Quando o artista tem muito a dizer, só um estilo musical não basta
Por Daniel Morbi (daniel.morbi@gmail.com)
Os gêneros musicais vêm carregados de visões de mundo e estereótipos. Como se fossem divididos em segmentos, cada gênero supostamente representa certo tipo de pessoa. O punk, por exemplo, caracterizaria um espírito de revolução e revolta, enquanto uma música clássica retrataria sobriedade e emoções mais refinadas. Porém, certos artistas são tão multifacetados que não se restringem a essa divisão. Seus diferentes sentimentos os levam a explorar diferentes estilos.
Esse ecletismo, porém, não parte somente dos músicos. Os próprios gêneros se baseiam em estilos anteriores a eles. O rock teve suas origens no blues, no jazz, na música clássica e na música country. O blues e o jazz, por sua vez, surgiram das “worksongs”, canções dos escravos africanos nos Estados Unidos feitas, muitas vezes, com instrumentos improvisados.
Já a música clássica tem sua base na música litúrgica cristã e na Grécia Antiga, enquanto o country tem suas raízes no folk e na música celta. Ou seja, por mais segmentados que os gêneros pareçam ser, eles são, na realidade, misturas de diferentes estilos, culturas e sentimentos. Assim como o são os músicos ecléticos.
Na visão de um músico
Vítor Cunha Gutierres é vocalista e guitarrista da banda paulistana Shiva. Criada nos tempos de escola, a banda independente passou por reformulações durante os últimos anos. Membros saíram e as músicas mudaram. De covers de bandas como Guns N’ Roses e The Strokes, a Shiva passou a tocar músicas próprias, compostas por Vítor. Porém, essas músicas eram diferentes daquelas ouvidas pelos membros. “Foi questão de eu me conformar, porque a música, da maneira que ela vem pra mim, é composta desse jeito, que, por acaso, não é o mais parecido com o que eu ouço, algo mais pesado. O som que eu componho é mais tranquilo. Eu ainda classificaria dentro do rock, mas puxaria para o pop rock”.
Além de músicas autorais, a banda se desvia do rock utilizando músicas de filmes, séries e vídeo games no Project Mashup. Nele, essas composições são rearranjadas, criando uma nova faixa musical. Vítor ressalta as diferenças desse tipo de trabalho: “Naturalmente tem a dificuldade técnica, às vezes, você pega uma música existente pra usar no Mashup e se depara com coisas que você não faria. É como teatro. Você está interpretando”.
Diante dos diferentes tipos de música com as quais trabalha, Vítor acredita que um estilo consegue transmitir sentimentos que outros não conseguem. Um exemplo, para ele, é o novo álbum da banda inglesa Muse, The 2nd Law. Ele acredita que, com a abordagem estilística diferente desse álbum em comparação com trabalhos anteriores, a banda não conseguiu transmitir sua mensagem muito bem. “Cada estilo de música já tem uma ideia”.

Do rock pesado à sinfonia
Exemplo de músico que segue a ideia de que cada gênero expressa sentimentos diferentes é Serj Tankian. Nascido em Beirute, no Líbano, Tankian mudou-se, junto com sua família, para os Estados Unidos aos sete anos. Tendo vivido em Los Angeles, Califórnia, frequentou escolas dedicadas ao ensino da cultura e língua armênia, o que tem muito a ver com as suas origens. Ao entrar na universidade, passou a tocar instrumentos e a escrever canções.
Após trabalhar no ramo de joias e em uma empresa de softwares, ele quase seguiu carreira no Direito, tudo antes de decidir se tornar músico. Em 1993, ao dividir um estúdio com outro grupo, Tankian conheceu Daron Malakian, com quem formaria a banda Soil. Após a separação dessa banda, os dois, junto com Shavo Odadjian e John Dolmayan, formaram o conjunto de metal alternativo System Of A Down.
De 1998 a 2006, o SOAD, como é chamado pelos fãs, lançou cinco álbuns e várias canções de sucesso, como Toxicity, Chop Suey!, Aerials e B.Y.O.B.. Mesmo após ganhar um prêmio Grammy de Melhor Performance de Hard Rock, com B.Y.O.B., a banda decidiu entrar em hiato. Nenhum álbum novo foi lançado desde 2006, apesar de ter sido realizada uma turnê mundial em 2011.
