Buscar inovações na área da saúde é uma das preocupações primordiais da ciência, e a discussão sobre o desenvolvimento de vacinas e de novos medicamentos cresceu muito no momento de pandemia da Covid-19. A descoberta de uma vacina e de um tratamento eficiente assemelha-se a uma corrida contra o tempo, com o propósito de salvar e proteger vidas. A cada momento, são anunciadas vacinas em produção ou novos medicamentos que prometem curas. No entanto, para determinar a eficácia de um produto da saúde são necessários experimentos controlados que devem seguir estritamente as etapas da pesquisa clínica, isto é, uma análise dos efeitos desse produto em voluntários humanos.
Os objetivos dessa pesquisa são sustentar a eficácia e a segurança de um fármaco, além de descobrir ou confirmar seus efeitos e identificar as reações adversas. No Brasil, a aprovação de qualquer produto da saúde depende da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é a responsável pela regulamentação de ensaios clínicos junto com os Comitês de Ética em Pesquisa, a fim de garantir a conduta ética no decorrer dos ensaios e, também, assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa.
Nessa reportagem do Laboratório, conversamos com especialistas na área da pesquisa clínica e biomedicina, que nos ajudarão a entender mais a fundo o processo de desenvolvimento e aprovação de vacinas e remédios.
O início da pesquisa clínica e suas fases
A iniciativa de desenvolver um novo produto da saúde é, na maioria das vezes, motivada pelas demandas da sociedade. Durante a pandemia, a necessidade máxima é cuidar dos pacientes infectados pela Covid-19 e evitar novas infecções por meio da imunização. Por isso, iniciam-se estudos visando criar medicações e vacinas que podem ser financiados tanto pelo Ministério da Saúde quanto pela indústria farmacêutica e pela iniciativa de pesquisadores das universidades públicas. Logo em seguida, a ideia do novo produto precisa ser enviada para a Anvisa, que orientará quanto às fases da pesquisa e fiscalizará o desenvolvimento do produto.
A biomédica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e pesquisadora atuante nos estudos da vacina contra Covid-19, Carolina Albino, explica que após essa orientação da Anvisa e a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética local, inicia-se a fase pré-clínica, que pode ser realizada com testes em culturas de células, em animais de laboratório ou com a bioinformática (que são simulações computacionais). A partir disso, é determinado um desenho de estudo e seu objeto, que pode ser uma vacina, um medicamento ou um equipamento, como um marca-passo. Geralmente, na pesquisa da vacina, o ensaio começa com um teste em cultura de células. A pesquisadora ressalta a importância desse momento inicial: “essa parte é muito importante para descobrir qual a dose adequada a ser administrada e se há efeitos tóxicos”, acrescenta Albino.
Observada a dose que deverá ser administrada e a segurança desse produto, começam, então, os testes com humanos. A profissional de pesquisa clínica Rita Barros elucida o passo a passo do ensaio clínico, que é dividido em três fases. De acordo com ela, na primeira fase, o teste é realizado com um pequeno número de pessoas saudáveis (de 20 a 100) e o objetivo é entender como esse produto se comporta no corpo humano, quais são os benefícios apresentados e quais os efeitos adversos possíveis. Em paralelo, é identificada a melhor via de administração (no caso de medicamentos), se é por comprimido, líquido ou por via venosa (pela veia).
Na segunda fase, avalia-se a eficácia terapêutica do produto, ainda em um número restrito de pessoas (de 100 a 300). Nesse momento os pesquisadores analisam se o fármaco está apresentando efeito. Também apura-se quais são os efeitos adversos e a segurança do princípio ativo, acrescenta Barros.
Na terceira fase, mais informações são levantadas sobre a segurança e eficácia do produto: para isso, são feitos estudos comparativos entre o novo produto e um placebo ou o “padrão-ouro” de tratamento (uma medicação ou vacina já aprovada pela Anvisa). Barros informa que o motivo dessa comparação é compreender se o produto que está sendo pesquisado é melhor que o já existente no mercado ou se funciona melhor que o placebo.
Também há a quarta fase, mas ela é diferente das outras, visto que é o acompanhamento do produto já no mercado. Nessa fase, há otimização do uso do medicamento, avaliação de interações medicamentosas e de efeitos adversos adicionais. Segundo Barros, de milhares a milhões de usuários são incluídos nessa análise, que é chamada de farmacovigilância.
