Por Maria Clara Ramos (mariaclarasr@usp.br)
Escrita por J. R. R. Tolkien, a narrativa de O Senhor dos Anéis conta a história de Frodo Bolseiro, um hobbit que embarca em uma jornada pelo universo da Terra Média com a missão de salvar o mundo que conhece do vilão Sauron. Com temas universais, como amizade, coragem e um clássico conflito entre bem e mal, a épica de Tolkien conquistou uma grande base de fãs devotos. Décadas depois de sua primeira publicação, em 1954, a obra do escritor britânico foi adaptada para as telonas sob a direção de Peter Jackson, e encantou uma nova geração de admiradores.
No começo dos anos 1990, Peter Jackson era um diretor de pequena relevância na indústria. Suas produções lançadas até então, como Meet the Feebles (1989) e Fome Animal (Braindead, 1992), eram de menor escala, com propostas muito diferentes da trilogia que se tornaria a obra prima do cineasta. Na época, assumir a direção de uma superprodução parecia uma aposta arriscada, devido à sua falta de experiência com projetos de alto orçamento.
Contudo, Jackson tinha em si algo que o tornava perfeito para conduzir a adaptação da aclamada narrativa: paixão pela escrita tolkieniana. Desde seu primeiro contato, na adolescência, com a história de Frodo, o diretor neozelandês cultivou grande admiração por aquele universo, e o desejo de trabalhar em um projeto inspirado na épica de Tolkien. Anos mais tarde, deu início à grande jornada de sua carreira, e passou a procurar produtoras dispostas a concretizar sua visão.
O plano inicial consistia na adaptação do livro em dois filmes. Porém, após apresentar sua ideia para a produtora New Line Cinema e empolgar os executivos, Peter Jackson conseguiu a aprovação para a produção dos três títulos: A Sociedade do Anel (The Fellowship of the Ring, 2001), As Duas Torres (The Two Towers, 2002) e O Retorno do Rei (The Return of The King, 2003).
Com a ajuda de sua esposa Fran Walsh, Jackson escolheu filmar em locais remotos da Nova Zelândia. O acesso a estes ambientes de gravação aconteceu por meio de estradas construídas especialmente para os filmes, que foram destruídas ao fim das filmagens. O trabalho necessário para fazer isso três vezes seria muito intenso, e por isso, a trilogia completa foi gravada de maneira simultânea. Embora exaustivo, o diretor afirmou que filmar O Senhor dos Anéis foi “o Santo Graal da cinematografia, uma experiência de vida única”, em entrevista à revista Variety.
Novas terras
Com os três filmes, a adaptação de Peter Jackson tem mais de 9 horas, sem contar as cenas extras presentes nas versões extendidas. Mas isso não foi o suficiente para retratar todos os acontecimentos presentes nas mais de 1000 páginas originalmente escritas por J. R. R. Tolkien em seu livro, publicado em três volumes. O diretor, bem como as roteiristas Fran Walsh e Philippa Boyens, tiveram de fazer escolhas para que a história fizesse sentido para o formato audiovisual.
“Ler o livro de A Sociedade do Anel [após assistir o filme] foi um choque muito grande, porque são muitas as diferenças” conta Cesar Machado, consultor de marketing e membro da equipe do canal Tolkien Talk no Youtube. “Mas o filme faz sentido, porque você está entregando para outra mídia, e esse formato precisa de uma plasticidade. O que funciona no livro não necessariamente funciona na tela”.
Muitas das alterações tinham o objetivo de priorizar as cenas e os personagens com maior relevância para o desenvolvimento da narrativa principal. Com isso, capítulos inteiros foram descartados do roteiro, como os que introduzem Tom Bombadil, personagem querido pelos fãs dos livros. Descrito como uma figura excêntrica, Bombadil se tornou marcante para os leitores por suas canções e presença etérea. Sua primeira aparição acontece no primeiro livro, quando ajuda os hobbits a escaparem de uma emboscada do Velho Salgueiro-homem, um espírito de árvore maligno. Apesar de memorável, o personagem foi descartado do trabalho de Jackson por não contribuir significativamente com o desenrolar da missão do protagonista. Já outras personagens ganharam maior destaque nos filmes que nos livros.
No longa A Sociedade do Anel, por exemplo, Arwen (Liv Tyler) resgata Frodo (Elijah Wood) em seu cavalo e o protege enquanto os Cavaleiros Negros de Sauron os perseguem. No entanto, na versão literária, quem salva o hobbit é o elfo Glorfindel. Para o filme, a cena demonstra a coragem, o poder e a compaixão de Arwen com o protagonista, características que a tornam uma personagem mais complexa e desenvolvida. Além disso, seu arco romântico com Aragon (Viggo Mortensen) e suas dúvidas sobre uma possível vida ao lado do mortal recebem atenção considerável nos longas em comparação aos escritos de Tolkien.
