Ao iniciar a leitura de O Último Gozo do Mundo (Companhia das Letras, 2021), novo livro de Bernardo Carvalho, o leitor parece se deparar com uma história que pode ser ouvida da boca de um amigo, que conta com certo tom de surrealismo um caso do qual ouviu falar. Não é à toa tal impressão. A história, passada inicialmente em um período de pandemia, acompanha uma professora de sociologia, escritora nas horas vagas e secretas. Ela recebe a notícia de separação conjugal de seu marido dias antes de começar a quarentena e, logo em seguida, engravida de um jovem que encontrou apenas uma vez, além de perder os pais para o novo vírus que assola o mundo.
A contemporaneidade presente na obra é evidente desde o início. Os sentimentos frescos perante à crise de saúde de 2020 e 2021 permitem ao autor brincar com a incerteza do futuro no universo das personagens, que não possuem nomes ou descrições individuais, e que em determinados momentos comunicam-se da mesma maneira com que nos interligamos durante este período pandêmico: entrecortadamente, sem contato físico, sem conhecer umas às outras precisamente. A comunicação que existe na obra é falha, interrompida, muitas vezes não chega a lugar algum.
É também desse discurso comunicativo que nasce uma narrativa fraca, que não permite ao leitor uma imersão profunda na história. Tudo possui um véu de sonho e delírio; a incerteza do que está por vir para as personagens — componente valioso no enredo — faz com que a ficção recorra a meios místicos, através de um homem que, após ser contaminado pelo vírus, consegue ver o futuro daqueles que o visitam e torna-se uma espécie de xamã dessa nova sociedade, tão ansiosa por uma certeza do que fazer e como viver.
Tal construção não ajuda a criar um caminho persuasivo para o clímax. O que se absorve na leitura é uma junção de momentos vagamente relacionados com o desfecho da narrativa, mas que não constroem um senso de clareza único ou de plausibilidade. Uma discussão racial aqui, uma conversa sem propósito ali, resta-nos apenas a impressão de que algo está intencionado nas palavras, mas nem ao final da leitura torna-se clara a intenção.
O delírio é aspecto comum nas obras anteriores de Bernardo Carvalho, e faz-se presente mais uma vez na leitura de O Último Gozo do Mundo. A impressão é de que a jornada da personagem não passa de um mero sonho, uma ilusão quente e abafada de alguém que imagina com os olhos semicerrados e a mente fantasiosa demais. Mas desta vez o delírio não agrega ao que se conta. Ao contrário, causa estranheza e dificuldade para se acumular aos protótipos de discussões que cercam a obra.
Gloriosos e bem elaborados, no entanto, são os momentos em que a história se distancia da narrativa principal e adentra outros mundos da nova realidade instaurada pós-pandemia. O momento em que a obra relata as histórias de dois outros personagens, quase ao fim da leitura, transporta quem lê para realidades com um matiz de suspense, trazendo um fresco respiro para a jornada principal. A memória se faz vigente e o incerto a assombra. A caixa não aberta segurada pela personagem do enfermeiro é figuração pós-pandêmica da caixa de pandora: talvez os males tenham sido liberados, mas ainda há a esperança para se apegar. Ao final desse capítulo não se sabe o desenlace. Mas não importa, as sensações e emoções afloradas já são suficientes.
“Este é um mundo mais burro? Talvez. Somos mais medíocres? É possível.
Mas é o começo de um novo tempo e tudo o que você tem pra dizer faz parte do passado.
Sim, é horrível.
Sua lógica, suas ideias, sua razão que serviu de fachada pra que se perpetrassem tantos horrores.
Tudo é passado.”
Bernardo Carvalho, O Último Gozo do Mundo
Apesar dos entraves que dificultam uma aproximação e a compreensão da narrativa — que deixam o livro longe de ser a melhor parte no conjunto de obras do escritor —, O Último Gozo do Mundo possui seus méritos. É um livro, acima de tudo, sobre a importância da memória e da certeza.
No momento em que tudo desmorona, o que resta são apenas as experiências vividas, as lembranças que ficam e os sentimentos deixados e fincados não apenas nas personagens, mas também em cada um de nós. É evidente a proximidade extrema com a vivência do leitor contemporâneo, e talvez por isso o livro cause certo estranhamento. Escrever sobre realidades recentes é sempre um grande desafio e, quem sabe mais para frente, em outra realidade, O Último Gozo do Mundo cresça em significado.
*Imagem de capa: Divulgação / Companhia das Letras