O que é o placebo e por que ele é usado na pesquisa clínica?
A origem da palavra placebo origina-se do latim placere, que significa agradar. De maneira geral, o efeito placebo é entendido como a melhoria dos sintomas e/ou funções fisiológicas de um organismo em resposta a fatores supostamente inertes (comprimidos sem princípio-ativo, injeção de soro fisiológico, cirurgia fictícia, uso de agulhas falsas, etc). O efeito do placebo pode ser atribuído à expectativa positiva do paciente ao produto que está ingerindo e está intrinsecamente ligado a um componente psicológico.
O placebo é usado na pesquisa clínica para avaliar se um medicamento ou vacina em desenvolvimento é mais eficaz que a ausência de tratamento. O uso do placebo só é permitido quando não há uma medicação ou vacina similar para a doença que está sendo pesquisada, sobretudo em pacientes em tratamento de câncer. Nos casos em que é permitido o uso do placebo, sua aplicação não pode trazer nenhum malefício ao participante, que precisa ser saudável e não correr nenhum risco de saúde. Esse método de comparação é muito controlado pelos órgãos reguladores e é imperativo justificar seu uso para a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que é o órgão responsável por implementar as normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas com seres humanos, explica Albino.
O placebo em uma pesquisa com medicamentos apresenta a mesma embalagem, comprimido, aparência e cor que a medicação com princípio ativo. No caso de um estudo “duplo-cego”, quando nem o aplicador da pesquisa nem o participante sabem que estão utilizando um placebo; Rita Barros conta que “essa equipe farmacêutica que irá manipular a droga toma todo cuidado para manter o sigilo. Para a distribuição da droga no centro de pesquisa, é utilizado um sistema eletrônico, que não mostra mais informações sobre o produto, a fim de garantir total segurança para o estudo.”
Os estudos cego e duplo-cego são importantes para evitar o enviesamento da pesquisa, tanto pelo paciente quanto pelo pesquisador. Por exemplo, caso um médico que está aplicando um teste saiba que um paciente está tomando um placebo, ele poderia tratar esse participante de maneira diferente, examiná-lo com mais frequência que os outros, prejudicando o estudo. Caso um participante saiba diretamente que está tomando um placebo, poderia não levar o teste a sério ou até desistir de participar.
Albino nos explica como o placebo é utilizado nas pesquisas com a vacina: de acordo com a biomédica, o uso do placebo com vacinas é mais comum, visto que os participantes desses ensaios costumam ser saudáveis e não correr grandes riscos. Nesses casos, o placebo é feito da mesma solução da vacina (o que confere textura e cor), que são os adjuvantes, mas não se usa nenhum princípio ativo (vírus inativado). Essa solução inócua é injetada no paciente, que, por sua vez, sentirá a mesma sensação da vacina com o princípio-ativo, que é a dor da aplicação e dor local posterior. Assim, para efeito de análise, a diferença entre os efeitos sentidos pelo indivíduo que recebeu o placebo e o que recebeu a vacina ativa é o resultado efetivo do produto, elucida Albino.
Ainda vale mencionar que os efeitos apresentados pelo placebo possuem componente psicológico. O efeito placebo na pesquisa com vacina não oferece imunidade ao paciente, porém este poderá sentir os efeitos adversos devido à expectativa causada pela injeção. Além disso, na pesquisa com medicamentos, o participante pode sentir uma melhora temporária devido ao componente psicológico, mas, segundo Albino, esse efeito não se sustentará, devido à ausência do mecanismo de ação do produto responsável por tratar dessa condição.
O que explicaria a ação do placebo?
A princípio o efeito placebo poderia ser explicado como uma diminuição da percepção dos sintomas devido à confiança no tratamento e interação com o médico. Segundo o artigo do Dr. Marcos Zulian Teixeira, publicado na Revista ComCiência, dentre os mecanismos psicológicos que induzem o efeito placebo, há um condicionamento inconsciente, que reivindica uma resposta sensorial do corpo após a exposição do indivíduo ao placebo. Entretanto, há outros fatores que influenciam nessa dinâmica, como a história e evolução natural da doença, aspectos socioambientais, o desejo de melhora, expectativas e crenças no tratamento, relação médico-paciente e características não farmacológicas do produto (aparência, cor e textura). Deste modo, essa resposta sensorial, após a intervenção do placebo, pode produzir um efeito semelhante a um tratamento efetivo.