Há ainda casos de passagens que foram realocadas no roteiro, como a sequência que resulta na morte do personagem Boromir (Sean Bean). A cena, que aparece apenas no início do livro de As Duas Torres, foi antecipada para os momentos finais do primeiro filme da trilogia. A mudança entrega um final grandioso e emocionante para A Sociedade do Anel, sem alterar o decorrer dos eventos seguintes, e demonstra mais uma vez a inteligência por trás das escolhas do roteiro.
Apesar das diferenças, a adaptação de Jackson foi muito bem recebida pelos fãs dos livros, e conquistou novos admiradores ao transformar a história em uma obra de linguagem cinematográfica com a essência de Tolkien. “O filme é uma outra versão que funciona. Todos os ajustes foram muito inteligentes”, opina Cesar, que comprou o livro imediatamente após assistir ao primeiro filme no cinema. “Tem ritmo, é como uma dança. Uma coisa puxa a outra, é uma aula de roteiro adaptado”.
Magos do cinema
Em 2001, a crítica não poupou elogios para o trabalho de Peter Jackson. Naquele ano, o jornal Salon afirmou que assistir ao primeiro filme “lembra o espectador do porquê as pessoas vão ao cinema”. Já o Omelete publicou em sua resenha que “as três horas de A Sociedade do Anel parecem mais curtas que o normal”, e atribuiu 5 estrelas ao longa. As duas partes seguintes da trilogia seguiram o mesmo padrão, e ambas apresentaram mais de 90% de aprovação no site Rotten Tomatoes
No Oscar, O Senhor dos Anéis levou dezessete estatuetas ao todo, e a premiação consagrou O Retorno do Rei como o melhor filme de 2003. A categoria de Melhores Efeitos Visuais foi vencida pelos três filmes, graças ao perfeccionismo de Jackson e sua equipe. O diretor fundou, em 1993, a própria empresa de efeitos especiais, a Weta Digital. A corporação desenvolveu um software próprio, crucial para a elaboração das cenas de batalhas da trilogia e para a criação de Gollum (Andy Serkis).
Inicialmente, Gollum era um enigma para a produção: “Serkis fez todas as cenas dele com uma roupa branca, cheia de pontos, e até então ninguém da produção, nem mesmo Elijah Wood, sabia direito como ele ia funcionar”, explica Cesar. O Tolkienista aponta ainda que a imagem de Gollum sofre alterações entre o primeiro e o segundo filme, e que a breve e escura cena em que a criatura aparece em A Sociedade do Anel reflete a indecisão inicial da produção sobre como construir o corpo de Gollum.
A intenção da equipe responsável pelos efeitos era transmitir toda a fisicalidade de Andy Serkis para o personagem digital, e para isso utilizaram a técnica do motion capture, ainda recente para o cinema na época. Dessa forma, a personalidade presente na performance do ator foi combinada à arte digital para a elaboração de uma das figuras mais emblemáticas da trilogia.
A técnica usada pela Weta virou uma referência no mercado. “Foi um divisor na história do cinema mundial. Deixou um legado aproveitado para o Caesar, de Planeta dos Macacos: A Origem (Rise of the Planet of the Apes, 2001), para Groot, do universo Marvel. É brutal”. A empresa também atuou em títulos como Eternos (Eternals, 2021) e a série Hawkeye (2021).
Além dos efeitos visuais, O Senhor dos Anéis também fez um trabalho impressionante com seus efeitos práticos. A produção teve soluções criativas para dar vida à visão de Jackson – foram utilizados adereços como anéis gigantes, centenas de próteses de orelhas e pés cabeludos usados pelos hobbits, e diversas maquetes da casa de Bilbo Bolseiro (Ian Holm).
Páginas a preencher
O grande sucesso estimulou a produção de novas adaptações dos trabalhos de J.R.R. Tolkien, como a trilogia O Hobbit (The Hobbit), que estreou nos cinemas entre 2012 e 2014. A história dessa vez segue Bilbo Bolseiro (Martin Freeman), tio de Frodo, em eventos que se passam antes de O Senhor dos Anéis.
Os Anéis do Poder (The Rings of Power, 2022), também ambientada no universo de Tolkien, marcou a maior estreia de uma série da Amazon Prime Video, com mais de 25 milhões de espectadores no primeiro dia de exibição. No entanto, a produção preocupou-se mais em atingir novas audiências do que em agradar fãs antigos. “Eu não consigo entender. Mercadologicamente, é um tiro no pé. Nada ali conversa com o público cativo, o material de origem é ignorado. É como criar uma história quase do zero. Eu achei a fanfic mais cara da história”, apontou Cesar Machado.
Já em 2024, A Guerra dos Rohirrim (The War of the Rohirrim), animação do mundo de O Senhor dos Anéis, chega aos cinemas em dezembro, e um novo filme live-action intitulado A Caçada por Gollum (The Hunt for Gollum) foi anunciado para 2026.