Por Letícia Longo (letlongo2006@usp.br)
“Cinema amoral”, “cinema que emburrece” e “cinema inferior”. Esses são alguns termos utilizados tanto pela população quanto por parte da crítica cinematográfica para descrever o fenômeno das pornochanchadas. Elas não tinham alto orçamento e muitos menos uma alta qualidade técnica. Mesmo assim, levaram milhões de brasileiros às salas de cinema, especialmente os pertencentes às camadas populares.
As pornochanchadas desafiavam a sociedade dos anos 1970. Afinal, era um cinema de comédia erótica produzido em plena Ditadura civil-militar, regime marcado pelo conservadorismo. Os cineastas responsáveis por essas obras abordavam tópicos sociais considerados polêmicos não só para a época, como também para os dias atuais, por meio de um tom satírico e de um dialeto acessível para a população brasileira como um todo.
De acordo com a doutora em artes Flávia Seligman, em sua tese O Brasil é feito de pornôs: o ciclo da pornochanchada no país dos governos militares, a palavra chanchada alude à comédia musical dos anos 40 e 50, de onde este novo ciclo herdou a proximidade com um público popular ao retratar o cotidiano da classe média. Já o prefixo porno foi um termo pejorativo colocado junto aos filmes para marcar que o gênero se instaurou em uma época de repressão, de valorização da moral e dos bons costumes.
Um desejo de comunicação com a massa
Os Paqueras no Rio de Janeiro (1969) é o primeiro filme com algumas características da pornochanchada, já que apelava para uma linguagem popular e um certo humor erótico, mesmo que de maneira mais suave. Mas é na Boca do Lixo, região no bairro da Luz marcada pela prostituição, marginalização e criminalidade, em que esse cinema se desenvolve de maneira concreta.
Os cineastas da Boca buscavam fazer algo diferente: algo marginal e inventivo, algo que desafiasse o status quo e, principalmente, algo popular. Para atingir esse objetivo, eles misturaram erotismo e comédia em suas obras, a fim de se comunicarem diretamente com as massas. O erotismo era um elemento de diversão, pois refletia as necessidades e experiências reais do público, enquanto a comédia transformava as tragédias rotineiras em algo engraçado. Esses filmes seriam posteriormente nomeados como pornochanchadas.
As pornochanchadas caíram no gosto popular rapidamente. Segundo o mestre em comunicação social Valter Vicente Sales Filho, o cinema brasileiro nunca produziu tanto e para um público tão numeroso quanto naquela época. Filmes como A Dama do Lotação (1978) e Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), dois longas que misturam o erotismo com o humor popular, levaram mais de 5 milhões de pessoas aos cinemas. Até 2010, Dona Flor e seus Dois Maridos era o filme brasileiro com maior bilheteria da história, com um público de mais de 10,5 milhões de espectadores.

Em entrevista ao Cinéfilos, o crítico de cinema Marcelo Müller aponta a linguagem direta, o apelo à sexualidade e o desejo dos cineastas de se conectarem com o público como as principais razões para o sucesso desse gênero cinematográfico. Somado a isso, haviam incentivos governamentais para a produção audiovisual brasileira na época.
“Os filmes da pornochanchada queriam essa comunicação mais direta. Eles tinham estratégias de linguagem para se comunicar com o público.”
– Marcelo Müller
Erotismo: instrumento afrontoso ou mercadológico?
O caráter erótico das pornochanchadas é, muitas vezes, visto apenas como um instrumento de atração de público, que utilizava de pôsteres e títulos sugestivos em benefício do lucro, mesmo que muitos dos filmes nem tivessem conteúdos sexuais. Embora isso não seja mentira, Müller aponta outro fator para a recorrência do erotismo durante os anos 70: a necessidade de uma revolução sexual não vivida pelos jovens brasileiros.
Segundo ele, havia uma geração de jovens brasileiros com desejo de se rebelar contra o autoritarismo da ditadura daquele período. Ao mesmo tempo, eles repensavam sua relação com a sexualidade, assim como a juventude americana, autora da Revolução Sexual dos anos 60.
“Era por meio da pornochanchada que essa discussão sobre sexualidade transbordava. Tem a questão mercadológica, mas também tem o desejo de traduzir em termos cinematográficos essa revolução sexual que ficou, durante muito tempo, reprimida.”
– Marcelo Müller
Müller acrescenta que nem sempre essa discussão era feita de maneira responsável, pois muitos desses filmes continham um alto teor machista e transformavam o corpo feminino em um produto a ser comercializado. Entretanto, as pornochanchadas serviam como um instrumento transgressor sexual e social ao abordarem temas como infidelidade, aborto, hipocrisia da família patriarcal e até a autonomia do desejo feminino.
As diferentes abordagens de transgressão
As pornochanchadas levam para a opinião pública assuntos sérios de uma forma leve e sexual. Em A Dama do Lotação, por exemplo, a protagonista, Solange (Sônia Braga), é estuprada em sua noite de núpcias por seu próprio marido. Traumatizada pelo evento, ela começa uma busca por outros homens, que não sejam o marido, para satisfazer seus desejos sexuais. Enquanto alguns veem Solange apenas como uma mulher infiel, outros observam suas atitudes como uma forma de obtenção de justiça.
A Mulher que Inventou o Amor (1980) conta a história de uma mulher que utiliza sua sexualidade como forma de colocar os homens em uma posição de submissão. Assim como Solange, Doralice (Aldine Müller), a protagonista, é vítima de um abuso sexual e começa a se prostituir por incentivo de uma amiga. Doralice inverte os papéis convencionais de gênero por meio de seus programas ao colocar os homens com quem se relaciona em situação de submissão, muitas vezes até de forma humilhante.

