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Tuca: a voz silenciada pela gordofobia 

Cantora abriu as portas para artistas lésbicas, porém foi esquecida na história musical brasileira
Por Lívia Uchoa (livia.uchoa@usp.br)

Valeniza Zagni da Silva, mais conhecida como Tuca, foi uma cantora e compositora brasileira de MPB nos anos 60 e 70 . Dona de produções de sucesso como o álbum Drácula I love you (1974), a cantora representa um símbolo para a comunidade LGBTQIA+ e para a luta feminista. Mulher, artista e lésbica, Tuca revolucionou a história da música brasileira.  

Do conservatório aos festivais 

Nascida em uma família tradicional, Tuca se formou aos 13 anos pelo Conservatório Paulista em Música Erudita, iniciando, assim, sua carreira musical em 1957. No cenário paulista ela se destacou com a bossa nova, estilo musical crescente nos anos 50 com influência do jazz norte-americano e do samba carioca. Nesse gênero, cantou ao lado de renomados artistas como Chico Buarque e Taiguara. 

Em entrevista para a Revista Manchete, em novembro de 1974, Tuca contou sobre esse ínicio de sua carreira no Conservatório: “Aprendia tudo com a maior facilidade do mundo e os segredos do acordeão não existiam para mim”. Influenciada pela mãe italiana, a cantora se interessou pelo instrumento desde cedo, o que resultou em sua formação precoce, três anos antes de atingir a idade mínima exigida pelo Conservatório.

Sobre sua transição da música clássica para a popular, a cantora conta que “cansou do acordeão” e, buscando novos estilos, encontrou o violão. “Parecia um mundo novo e inexplorado. Dedilhei as cordas e senti que elas respondiam ao sentimento que lhes transmitia através dos dedos”, relembrou Tuca na matéria. Após essa descoberta musical ela começou a compor, o que resultou em sua primeira música, Homem de verdade, gravada em 1962 pela artista Ana Lúcia. 

Artistas renomados da MPB. [Imagem: Reprodução/ Página Tuca no Facebook]

Já no cenário da bossa nova, o concurso “II Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior”, em 1966, foi essencial para sua trajetória musical. A cantora venceu o festival junto com Airto Moreira, cantando Porta-estandarte de Fernando Lona e Geraldo Vandré. A vitória resultou no prêmio Berimbau de Ouro e na gravação da música com o próprio Geraldo.

O festival de 66 abriu portas para a cantora, que iniciou sua era de festivais [Imagem: Reprodução/ Página Tuca no Facebook]

No mesmo ano, seu primeiro álbum intitulado Meu Eu (1966) foi lançado pela gravadora Chantecler. O disco inovou por ter a maioria das músicas autorais e mesclar a viola caipira com as músicas características da bossa nova. Além da originalidade, Tuca enriqueceu sua obra ao falar de raízes brasileiras, política e religiões de matriz africanas – o que foi revolucionário por ser um “desenbranquecimento da bossa nova”, segundo o pesquisador musical Gabriel Bernini. 

Em 1967, Tuca se apresentou com Geraldo Vandré no “Festival Internacional da Canção“, realizado pela emissora Globo. Juntos eles garantiram o segundo lugar com a composição O cavaleiro na fase nacional da competição. A participação garantiu novas oportunidades para a cantora, que, em conjunto com o artista Miele, passou a se apresentar no Rui Bar Bossa com o show “Uma noite perdida”.

Seu segundo álbum, Tuca (1968), foi lançado pela Philips. Nessa nova produção, a artista mesclou suas músicas autorais com produções de outros compositores. Ambientado no auge da ditadura militar, as canções protestavam contra o sistema repressor nas entrelinhas de suas letras. Atualmente é o único álbum da artista que está disponível no Spotify

“Em Paris, sou uma mulher feliz”: Tuca pela Europa

No ápice da ditadura foi instaurado, no final de 1968, o AI-5 , decreto que iniciou um momento de repressão e perseguição política. No mesmo período, Tuca decidiu sair do país, insatisfeita com as condições políticas. Em busca de aprimorar sua música e mostrar ao público seu talento, sem que fosse associada somente ao seu sobrepeso — característica que a distinguia das demais artistas da época —, a cantora iniciou sua temporada europeia, que durou até 1974.

Em solo europeu, Tuca passou pela Espanha, Itália e finalizou sua estadia com uma temporada em Paris. Nesse período, ela aprimorou sua habilidade com outros instrumentos e passou a se apresentar no restaurante brasileiro La feijoada na França, onde a amizade com a cantora francesa Françoise Hardy começou. Hardy ficou muito interessada na canção Même Sous La Pluie de Tuca, porém a produção já estava prometida a outra artista. 

