Por Leonardo Milano (leormilano@gmail.com)
Para alguns o dia 15 de março não significa nada. Mas, na verdade, é uma data emblemática. No dia 15 de março de 1967, Artur da Costa e Silva tomava posse como “presidente” do Brasil, substituindo Humberto Castello Branco, primeiro militar a assumir o cargo após o golpe que derrubou João Goulart em 1964. Em 15 de março de 1974, mais um militar, Ernesto Geisel, assumia a “presidência” do país. Por fim, no dia 15 de março de 1979, João Figueiredo, o último ditador, tomava posse do cargo de “presidente da República”. Estamos em 2015 e, coincidentemente ou não, o dia 15 de março é novamente emblemático: milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo da presidente Dilma Rousseff, democraticamente eleita há apenas quatro meses. Enquanto alguns pediam a volta do regime militar, outros reivindicavam o impeachment da presidenta. No entanto, a maioria só queria que o PT nunca tivesse chegado ao poder.
Os protestos ocorreram em diversas cidades do país, com destaque para Brasília, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, onde algumas estimativas realizadas pela polícia militar afirmaram que havia em torno de 1 milhão de pessoas. Eu, que frequentei duas das manifestações ocorridas no mês de junho de 2013, ao relembrar dados divulgados pela própria polícia militar, desconfio que ou esse número, amplamente divulgado pela mídia, tenha sido superestimado ou que as estimativas da quantidade de manifestantes nos protestos ocorridos há quase dois anos estavam muito erradas. As cifras divulgados pela PM são controversos e costumeiramente diferem dos dados divulgados pelos organizadores das manifestações e por institutos de pesquisa, como é o caso do Datafolha, que divulgou um dado afirmando que não havia nem 300 mil pessoas na Avenida Paulista.
A concentração estava marcada para as 14h, em frente ao MASP, mas os manifestantes, ansiosos para externarem sua revolta, chegaram muito antes e com seus apitos, cartazes e vuvuzelas (provavelmente adquiridas em julho do ano passado, durante a Copa do Mundo) e deixaram clara a sua insatisfação com “tudo isto que está aí”. Apesar da revolta generalizada, os principais alvos foram a presidente Dilma e o ex-presidente Lula. Enquanto muitos cartazes hostilizavam o Partido dos Trabalhadores e as duas figuras citadas, poucos pediam a tão necessária reforma política. Poucos, aliás, pediam soluções concretas.
Os trios elétricos, que costumam hibernar após o carnaval, estavam novamente nas ruas. Mas as tradicionais marchinhas foram substituídas por ritos que pediam desde uma intervenção militar até o impeachment da presidente. Os artistas tupiniquins que agitam os foliões durante o feriado festivo que “inaugura o ano dos brasileiros” foram substituídos por “mestres de cerimônia”, isto é, agitadores que puxaram rezas, gritos de ódio aos políticos do PT e o aclamado hino nacional.
Hino este que foi tocado diversas vezes e cantado com louvor pelos manifestantes, que pareciam torcedores da seleção brasileira que chegaram por engano à Avenida Paulista ao estarem se dirigindo a um jogo do Brasil. Exibiam o emblema da CBF como se tivessem orgulho da entidade que administra o futebol brasileiro, e que com certeza é a maior responsável pelo vexame da nossa seleção na Copa do Mundo de 2014. Mas, como todos sabem, brasileiro tem memória curta… E alguns, inclusive, parecem não se lembrar nem do que ocorreu de 1964 até 1985, período no qual sair às ruas para se manifestar e criticar o governo era expressamente proibido.
Muitos pais fizeram questão de levar seus filhos para protestarem. Pergunto-me o que um pai pode responder para seu filho, caso este lhe pergunte por que tantos cartazes pediam a volta do regime militar. Enquanto transitava entre os manifestantes, deparei-me com uma criança que vestia trajes militares. Mas não é meu papel criticar a educação que os pais dão a seus respectivos filhos. Não neste texto.
