Qual número completa a sequência 1, −3, 9, −27, 81,…? Se perguntas desse tipo não são novidade, você provavelmente conhece testes de quociente de inteligência, mais conhecidos pela sigla “QI”. Esses instrumentos são psicométricos, ou seja, fazem parte da área da Psicologia que busca construir ferramentas de análise psicológica aliadas a métodos estatísticos.
Nesse caso, trata-se de um “medidor de inteligência”; quanto maior seu escore, mais inteligente você é. Mas será que eles, de fato, dizem algo a respeito das capacidades cognitivas de alguém ou o teste pode ser treinado para aumento do escore, o que não significa ganho de inteligência?
Quando e como surgiu o QI
A ideia de medir inteligência nasceu com propósitos racistas no final do século 19, quando o biólogo inglês Francis Galton criou os primeiros testes. O cientista foi o fundador da eugenia — pseudociência racista que visa eliminar elementos genéticos “indesejáveis” da sociedade — e, com as avaliações, almejava selecionar os homens e mulheres que obtivessem melhores resultados para que fossem os precursores de um suposto aperfeiçoamento da espécie humana.
Os tradicionais testes de QI são baseados na prova criada por Alfred Binet e Theodore Simon, a pedido do então ministro da Educação da França, para serem aplicados em estudantes em 1905. Os psicólogos franceses tinham o intuito de utilizar os resultados para identificar alunos com dificuldades de aprendizado, a fim de lhes dar atenção individual e auxílio nos estudos. Para a elaboração de 30 exercícios, foram consideradas apenas as faculdades mentais dos raciocínios lógico, linguístico, abstrato e matemático, como o exemplo no começo desta reportagem.
Hoje, os testes de QI são baseados na memória e nos raciocínios espacial, visual, lógico, matemático e verbal. As questões envolvem problemas com analogias; deduções; imagens e letras fora de ordem; figuras e sequências numéricas incompletas. A aplicação só pode ser feita por um profissional registrado no Conselho Federal de Psicologia (CFP) e apenas os testes ministrados por eles têm comprovação científica, diferentemente dos abundantemente encontrados na internet.
Os escores, por sua vez, são calculados de acordo com o número de itens respondidos corretamente e seu respectivo nível de dificuldade. Para saber se uma pessoa está abaixo, acima ou na média, o valor é comparado com os outros no gráfico Bell Curve, uma curva em formato de sino que ilustra que os resultados muito baixos e muito altos são raros, sendo os mais comuns entre 85 e 115.
Na visão do doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) José Aparecido da Silva, o QI é um indicador de inteligência que tenta capturar seus diversos tipos, sendo que as capacidades intelectuais são construtos — não podem ser observadas diretamente, mas se expressam no mundo. Segundo ele, mesmo invisíveis, essas capacidades podem ser mensuradas. “Os itens de um teste de inteligência são transportadores de uma capacidade que está latente no indivíduo; juntam-se os desempenhos, e eles são traduzidos como uma capacidade que alguém tem”. Isto é, os exercícios do teste são capazes de aferir uma determinada sabedoria individual que só se manifesta quando em contato com as questões; conforme os erros e acertos, a capacidade de resolução é definida.
José Aparecido está associado à psicometria, que costuma ser favorável aos testes, porém a aplicação deles não é um consenso na ciência. Maria Aparecida Moysés, doutora em Medicina pela USP e militante do “Despatologiza – Movimento pela Despatologização da Vida”, discorda da validade do uso de instrumentos como esse para dizerem algo sobre o intelecto humano. Segundo ela, a premissa inicial de se aplicar um teste único a várias pessoas de classes sociais diferentes e oportunidades distintas, para definir suas capacidades cognitivas, já é errada. Para a doutora, a inteligência é um “vir a ser”, algo que um exame padronizado não é capaz de aferir e expressar em números, pois se trata de um potencial que pode se manifestar de diversas formas e que só é conhecido quando a pessoa escolhe manifestá-lo.
Segundo ela, não há um único conceito, tampouco uma única inteligência, então o uso de uma avaliação padrão significa uma pretensiosa busca para quantificar algo que não pode ser acessado diretamente.
Na década de 1980, o psicólogo estadunidense Howard Gardner propôs a Teoria das Inteligências Múltiplas, segundo a qual existem nove tipos específicos e independentes: lógico-matemática; linguística; espacial-visual; musical; inter e intrapessoal; naturalista; existencial e corporal-cinestésica. Se o QI, de fato, disser algo sobre a nossa capacidade cognitiva, no máximo, diz sobre a primeira, segunda e terceira inteligências.
Vidas e pontuações diversas
Você pode ter dificuldades em perceber padrões numéricos e visualizar projeções 3D de imagens, mas ser muito competente em ter controle emocional em momentos de tensão e se relacionar interpessoalmente. Porém, o teste diz “quão inteligente você é” e avalia apenas algumas áreas cognitivas. Os parâmetros para calcular o desempenho, bem como para definir as aptidões que devem ser valorizadas são pré-definidos, ou seja, são criados anterior e independentemente da definição do público para o qual serão aplicados.
Lembra das competências do QI? A decisão de colocar testes matemáticos e nenhum que avalie as habilidades artísticas, por exemplo, não é aleatória. Segundo Maria Aparecida, essa é uma forma das classes dominantes usarem seus valores e padrões para examinar outros segmentos sociais. Através dessa escolha, ocorre a marginalização de atividades que, apesar de exigirem as mesmas capacidades cognitivas que outras, não são percebidas assim, o que contribui para sua subalternização e a rotulação de uma classe como menos inteligente por expressar um mesmo potencial de forma diferente da exigida.
