Foi durante a Escandinávia medieval que uma interessante religião se desenvolveu e influenciou os costumes e cultos de toda uma população — o que hoje chamamos de mitologia. Deuses como Odin e Thor eram reverenciados — e provavelmente são as mais famosas divindades do panteão nórdico —, mas há muito além para se explorar nesse fascinante conjunto de lendas, que são até hoje uma enorme fonte de inspiração para a cultura popular.
Em entrevista ao Sala 33, as pesquisadoras Thais Trindade e Sara Oderdenge, ambas da FFLCH-USP, relatam a visão acadêmica, literária e histórica sobre essa sociedade e mitologia, que vai muito além de nomes estranhos e estereótipos, abordando a importância de obras históricas, releituras e adaptações atuais na cultura popular.
História e mitologia
A princípio, é importante nos atermos ao contexto histórico da Era Viking (793-1066) na Escandinávia. Sara conta que não havia unidades políticas como conhecemos hoje nas nações da Dinamarca, Noruega e Suécia, por exemplo, mas havia aproximação cultural, religiosa e linguística. Ainda que esta última possuísse diferenças regionais pontuais, é de suma importância para os estudos literários contemporâneos. Entre as obras mais importantes no campo literário e linguístico, Thais destaca as Eddas, conjuntos literários dos mitos, e as sagas lendárias, além das poesias escáldicas e o trabalho do historiador medieval Saxo Grammaticus.
Sara aponta que a sociedade era estratificada, com muitas diferenças entre os estratos alto e baixo. Resumidamente, via-se três estratos bem definidos: escravos, importantes para as relações econômicas da região, podiam ser conquistados através do expansionismo ou tornados através de crimes; indivíduos livres, cuja composição era feita de fazendeiros, pescadores, caçadores, mercadores, entre outras profissões; e a elite governante guerreira, a qual detinha o poder político e econômico majoritário. Entretanto, pouco se sabe sobre as classes mais baixas, mobilidade social e subdivisões dos estratos. A pesquisadora aponta para um erro comum no que se refere ao imaginário popular sobre sociedade medieval escandinava: os vikings eram os responsáveis pela navegação e expansão, mas não constituíam a totalidade da civilização nórdica.
Em se tratando da religião, realizavam-se cultos e rituais para os deuses, aos quais a população recorria e orava para os mais diversos assuntos. Thais ressalta que muito do que se sabe sobre a religião dessa civilização está nas Eddas e nas Sagas, escritas, em sua maioria, na Islândia posterior à cristianização da escandinávia, desta forma, não possuímos muitos manuscritos e documentos da época do apogeu desta religião, mas muito ainda pode ser analisado através da historiografia e da análise de runas, construções e legados culturais, como nomes de locais.
Segundo a tradição mitológica, havia nove reinos, cada um com suas particularidades, são eles: Midgard, Asgard, Vanaheim, Alfheim, Svartalfheim, Jotunheim, Helheim, Muspelheim e Niflheim. Todos os reinos estavam conectados à grande árvore do mundo, a Yggdrasil, que poderia ser atravessada através da Bifrost, ou ponte arco-íris, responsável por conectar os reinos.
Os deuses, possivelmente as figuras mais famosas da mitologia, dividem-se entre os aesir e os vanir, dois clãs que viviam em guerra, a qual foi superada através de um tratado de paz. Odin, Thor, Loki, Frigga, Balder, Tyr, Frey, Freya e Hela são alguns dos mais famosos.
Também há espaço para diversos outros seres, como Hugin e Munin, corvos de Odin e responsáveis por informá-lo sobre o que acontece no mundo; elfos, dividos entre negros e de luz; anões, reprensentados por Brokk e Eitri, responsáveis por forjarem armas como o mjölnir, martelo de Thor, e gungnir, lança de Odin; gigantes, como os pais de Loki, Fárbauti e Laufey; Draugrs, criaturas próximas a mortos-vivos. Bem como as lendárias valquírias, mulheres responsáveis por guiar os einherjar — guerreiros que morreram honrados em batalha para Valhalla, onde comem, bebem e se preparam para o profético apocalipse.
Destaca-se também Surt, um temido gigante de fogo que vive em Muspelheim e os filhos de Loki: Jörmungandr, uma gigantesca serpente cujo tamanho poderia dar a volta completa no mundo; Hel, governanta de Helheim, o reino dos mortos; Fenrir, um lobo acorrentado pelos deuses que possui dois filhos, Skoll e Hati, que caçam o sol e a lua, e quando os alcançam, é chegado o Ragnarök, uma intensa batalha entre os deuses contra Surt, Loki e os filhos do Deus da trapaça, a qual será tão intensa que levará ao fim de tudo.
Na cultura popular
Atualmente, observa-se um relevante número de produções inspiradas pela mitologia nórdica, em diferentes formatos de produção, seja na literatura, cinema, quadrinhos, jogos e outras mídias.
Devido à falta de estudos sobre a Escandinávia no ensino básico, essas produções voltadas à cultura popular muitas vezes introduzem esse rico universo ao público geral, como observa Thais Trindade: “Eu vejo como algo interessante, para que as pessoas possam ter a intenção de ir atrás de algo mais, então é muito importante como um primeiro contato, já que não temos tanto esse tipo de referência durante a educação básica”, mas ressalta que a “fidelidade à tradição depende muito da intenção de cada obra”.