A visão da biomedicina no efeito placebo
É inegável o componente psicológico do placebo, mas é necessário estabelecer que o componente psicológico provoca respostas fisiológicas no corpo. Quando um participante de pesquisa toma um placebo acreditando que é um produto com substância ativa, essa expectativa provoca uma descarga de hormônios no organismo, como a endorfina e a serotonina, que modulam diversas ações no corpo. Na fisiologia humana os hormônios têm muito poder, por exemplo:pessoas com tendência à ansiedade e depressão costumam sofrer com cascatas inflamatórias no corpo. Essas cascatas influenciam a imunidade e sobretudo a absorção dos fármacos, ou seja, na resposta do corpo às vacinas e medicamentos ingeridos. Esse exemplo mostra que aspectos psicológico podem apresentar um efeito fisiológico, e essa é só uma das maneiras de se analisar o efeito placebo.
A relação entre participante-pesquisador e a compreensão sobre a pesquisa clínica
Para participar de uma pesquisa clínica, o paciente precisa estar ciente de todos os benefícios e riscos que envolvem sua participação. Com o propósito de documentar esses aspectos, existe o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que explica todas as obrigações do centro de pesquisa, como cuidar desse paciente e tratar quaisquer desconfortos ou preocupações. Como o participante é voluntário, precisa ter garantia de que será bem tratado e que terá algum benefício, por menor que seja, conta Albino.
A pesquisadora Rita Barros conta mais sobre a história do Termo: segundo ela, esse é um documento que segue diretrizes internacionais do Good Clinical Practices (GCP), guia que garante as boas práticas na pesquisa clínica. Esse guia foi criado após a Declaração de Helsinque, em 1964, com o objetivo de julgar os médicos nazistas que conduziram testes que feriram a integridade física e mental de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial. A Declaração reúne os princípios éticos que regem a pesquisa com seres humanos e, em paralelo ao GCP, determina que para participar de uma pesquisa, o indivíduo precisa consentir por livre desejo e é necessária a explicação detalhada dos procedimentos que serão feitos.
Apesar do termo ser um documento com diretrizes internacionais e que detalha tudo o que poderá acontecer com os participantes, ele nem sempre é compreendido adequadamente. Barros informa que em seu mestrado, ela caracterizou o nível de letramento e alfabetismo em saúde de participantes de ensaios clínicos, dessa maneira, identificou que 40% dos participantes não tinham condições de entender os termos médicos que são utilizados no documento. “Isso caracteriza um desafio na pesquisa clínica, como um paciente poderá assinar um documento sem entender adequadamente os termos de saúde?” indaga Barros.
Ela explana que quando é identificado que um paciente não compreende os termos, a estratégia é que o médico converse diretamente com esse participante e explique o procedimento adaptando o vocabulário para facilitar a compreensão. Esse momento é chamado de processo de consentimento, que envolve o diálogo com o participante, mas este não exclui o termo de consentimento.
O paciente sabe que pode tomar um placebo?
Como já foi dito anteriormente, o uso do placebo geralmente é feito por um estudo duplo-cego (nem os participantes e nem os agentes de saúde sabem quem recebeu o placebo), a fim de evitar enviesamento de observações e medições. No entanto, é imprescindível que os participantes sejam informados no Termo de Consentimento que existe uma chance de tomarem placebo. “Quando um paciente aceita participar de um estudo, no termo está escrito que há uma possibilidade de 50% de ele tomar um placebo e 50% de tomar a droga ativa” explica Barros.
O que torna uma vacina ou medicamento eficaz?
De acordo com Carolina Albino, a partir da segunda fase de testes clínicos é possível estabelecer a eficácia de um produto. A definição de eficácia seria a capacidade desse produto, seja de produzir anticorpos contra uma doença, no caso de uma vacina, seja de combater a doença. Um produto, para ser considerado eficaz, precisa ter um bom custo-benefício, isto é, precisa combater ou proteger de alguma doença sem apresentar efeitos adversos graves.
Como são encontrados participantes para pesquisa clínica?
O processo de encontrar participantes na pesquisa clínica é chamado de recrutamento. Antes de ser iniciado, o processo é submetido à avaliação ética e o Comitê é quem determina a melhor maneira de abordar os participantes. A divulgação dessa pesquisa pode acontecer de diversas formas: por mídias sociais, anúncios na televisão e rádio, distribuição de panfletos, além de médicos que indicam seus pacientes para alguns testes.