ser o protótipo do Mechanines Tower Defense. Para a BGS e estreia do jogo, os dois deram sequência no desenvolvimento do projeto a partir das exigências postas pelos seus professores: deveria ser um game com temática de viagem no tempo, 2D, pixelado e com a perspectiva gráfica no estilo top-down.
Segundo Camille, eles começaram a desenvolver o videogame pela sua mecânica — à grosso modo, como o jogo funcionará. Ter dado o pontapé inicial com a jogabilidade do jogo em mente os permitiu pensar na sua criação como um conjunto de engrenagens que o fariam ser posto em movimento. Para ilustrar o termo, João usa como exemplo o Super Mario Bros: “A mecânica do Mario é pular, desviar e matar os ‘bichinhos’”.
Para deixarem o jogo mais estratégico e desafiador, a mecânica escolhida por eles foi uma junção entre o gênero Tower Defense e o subgênero Roguelike. “O Tower Defense é quando você precisa proteger uma base dos inimigos, colocando torres no caminho deles. Já o termo ‘roguelike’ vem de fases geradas de forma aleatória e, se você perde, tem que recomeçar do zero”, explica Camille.

A escolha da narrativa veio por último e a partir de uma brincadeira entre amigos, fazendo jus a distração que os jogos digitais se propõem a fazer. Antes do jogo ser tocado apenas pelos dois, outros três colegas completavam o grupo. “Um amigo nosso comentou: ‘já tem o jogo do macaquinho [o Bloons Tower Defense], vocês farão do que agora? De cachorro?’. E nós achamos genial, aí misturamos um pouco de cachorros, um pouco de robôs e saiu”, diz João Kecek.
Assim surgiram os personagens do Mechanines: os EvoDogs, uma elite de cães evoluídos, treinados e armados que protegem o planeta Terra pós-apocalíptico. Cada personagem – que pode receber um nome próprio como Helen Shibyster, Christian Pinschzilla e Maria Bordie – possui uma habilidade que pode ser aperfeiçoada pelo jogador por meio da compra de utensílios ou do avanço dos níveis.
“A Terra caiu sob o domínio implacável das máquinas, as cidades foram destruídas e a esperança parecia extinta… Até que os EvoDogs entraram em ação!”
Sinopse do jogo Mechanines Tower Defense
Para incrementar a experiência, é possível selecionar até mesmo o meio de ataque – terrestre ou aquático – dos mais de 15 tipos de alvos inimigos, os robôs. Com tantas possibilidades de escolha, João e Camille criaram um jogo no qual cada partida se torna uma aventura que exige estratégias diferentes, porém sem ser complexo ao jogador.
“Nós não queremos fazer um jogo tão difícil nem um jogo tão fácil. Nós queremos fazer um jogo ‘meio-termo’ justamente para pegar um público maior, que tanto uma pessoa de 12 anos quanto uma de 37 anos consiga jogar”, declara Camille.
O mundo (dos jogos digitais) é um ovo no Brasil
Antes de ingressarem na faculdade, João e Camille tiveram contato com plataformas de desenvolvimento de videogames por conta própria. João conta que adentrou a programação de modo gradual entre os aplicativos: do Scratch à Unity e Game Maker. Camille sempre gostou da arte pixelada e começou a fazer jogos sozinha no RPG Maker, sob o aprendizado e a influência do game designer brasileiro Pedro Medeiros, desenvolvedor artístico do jogo Celeste (Maddy Makes Games, 2018).
Os estudantes colocam que a ida à BGS foi, inicialmente, planejada para ser feita em conjunto com outros colegas da universidade. No fim, apenas Camille e João tiveram um stand no evento, mas a exclusividade não significou uma “porta de entrada” amistosa para ambos no mercado de trabalho.
“Eu acredito que os desenvolvedores [de jogos] são uma família gigante porque todo mundo se ajuda. O pessoal é muito amigável e nós temos que nos ajudar a crescer mais.”
Camille Regel
O apoio das pessoas – familiares, amigos e jogadores – que acompanham a dupla é bastante valorizado por Camille e João. O vínculo e o cuidado com o seu público levou os dois a compartilharem e tomarem decisões em conjunto com os seus seguidores pelo Instagram. A novidade discutida? Uma enquete para voltarem qual dos EvoDogs deveria virar uma pelúcia.
A ideia de materializar o jogo já era um objetivo, e foi muito bem recepcionado por Camille e João quando eles receberam a proposta das pelúcias de uma empresa estrangeira. Os dois revelam que o público de jogos é muito apaixonado pelas obras que admiram e, por isso, costumam fortalecer vínculos pelos mundos e personagens através de itens físicos, como quadros e figures.

Eventos de games no Brasil têm ganho visibilidade e volume de público, profissionais e simpatizantes. De acordo com a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais (Abragames), o mercado de videogames cresceu cerca de sete vezes em dez anos no país. Apesar disso, ele ainda é pequeno, sobretudo para os desenvolvedores independentes — os indies —, como é o caso dos criadores do Mechanines Tower Defense.
Além da invisibilidade, João destaca as dificuldades financeiras para se produzir jogos. “É muito arriscado investir em jogo [por parte das empresas hegemônicas], porque você pode passar anos fazendo um jogo que não dará certo. Não temos como provar aos investidores um sucesso em grande escala”, declara.
Como jovens desenvolvedores de jogos, Camille e João já chegaram muito longe. De acordo com eles, os próximos passos nas suas carreiras profissionais são aprender e evoluir dentro da indústria de jogos, sobretudo quanto às novas tecnologias, novas linguagens, designs e formas de se conectar com o público. “O foco agora é estudar, experimentar, errar, acertar e, com toda a certeza, continuar criando jogos que consideramos especiais para nós”, declara Camille Regel.
*Trailer do jogo: https://www.youtubeeducation.com/embed/vLUeYtqQP7w