Na literatura, J.R.R Tolkien, um dos mais famosos escritores de ficção e famoso por ter criado a terra média de O Senhor dos Anéis e O Hobbit, possui algumas influências da mitologia nórdica. Entre elas, Sara destaca a aproximação entre Gandalf, o cinzento, e Odin, que às vezes andava maltrapilho por Midgard. Alguns críticos também destacam a possível influência da ópera O Anel de Nibelungo, de Richard Wagner.
Outro famoso escritor voltado à escrita infanto-juvenil é Rick Riordan, que em seu “Riordanverso” repleto de mitologias clássicas, há espaço para deuses nórdicos através de sua saga Magnus Chase e os deuses de Asgard.
Muitas pessoas tiveram o primeiro contato com a mitologia através dos quadrinhos e filmes da Marvel, que possuem Thor e Loki como alguns de seus personagens mais famosos, ambos inclusive aclamados pelo público por suas adaptações cinematográficas, interpretados por Chris Hemsworth e Tom Hiddleston. Contudo, a casa das ideias faz algumas alterações na mitologia original, como o fato de Loki ser irmão adotivo de Thor, já que originalmente o deus da trapaça é irmão de Odin por um juramento de sangue. A concorrente DC também possui suas representações do panteão nórdico, mas prefere dar mais destaque às divindades gregas.
As telinhas também contam com séries que possuem referências mitológicas. Entre as mais famosas está a aclamada Vikings (2013-2020), finalizada com seis temporadas, na qual Thais ressalta que, em alguns contextos, “as personagens se referem como descendentes de Odin”, assim, mostra-se que a religião era influente na sociedade.
Há também a série Ragnarök (2020-), produzida pela Netflix, que aborda como seria a reencarnação dos deuses nos tempos atuais na Noruega. Sobre a série, Sara destaca a relação trabalhada entre os problemas ambientais atuais com os que antecedem o próprio Ragnarök mitológico.
Outra produção de destaque é a série Deuses Americanos (2017-2021), disponível na Amazon Prime, baseada no romance homônimo de Neil Gaiman, também autor do livro Mitologia Nórdica, uma excelente introdução àqueles que pretendem conhecer mais sobre o assunto.
Os jogos também não ficam para trás, God of War (2018), eleito jogo do ano pelo Game Awards, é uma continuação da franquia homônima que se passava na mitologia grega e agora explora os noves reinos com um protagonista envelhecido e acompanhado de seu novo filho, que possuem a missão de chegar ao mais alto ponto dos nove reinos para jogar as cinzas da esposa e mãe que faleceu. E como se trata de um God of War, as épicas batalhas com deuses não poderiam faltar. Thais chegou a fazer uma análise mais cuidadosa do trabalho do jogo em relação à figura de Freya, já que há pontos de referências de Frigga na personagem. Isso acontece pois, em algumas versões de lendas, elas são a mesma divindade, ainda que o mais aceito seja sua diferenciação. Assim, a obra faz uma releitura sobre a discussão, de modo com que ela se encaixe na narrativa.
No campo musical, além de Richard Wagner já citado, algumas bandas de rock e metal trabalham a mitologia em suas letras, com destaque para a famosa música Immigrant Song, da lendária banda de rock Led Zeppelin.
Em meio a tantas contribuições, Sara alerta sobre algumas noções perigosas sobre a sociedade nórdica medieval. Entre os estereótipos, alguns são inofensivos, como os chifres nos elmos, outros são perigosos, como a crença de que os vikings eram todos brancos, altos e violentos saqueadores — conceito já debatido através de estudos, como a pesquisa realizada pela Universidade de Copenhague, que afirma que a população possuía uma boa variabilidade genética — noções que às vezes se alinham à masculinidade exacerbada pela violência e às questões étnicas utilizadas por alguns grupos políticos de extrema-direita, como a superioridade branca. Essa tentativa conservadora de associação aos vikings pode ser vista na tentativa de invasão do capitólio americano por apoiadores do então presidente Donald Trump — que fora superado por Joe Biden de forma democrática —, pois entre eles encontrava-se um manifestante que estava fantasiado de Viking.
Contrapondo esses equívocos, os nórdicos são responsáveis por contribuições significativas à humanidade, como a própria mitologia, técnicas de navegação e chegada a locais inexplorados até então — alguns pesquisadores chegam a afirmar que chegaram à América antes da época das grandes navegações —, além do intercâmbio cultural, observado, por exemplo, nos dias da semana na língua inglesa — Thursday e Friday seriam os dias de adoração a Thor e a Frigga, respectivamente —, já que os vikings chegaram à Grã-Bretanha e conheceram os anglo-saxões. Essa contribuição é vista até na tecnologia, já que o símbolo do Bluetooth é uma junção de duas runas nórdicas medievais.
Atualmente, assistimos a um movimento curioso na Islândia, protagonizado pela Associação Ásatrú: a tentativa de reviver o paganismo nórdico. A origem dessa organização encontra-se na glorificação das sociedades pré-cristãs da Europa Germânica. Há também uma perigosa extensão desse movimento com bases nacionalistas e racistas que enaltecem a mitologia como elemento cultural reservado a esses povos. Esse é certamente um ponto que exemplifica como a expansão das lendas nórdicas está fazendo parte do imaginário popular, criando-se até uma forma de “neopaganismo”.
Adorei a matéria! Muito interessante observar como somos influenciados até hoje por criações milenares.
Parabéns pelo trabalho, Léo!
Sensacional! Parabéns pela escrita!
Sucesso, lel, estou c sdds