Se eu listar várias obras e produtos da cultura pop e dizer que todas elas compartilham a mesma temática, você acredita? De narrativas religiosas a histórias em quadrinhos, passando por poemas épicos, textos filosóficos, animações da Disney e clássicos da literatura de ficção, indo até vídeos do YouTube, documentários e contos populares, os mistérios do fundo do mar estão presentes.
Vou mostrar: Odisseia, Aquaman, A pequena sereia, Atlantis, Vinte mil léguas submarinas, Moby Dick, Moana, Namor, Platão, mitos gregos, romanos, nórdicos, japoneses e de, basicamente, qualquer outra cultura. Inúmeros programas de televisão, livros, filmes, jogos, séries… A lista de narrativas é infinita. Se há um elemento quase universal na cultura, é o misterioso fundo do mar. Das lindas e perigosas sereias ao reino perdido de Atlântida, a ideia é a mesma — há muito mais sobre o fundo do mar do que sequer imaginamos.
Para Ana Maria Vanin, doutora em oceanografia biológica pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), o fundo do mar é visto como um local misterioso por várias civilizações e pelo imaginário coletivo “por falta de conhecimento sobre a profundidade dos oceanos durante milhares de anos em que a humanidade viveu no planeta Terra”. Vanin conta que, embora a dinâmica dos ventos e das águas marinhas já fossem, em parte, conhecidas por Dom Henrique de Portugal em meados do século 15 — o que permitiu as grandes navegações portuguesas —, nada se sabia sobre as profundezas marinhas, como era o fundo do mar e o que havia ali.
O homem é uma espécie essencialmente terrestre, pouco adaptado à vida dentro d’água, o que limita a capacidade de acesso aos ambientes aquáticos mais profundos. Até meados de 1800, acreditava-se que toda forma de vida terminava ao se atingir 600 metros de profundidade. A profundidade do Oceano Atlântico só foi realmente conhecida no século 19, com a necessidade do homem colocar cabos telegráficos entre a Europa e a América do Norte. A partir daí, com o incentivo às expedições científicas para estudo das profundidades abissais do Atlântico, a ciência da oceanografia dá seus primeiros passos. É nesse momento que se inicia o processo de conhecimento da dinâmica das regiões abissais e, principalmente, da desmistificação do fundo do mar.
Segundo Rafael de Almeida Tubino, professor do Departamento de Biologia Animal da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e doutor em biologia marinha, aproximadamente 71% da superfície do planeta está debaixo d’água e mais de 80% dos fundos marinhos possui profundidades superiores a 2000 metros. Por conta disso, os oceanos podem ser considerados uma fronteira para o conhecimento em relação à diversidade biológica, processos biogeoquímicos e evolutivos. “Podemos dizer, inclusive, que as áreas mais profundas dos oceanos guardam uma biodiversidade pouco conhecida, com formas de vida bem diferentes daquelas que estamos acostumados a ver em águas costeiras mais rasas”, conta Tubino.
Ok, está estabelecida a falta de conhecimento sobre o fundo dos oceanos e a dificuldade de acesso a eles, principalmente sem o devido amparo tecnológico. Mas, de onde surgiram as lendas que inspiraram tantas histórias? A resposta talvez seja mais simples do que parece. Vanin pontua que “essa lenda está no inconsciente coletivo da humanidade e está ligada fundamentalmente ao medo que as pessoas tem do desconhecido”.
Tubino completa lembrando que “os maiores animais que vivem atualmente no nosso planeta são encontrados no mar, como a baleia-azul — 25 vezes mais pesada do que o maior animal terrestre, o elefante africano — e as lulas gigantes, que raramente são vistas, justamente porque vivem em grandes profundidades de áreas oceânicas”. Quando esses animais ocasionalmente surgem na superfície, podem ocorrer encontros com pescadores e trabalhadores do mar, estimulando a imaginação por trás de muitas histórias de criaturas marinhas.
A tecnologia permitiu ampliar consideravelmente o conhecimento que se tem do fundo dos oceanos. Com ela, foi possível levar os pesquisadores até a fossa das Ilhas Marianas, situadas a 12 mil metros no Oceano Pacífico, a maior profundidade marinha registrada até hoje. Assim, a compreensão sobre a vida marinha também aumentou.
À medida que a distância da costa e a profundidade da água aumentam, os organismos subaquáticos se modificam devido à diminuição do alimento disponível. No fundo do mar, esse alimento é, em grande parte, formado na zona fótica dos oceanos pelo processo da fotossíntese. Tal zona é iluminada de forma decrescente pelos raios solares e tem espessura de cerca de 200 metros. Abaixo dela, a escuridão é total.
“Os fundos marinhos sob a zona fótica são ricos em abundância e diversidade de espécies animais e vegetais, permitindo o desenvolvimento de ecossistemas produtivos, tais como os fundos vegetados de algas e gramíneas marinhas, os recifes de corais e os manguezais”, conta a oceanógrafa Ana Maria Vanin. Apesar da escuridão, os fundos marinhos abissais, mais profundos, também possuem vida abundante, sustentados por matéria orgânica produzida por bactérias que utilizam sulfetos e metano ao invés do oxigênio, que fica restrito a sedimentos da zona fótica.
