De Eva à Yoko Ono, é comum que tentem atribuir à uma figurina feminina a responsabilidade pelas senão maiores, ao menos notáveis, fatalidades do mundo. Ainda hoje, 46 anos desde que o fim dos Beatles fora anunciado por Paul McCartney, há quem culpe a enigmática figura oriental pelo ocorrido. É claro que, em se tratando de um dos maiores fenômenos musicais do século XX, a resposta não haveria de ser assim tão simples.
Apesar das tensões entre John, Paul, George e Ringo terem se agravado consideravelmente nos últimos anos de formação da banda, particularmente entre 1968 e 1969, há quem se surpreenda com a longevidade alcançada pelo quarteto. Desde o princípio, quando ainda respondiam pelo nome de “The Quarry Men”, a relação entre Lennon e McCartney já dava pequenos sinais da competição instaurada entre os dois quando se tratava de música. Reconhecidos desde sempre como os principais protagonistas daquele grande fenômeno, cada um queria deixar a sua própria marca, de modo que a desconfiança e o ciúmes eram sentimentos recorrentes, ainda que contidos.
Por muito tempo, o comportamento genioso de John Lennon e o ego irrefreável de Paul McCartney foram mediados pelo habilidoso empresário Brian Epstein. Tendo sido seu principal mentor desde a época em que eles eram apenas “os garotos de Liverpool”, Epstein – também conhecido como o 5º beatle – foi um dos principais responsáveis não apenas por elevá-los ao panteão do rock,como também por zelar pelos negócios e bem-estar do grupo. Dono de uma vida renegada e repleta de infelicidades, Brian, em muitos momentos, amou mais aos beatles do que a si mesmo.
Embora nem sempre recebesse o reconhecimento merecido, percebe-se a importância da presença de Brian Epstein e, portanto, os efeitos de sua ausência antes mesmo de sua morte, quando as primeiras fissuras começam a aparecer. Cada vez mais em segundo plano em decorrência de problemas pessoais e pelo uso nocivo de drogas, o distanciamento de Brian dos Beatles foi cedendo, pouco a pouco, cada vez mais espaço para as imposições de Paul dentro de estúdio, assim como para seus questionamentos acerca dos negócios que envolviam a marca The Beatles. A produção do monumental Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band possui as primeiras evidências desse controle cada vez mais insistente e insaciável.
Fato é que, com a partida de Brian em agosto de 1967, finalmente os Beatles passariam a trabalhar por conta própria, e estariam livres para tomar qualquer decisão do modo que eles achassem conveniente. Pelo menos, era o que eles pensavam.
Do catastrófico longa Magycal Mistery Tour à falida boutique de roupas extravagantes e excêntricas, uma sucessão de maus negócios passaram a desgastar ainda mais a relação entre eles. Agora, metidos com o empreendedorismo filantrópico da Apple Corps, os Beatles perderam milhões de libras e travaram intensos embates ao tentarem administrar uma corporação multimídia de princípios nada realistas.
Com o tempo, toda a estrutura de apoio que eles possuíam, outrora sólida, começava a desmoronar. Eles já não tinham Epstein e eclipsavam o produtor George Martin através de sua arrogância latente, especialmente da parte da John. Imerso em drogas pesadas (como a heroína) e recém-adepto de uma arte vanguardista, Lennon tampouco acreditava naquilo que os beatles produziam. George Harrison, por sua vez, sentia-se cada vez mais irritado por estar à sombra de seus companheiros e por ter suas composições vistas com menor importância, enquanto Ringo, sempre amável e paciente, via-se negativamente afetado por toda aquela atmosfera caótica.
Apesar de não ser a única causa mortis desse grande diagnóstico, Yoko teve sua influência ao penetrar o espaço sagrado que, desde a época de Please Please Me, havia sido ocupado apenas por John, Paul, George e Ringo. Nem mesmo os amigos mais próximos ousavam ultrapassar a redoma invisível que os cerceava, mas a artista plástica não se deixou intimidar. Conta-se que, mesmo quando enfrentava uma gravidez de risco e recebeu recomendações de repouso extremo, Yoko não deixou de comparecer às gravações: ela pediu, inclusive, que colocassem uma cama de casal no estúdio e um microfone sobre sua cabeça para que pudesse acompanhar seu marido, John, e dar seus palpites na produção do disco.
Yoko trouxera à tona ressentimentos que se aglutinavam já anteriormente e que, somados à radical mudança comportamental de John, fomentou o denso emaranhado de diferenças entre o fab four. A tensão quando estavam juntos era insuportável, com sessões de gravação inflamadas por discussões cabulosas diante da inflexibilidade de um em aceitar a ideia do outro.
Por fim, em outubro de 1969, Lennon anuncia, em uma reunião catastrófica, a sua saída do grupo. Ringo Starr e George Harrison, e até o próprio John, já tinham feito a mesma ameaça, mas acabaram voltando atrás em suas decisões. Dessa vez, no entanto, havia algo diferente que colocava um fim na trajetória daqueles rapazes que tinham alcançado o “toppermost of the poppermost”*.
A decisão só foi anunciada no dia 9 de abril de 1970, quando Paul McCartney lança seu primeiro álbum solo e envia à imprensa, junto com seu LP, um questionário respondido por ele mesmo sobre seus novos projetos. Oficialmente, o fim dos Beatles se decretou no dia 10 abril, quando Paul afirma estar deixando o conjunto “em virtude de desacordos no plano pessoal, no dos negócios e no musical”.
O rompimento, no entanto, não significou que a sua música não fosse resistir à passagem do tempo, que não pudesse cativar novos amores ou que o legado de sua genialidade pudesse se perder por aí. Apesar do fim, eles ainda eram – e para sempre seriam – os Beatles.
O show na cobertura da Apple foi a última vez em que os Beatles tocaram ao vivo após a decisão de parar de fazer concertos, em 1966
*Expressão usada pelos Beatles no início da banda, ao que John Lennon promovia o seguinte diálogo: “Onde nós estamos indo, garotos?”, “Ao topo, Johnny!”, “E onde é isso?”, “No ponto mais alto do topo mais alto” (tradução livre para “‘Where are we going boys?’, ‘To the top, Johnny!’, ‘And where’s that boys?’, ‘To the toppermost of the poppermost, Johnny!'”).
Por Bianka Vieira
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