Em carreira solo, Tankian aventura-se por novos estilos. Embora Elect The Dead (2007) e Harakiri (2012) sejam CDs que lembrem o rock do System Of A Down, outros projetos surpreendem fãs pelo afastamento do cantor do estilo que o tornou conhecido. Imperfect Harmonies (2010) é um projeto que mistura rock, jazz, música eletrônica e orquestrada. Já Elect The Dead Shymphony (2010) adapta os acordes de guitarra de seu primeiro álbum solo para uma orquestra.
Com os gêneros diferentes, vêm o estranhamento e as críticas. Alguns fãs de System Of A Down acreditam que Tankian não possui mais a força que exibia quando cantava principalmente metal. Sua voz notadamente mudou dos anos 90 para os dias atuais. O próprio Tankian acredita que essa mudança é uma evolução. “Quanto mais você usa sua voz para alguma coisa, mais ela muda. Quando você tem 20 anos, você está gritando sobre as coisas. Mas, você pode causar o mesmo impacto com uma pequena palavra”, disse ele em um encontro com fãs no lançamento de Harakiri.
Atualmente, Tankian trabalha em um álbum de música eletrônica chamado Fuktronic e outro de jazz chamado Jazziz Christ, além de ter completado sua primeira sinfonia, Orca. Sobre Orca, ele vai de encontro à opinião de Vítor: “havia certas expressões que eu não podia comunicar na minha música. Algumas sensibilidades que eu não podia retratar, mesmo com o jazz, muito menos com o rock, que Orca parece, sem palavra alguma, transmitir tão clara e emocionalmente”.
Confira nos vídeos abaixo Serj Tankian interpretando a música Blue em versões rock, acústica e orquestrada, respectivamente:
Rock, hip-hop e World Music
O músico inglês Damon Albarn também pode ser lembrado como um artista de muitos estilos. Mais conhecido por seu trabalho como vocalista da banda de rock alternativo Blur, Albarn também experimenta gêneros fora de sua zona de conforto.
Em 1998, junto com o designer Jamie Hewlett, desenvolveu a ideia de criar uma “banda virtual”, cujos membros seriam desenhos animados. Nascia assim o Gorillaz. Seu primeiro álbum, homônimo, foi lançado em 2001 e fez vários sucessos como Clint Eastwood e 19-2000. Porém, enquanto algumas faixas remetiam ao rock, outras eram bastante focadas no hip-hop e na música latina. O MC Del the Funky Homossapien emprestou suas rimas para algumas das músicas do CD.
A banda começou a chamar atenção tanto pela sua música, quanto pela sua característica virtual. Em seu segundo álbum, Demon Days (2005), rappers famosos como De La Soul fizeram participações nas canções. Faixas como Dare mostraram também a inclinação da banda para a música eletrônica.
Mas foi com Plastic Beach (2010) que Albarn revelou dominar um grande leque de estilos. Há aqui faixas instrumentais, tanto orquestradas como eletrônicas, rap, hip-hop rock e world music. White Flag, a terceira canção do álbum, chega a misturar rap com música arábica. Albarn justifica que a quantidade de gêneros em seus trabalhos tem relação com suas viagens e a quantidade de artistas diferentes que conhece nelas.
Atualmente em hiato, a banda, que possui mais de 10 membros, não divulgou previsão de retorno aos estúdios.
E no Brasil?
Encontrar exemplos grandes de artistas ecléticos nacionais não é fácil. Porém, há alguns casos interessantes. Andreas Kisser, guitarrista da banda de metal Sepultura, é conhecido por fazer participações em trabalhos de artistas que vão do sertanejo ao MPB. Kisser já colaborou com duplas como Chitãozinho e Xororó e Fernando e Sorocaba, com artistas como Marina de la Riva e com bandas como Maná. Além disso, em seu álbum de 1996, Roots, o Sepultura contou com o cantor Carlinhos Brown e a tribo de índios xavantes em algumas canções.
Porém, exemplo mais extremo é o do cantor Luiz Caldas. Em 2010, o músico, famoso pelo hit Tieta, do final dos anos 80, lançou uma coleção de 10 CDs que abrangem os gêneros: MPB, rock, samba, brega, instrumental, frevo, forró, axé, além de músicas em tupi. O então conhecido “Rei do Axé” passou a fazer shows de heavy metal.
E se ainda restam dúvidas de como um cantor pode transitar por diferentes estilos, compare a performance de Luiz Caldas em Tieta (1989) e em Maldição (2011):