Já em Super Fêmea (1973), há um tom satírico a respeito de diversos temas sociais. Na obra, a criação de uma pílula anticoncepcional masculina é o ponto de partida para a abordagem da emancipação feminina, da objetificação da mulher, da hipocrisia publicitária e da sociedade como um todo. As mulheres lutam a favor da comercialização da pílula em virtude de garantir seus direitos reprodutivos, enquanto os homens apresentam uma certa resistência em função do machismo envolvido e do medo de uma possível impotência sexual.
Para incentivar as vendas, os publicitários do produto promovem um concurso: o homem que comprar mais pílulas anticoncepcionais é premiado com um mês dos sonhos com “A Super Fêmea”, (Vera Fischer), que seria supostamente a mulher mais perfeita do mundo. Por meio da personagem de Fischer, o filme retrata os danos causados à mulher devido à objetificação do corpo feminino.
Onda Nova (1983) reúne histórias do time de futebol feminino Gayvotas Futebol Clube, criado no ano em que o esporte foi regulamentado no Brasil. Censurado na época, o longa mostra os desafios enfrentados pelas jogadoras em uma sociedade conservadora, além de discutir temas como feminismo e homossexualidade.
Relação com a Ditadura: aliada ou inimiga?
Há controvérsias sobre a relação das pornochanchadas com o regime militar. Enquanto alguns críticos, favoráveis à ditadura, condenavam as pornochanchadas por seu caráter erótico, alguns outros, contrários à ditadura, afirmavam que esses filmes eram aliados do regime justamente por seu caráter erótico, financiados pelo governo para “alienar as massas” e servirem à lógica do “Pão e Circo.”
Müller reforça que essa é a primeira falácia dita sobre as pornochanchadas. Na verdade, elas tiveram uma relação bastante conflituosa com a ditadura e não passaram por um incentivo por parte do governo. “Muitas pornochanchadas se financiavam na ‘guerrilha’. Cineasta vendendo apartamento, cineasta conseguindo dinheiro com comércio local… a Embrafilme foi muito resistente a dar dinheiro a esses filmes”, diz o crítico.
É verdade que as pornochanchadas se aproveitaram da Resolução n.º 3, de 11 de maio de 1967, do Instituto Nacional do Cinema (INC), que fixou um mínimo de 56 dias por ano para a exibição de longas-metragens nacionais e, posteriormente, em 1975, um mínimo de 112 dias. Mas a sua expansão se deu quase à margem das políticas oficiais.
Parte do meio acadêmico rotula esse gênero como despolitizador. José Carlos Avellar, em seu ensaio Teoria da Relatividade, afirma que as pornochanchadas sofriam com a censura devido aos palavrões, aos xingamentos e ao conteúdo sexual contidos nas obras. Ao mesmo tempo, elas autocensuravam seu conteúdo político, a fim de não sofrerem com a proibição de suas exibições.
Já no filme Histórias Que o Nosso Cinema (Não) Contava (2018), é abordado como o gênero cinematográfico possui um caráter reflexivo sobre o momento ditatorial no Brasil, em especial sobre o Milagre Econômico. A partir da montagem de mais de 30 filmes, como Nos Embalos de Ipanema (1978), A Super Fêmea (1973), Elas são do Baralho (1977), As Aventuras Amorosas de um Padeiro (1975), Histórias Que Nossas Babás não Contavam (1979) e E Agora José? – Tortura do Sexo (1979), a diretora da película, Fernanda Pessoa, escolhe olhar o fenômeno das pornochanchadas a partir de uma perspectiva histórica.
Ela não ignora o caráter machista, homofóbico e racista dos filmes apurados, mas adiciona a questão de que essas obras possuem uma análise poderosa sobre os temas críticos e polêmicos para a época. Agora José? – Tortura do Sexo, por exemplo, narra a história de um militante, vítima de perseguição por grupos paramilitares, e ainda conta com uma forte cena de tortura.

Um gênero marcado por sua dualidade
Transgressor, popular, crítico, machista, mercadológico, rebelde e político. Todas essas palavras podem ser utilizadas para descrever o fenômeno das pornochanchadas, cuja complexidade gera um afastamento da sociedade em relação a esses filmes. É um gênero dúbio e controverso, mas também muito estigmatizado por setores elitistas e moralistas, que o menosprezam devido ao seu caráter erótico e popular.
“Existe muita desinformação sobre as pornochanchadas. É preciso discutir sobre esses filmes. Eles fazem parte de um momento muito importante na história do nosso cinema.”
– Marcelo Müller