Um exemplo surpreendente desses fundos abissais pode ser encontrado na Cordilheira Mesoatlântica. Nesse ambiente de instabilidade geotérmica, gases muito quentes com sulfetos eclodem por chaminés que surgem no assoalho da cordilheira, formando o ambiente das chamadas fontes hidrotermais. Estas “são colonizadas por comunidades incomuns, que vivem ao redor das chaminés e dependem da quimiossíntese realizada por bactérias quimioautotróficas (que utilizam energia da quebra de ligações químicas)”, segundo Vanin.
As fontes hidrotermais foram descobertas apenas na década de 1970 no Oceano Pacífico e são como oásis para formas de vida completamente diferentes, capazes de viver em ambientes onde as temperaturas podem atingir os 350 ºC, longe da superfície e sem luz. “Antes da descoberta destes ecossistemas tão diferentes, acreditava-se que toda a vida marinha dependia basicamente da fotossíntese dos produtores primários”, conta Tubino. Entretanto, nestes ambientes, onde a luz não chega, os produtores primários são organismos quimioautotróficos, capazes de produzir energia e biomassa a partir de compostos de enxofre que são liberados do assoalho por chaminés. Por sua vez, estas bactérias servem de alimento a vermes, caranguejos e até peixes, que se adaptaram à vida nestas condições especiais.
Esses ecossistemas são caracterizados por diversidade baixa, mas biomassa muito alta, que chega a ser 3000 vezes maior que a da região ao redor. Possuem animais de grande porte, como os vermes tubícolas Vestimentifera, com cerca de três metros de comprimento, que ficam presos ao fundo. Na ponta livre de cada indivíduo fica um colar vermelho longo que abriga as bactérias produtoras de compostos orgânicos responsáveis por sua alimentação.
O fundo do mar esconde ambientes incríveis e impensados pelo homem, mas será que isso inclui cidades perdidas super avançadas que afundaram com a ira de um deus ou com a explosão de um vulcão? O debate sobre o reino perdido de Atlântida se estende até hoje, com buscas por possíveis resquícios arqueológicos nos oceanos, seguidos por refutações e novas buscas, inspirando tantos filmes e histórias sobre a mitológica Atlantis.
Já sobre o mito das sereias, criaturas híbridas da mitologia grega, o professor Tubino afirma que este serviu para personificar aspectos do mar ou os perigos que ele representa. “É possível também que tenham origem em relatos com peixes-boi (sirênios), mamíferos aquáticos herbívoros que vivem em águas rasas costeiras”, propõe ele.
Diferente das sereias, existem animais que habitam as “histórias de pescador” e são comprovadamente reais. Um exemplo deles são as lulas gigantes. Tubino conta que, embora elas sejam consideradas por muitos como criaturas monstruosas, especialmente em função do seu tamanho, existem animais ainda maiores habitando o fundo do mar. “Além das lulas-gigantes do gênero Architeuthis, que podem atingir 13 metros, existem as lulas-colossais (Mesonychoteuthis Hamiltoni), que são ainda maiores, podendo ultrapassar os 15 metros de comprimento”. Esse é considerado o maior invertebrado em peso do planeta e a espécie que possui os maiores olhos entre todos os animais vivos.
O doutor em biologia marinha explica o motivo de os animais abissais serem tão grandes. Segundo ele, a grande disponibilidade de espaço no ambiente marinho e a redução do peso corpóreo na água permitem que os maiores animais do planeta sejam aquáticos. O processo evolutivo em que os animais que vivem abaixo dos 4000 metros atingem tamanhos descomunais é conhecido como gigantismo abissal. “Acredita-se que o crescimento gradativo e contínuo, associado a um metabolismo mais lento, permita que estas espécies consigam atingir tamanhos corpóreos excepcionais”, conclui Tubino.
Esses são os animais que inspiraram lendas como a do Kraken, uma lula com cem tentáculos e do tamanho de uma ilha que habitava águas profundas do Atlântico norte e destruía navios. E não são apenas as lulas: os caranguejos-gigantes (Macrocheira Kaempferi), de quase quatro metros de comprimento, são outros dos animais “monstruosos” que habitam os oceanos — e o imaginário popular.
Por outro lado, muito menos lenda e mais real do que a sociedade acredita são os efeitos da ação humana nos oceanos. Rafael Tubino conta que um dos maiores desafios dos biólogos marinhos atualmente é entender como as espécies vão se comportar diante de tantas mudanças ambientais, como o aumento de áreas mortas e as mudanças climáticas.
Além disso, outra história desmistificada é que o fundo dos oceanos permanece intocado pelo homem. Antes fosse: a poluição por microplástico — pequenos fragmentos que se originam de têxteis sintéticos ou derivados da quebra de detritos plásticos maiores — nestes ambientes já é uma realidade. “Alguns pesquisadores estimam que até 99% do microplástico dos oceanos tende a se depositar no fundo, formando inclusive áreas de concentração como depósitos de micropartículas”, finaliza o professor.