De acordo com Adriana Marcondes Machado, doutora em psicologia social pela USP, devemos prestar atenção à individualização das causas de um problema e ao que ela chama de “força de pensamento classificatório”, que significa o impulso em simplificar a complexidade das personalidades humanas e agrupá-las de acordo com determinadas características. Ela exemplifica citando um cenário comum: o de aplicação de testes de inteligência em escolas quando os rendimentos dos alunos estão abaixo do esperado. “A pergunta não está direcionada ao que acontece neste sistema que a gente inventou, que faz com que algumas crianças vão mal [na escola]. A pergunta está direcionada a por que as crianças vão mal, como se o sistema fosse perfeito. Não à toa, essas crianças geralmente são negras e com dificuldades econômicas”.
Os diferentes desempenhos em questionários padronizados são compreendidos quando se entende que as pessoas possuem vivências diferentes. O artigo intitulado “Fractionating human intelligence”, publicado em dezembro de 2012 na revista Neuron, evidencia que o meio e o estilo de vida têm papel fundamental no desenvolvimento das habilidades mentais. Para realizar a pesquisa, mais de cem mil pessoas responderam a doze testes on-line que mediam a memória de curto prazo, raciocínio e aptidões verbais.
Os resultados do estudo indicam que a pontuação média tende a ser menor para pessoas mais velhas, ansiosas, com menos escolaridade, que fumam acima de 40 cigarros por dia e jogam poucos jogos eletrônicos. A análise incorreta de conclusões dessa ordem, por muitos anos, favoreceu posicionamentos eugênicos, meritocratas e legitimou segregações.
Não há relação de causa e consequência direta entre ser de uma inferior classe social, por exemplo, e ter um QI abaixo da média. Porém, isso pode ocorrer por imposições externas e artificiais, como o difícil acesso ao direito básico da escolaridade. Afinal, vai bem na avaliação quem tem familiaridade com o assunto, e pelo teste avaliar conhecimentos – e não inteligência –, o aprendizado escolar influencia na pontuação.
Outra descoberta é a de que não há um componente de inteligência geral, ou fator G, como proposto pelo psicólogo inglês Charles Spearman em 1904. O conceito sugere a existência de um único componente cognitivo que influencia e correlaciona grande parte das capacidades mentais humanas. Contudo, ressonâncias magnéticas demonstraram que diferentes habilidades intelectuais são coordenadas por diferentes partes do cérebro e estão relacionadas a distintas atividades neurais, o que dialoga com a Teoria das Múltiplas Inteligências. De acordo com um dos realizadores do estudo, o neurocientista Adam Hampshire, essa revelação atesta que o QI é uma simplificação do espectro de inteligência humana – um lado de um cofrinho recheado de moedas – sendo falho por negar seus diferentes tipos e considerar um fator único que não existe.
Um Quê de Interpretações racistas
A inteligência não pode ser resumida a um componente inato, sequer à capacidade dos indivíduos raciocinarem abstratamente, resolverem problemas e se lembrarem de informações. Mas esses foram os parâmetros utilizados ao longo da história para determinar potenciais, principalmente em solo estadunidense.
A Segunda Guerra Mundial foi palco para uma das primeiras aplicações em massa dos testes de QI. As avaliações foram utilizadas com o propósito de testar os conhecimentos sobre o intelecto humano desenvolvidos no período e também definir os cargos dos soldados norte-americanos: os que pontuavam mais eram designados para cargos de liderança e os que pontuavam menos, para batalhões de desenvolvimento – ou eram dispensados.
Essa pesquisa gerou extensos resultados – mais de um milhão de soldados foram testados – e incentivou novos usos e aplicações. No capítulo “Intelligence tests and immigration to the United States, 1900–1940”, do livro Encyclopedia of the Human Genome, o historiador Garland Allen aponta que, na década de 1920, o QI de imigrantes que desembarcaram na Ilha Ellis, em Nova York, foi aferido com o intuito de identificar a etnia dos povos que fizessem menos pontos, deportá-los e impedir, formalmente, suas futuras entradas através da legislação.
Por meio da noção de que a inteligência nunca muda e da ideia de raças superiores e inferiores, os resultados foram usados em políticas eugênicas. Parcelas da população que possuíam escores abaixo dos valores normativos eram internadas em hospitais psiquiátricos ou esterilizadas.
Outros horizontes, para além do QI
Não há uma única forma de realizar uma avaliação psicológica. Para substituir a tradicional testagem de QI, a doutora Maria Aparecida propõe uma lógica completamente diferente: avaliações individuais, sem padrões, pelas quais o avaliado se expressa livremente de acordo com o que é valorizado em seu meio e o avaliador não busca o que falta em suas expressões, mas se adequa a elas e as interpreta para entender o que as subsidia.
A doutora diz que utilizou essa forma de avaliação com crianças em suas pesquisas. Por esse método, o avaliador não impõe uma atividade e pede à criança para resolvê-la, mas sim pede a ela que demonstre o que ela sabe fazer e o que gosta de fazer – Maria exemplifica citando o interesse por construir pipas ou jogar bolinhas de gude. Essas ações são analisadas e, segundo a pesquisadora, é possível entender as características cognitivas, psicomotoras e afetivas dos jovens.
E, para os curiosos, a resposta da pergunta inicial é −243. Tratam-se das potências de base -3, sendo que o último resultado está elevado a 5 (-3 x -3 x -3 x -3 x -3 = -243). Mas, agora, é mais fácil entender que acertar ou não essa pergunta diz muito pouco sobre suas habilidades cognitivas.