Havia muitas crianças, muitos idosos, muitas vuvuzelas, mas poucos negros. Por algum motivo isso me lembrou a plateia que assistiu aos jogos da Copa. Não só isso, mas também, o fato de que a grande maioria das pessoas que compareceram ao ato estava uniformizada com a camiseta da CBF. Se eram os representantes da chamada “elite econômica” eu não sei, mas que com certeza a grandíssima maioria deles era branca, isso eu pude ver. Mas isso não diminui a importância da manifestação ocorrida neste domingo, que, com certeza, apesar de dados controversos, mobilizou uma quantidade enorme de brasileiros. Interessa-me tentar entender o perfil de quem estava lá.
Alguns agitadores que estavam em cima dos carros de som iniciavam cânticos que também hostilizavam Dilma. Mais ou menos como ocorreu na aberta da Copa do Mundo, quando os torcedores xingaram a presidenta, mostrando a boa educação do brasileiro para milhões de telespectadores ao redor do mundo.
As bandeiras nacionais e as camisetas verde e amarelas, que antes só eram tiradas do armário em dia de jogo da seleção, foram ostentadas com orgulho pelos manifestantes. O “patriotismo” tomou a Paulista, o que isso suscita o velho argumento de que “quem se opõe ao movimento se opõe ao Brasil”. Essa é a lógica de um movimento que se apropria dos elementos símbolos da nação. Estavam ali para “defender” o Brasil dos corruptos. Um manifestante mais exaltado poderia até dizer dos “comunistas”.
Não fui à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, mas, por algum motivo, acho que a manifestação ocorrida neste dia 15 se assemelha muito ao movimento que ocorreu em 1964 e que demonstrou o apoio civil ao golpe militar. Não que eu acredite que a história irá se repetir. Até porque, nem todos que compareceram ao ato ocorrido neste domingo eram simpatizantes da ideia da retomada do regime militar ou do impeachment, mas é angustiante pensar que não havia a preocupação dessas pessoas de serem associadas a esse tipo de reivindicação.
O Brasil passa por um momento delicado. Nos aproximamos de uma recessão econômica e o governo está perdendo a sua tradicional base de apoio.
Dilma Rousseff foi reeleita com uma margem muito pequena em relação ao seu adversário no segundo turno, Aécio Neves, e isso contribuiu para exaltar ainda mais os ânimos da oposição. Gráficos divulgados após as eleições mostraram que, proporcionalmente, o PT ainda possui larga vantagem eleitoral na região Nordeste e isso provocou um sentimento nativista, para não dizer separatista, em Estados tradicionalmente mais próximos ao PSDB, como é o caso de São Paulo, onde Aécio Neves teve larga vantagem em relação à presidente reeleita. Não vi cartazes ou ouvi comentários e ritos que defendiam a separação do estado do resto da Nação, mas algumas bandeiras paulistas eram empunhadas por manifestantes.
O que se viu ontem não foi um “movimento”, já que não havia uniformidade. O que ocorreu ontem representa a insatisfação de milhares de brasileiros com um governo comprovadamente corrupto e que não consegue mais evitar o choque ideológico latente na sociedade brasileira. O que uniu os manifestantes ontem foi à revolta em relação ao governo do PT, mas não havia um consenso em relação ao que deve ser feito então. Impeachment, intervenção militar, reforma política? O que me preocupou foi perceber que para a maioria das pessoas que compareceram ao ato, “tanto faz”. O que importa é a saída de Dilma e de preferência de todos os petistas de seus cargos no governo.
Reformas são necessárias e urgentes e tanto a direita quanto a esquerda concordam com isso. Que o brasileiro está insatisfeito isso já ficou claro. Mas um projeto político está em falta. Cabe a todos nós construí-lo, mas para tanto é preciso respeito e tolerância, para que se possa acima de tudo debater, ao invés de impor. Infelizmente há muito grito e pouca reflexão.