Na foto, Tuca e Françoise Hardy [Imagem: Reprodução/ Página Tuca no Facebook]

O vínculo entre as artistas resultou na gravação do álbum La question (1971). A obra foi uma colaboração com Tuca, que participou da produção e gravação de praticamente todas as faixas, que mesclam o estilo de ambas. O disco fez tanto sucesso que a artista francesa reconheceu em sua autobiografia Le désespoir des singes… et autres bagatelles (Robert Laffont, 2008) que a produção com Tuca foi uma de suas favoritas e mais importantes de sua carreira.

Outra parceria musical importante foi com a cantora brasileira Nara Leão, que ajudou Tuca a se estabelecer na capital francesa. O resultado foi o álbum duplo 10 anos depois (1971), lançado pela gravadora Polydor. Caracterizado apenas pela voz e violão das duas, as faixas foram inteiramente alteradas no Brasil com arranjos de Roberto Menescal e Luiz Eça.

‘Drácula I love you’: fruto de um amor 

“Tuca era muitíssimo sensível e doce, mas ao mesmo tempo muito intensa, ardorosa e destemida em suas convicções. Segura de si, irradiava brilho e inteligência.”

Jeannette Priolli

A artista plástica Jeannette Priolli conheceu Tuca enquanto estava estudando artes em Paris, e, juntas, elas iniciaram uma bela parceria na música e também no amor. Em entrevista para a Jornalismo Júnior, Jeannette contou como foi a criação e o impacto do álbum Drácula I love you para a época, uma das produções mais conhecidas de Tuca, e considerada pela própria artista como sua melhor obra, segundo Priolli. 

 “Não houve um convite, foi acontecendo… A partir de conversas entre nós sobre questões tabus fomos delineando, sem perceber, as letras, músicas e o conceito”, relata Priolli, sobre o início da produção, em 1972. Em conjunto com Mário de Castro, amigo e compositor, elas produziram nove canções em português e uma em francês, sendo que muitas das letras falavam de amor homoafetivo, o que não foi bem aceito no Brasil ditatorial.

“Todos os momentos passados com Tuca foram especiais e valeram cada segundo” conta Jeannette Priolli, que teve um relacionamento de sete anos com a cantora. [Imagem: Reprodução/ Página Tuca] 

Além da arte e do conceito do LP, Priolli produziu as letras das músicas Girl, Para você com amor e O Sorvete. Ao chegar no Brasil em 1974, a capa original do disco — uma pintura de Priolli— foi censurada pela Som Livre: “Até hoje não entendo por que compraram os direitos do LP. Acho que não estavam preparados para entender o trabalho”, comentou a parceira de Tuca. 

Capa original de Drácula I love you com a pintura Reflexion de Priolli. [Imagem: Reprodução/ Obra Jeannette Priolli] 

Ainda em um cenário repressor, as canções O Sorvete— sobre LSD—, Drácula I love you e Para você com amor foram questionadas pela Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal. Em documentos da época, um dos chefes do serviço de censura, Azevedo Netto, declara que as produções “encerram mensagens aflorando o sexo de forma bastante torpe”. Apesar das músicas terem sido liberadas, o comentário de Azevedo ilustra bem o pensamento regressivo do regime, que buscava a manutenção de uma moral heteronormativa.

O esquecimento de uma estrela

Apesar de todo seu talento e riqueza musical, Tuca sempre foi reduzida a sua aparência física. A cantora era questionada constantemente sobre seu peso, além de ser referida, em matérias jornalísticas, como “a gorda”. Uma entrevista argentina disponibilizada no Youtube é emblemática: ao invés de questionar sobre suas produções musicais, a primeira pergunta para Tuca é sobre seu corpo. 

Sempre com um sorriso no rosto e respostas espertas, a artista respondia comentários gordofóbicos com humor e ironia, em uma época em que o termo gordofobia sequer era problematizado ou discutido pela mídia. A pressão estética sobre Tuca era tanta que, em 8 de maio de 1978, ela faleceu, com apenas 33 anos. A trágica morte ocorreu por conta de um regime macrobiótico intenso que a fez perder 40 kg em apenas um mês, o que resultou em uma parada cardíaca. 

Matérias da época mostram que a aparência física de Tuca sempre era uma pauta, independente de suas produções
[Imagem: Reprodução/Página Tuca no Facebook]

O pesquisador de MPB e coordenador da página “Tuca” no Facebook, Rogério Augusto de Oliveira, conta que conheceu a obra da cantora em 2000 por meio de um amigo colecionador de discos. As produções da artista chamaram tanto a sua atenção que ele decidiu abrir uma página no Orkut, e posteriormente no Facebook, para a cantora. “A página é dedicada à obra e à memória da Tuca, que ao longo dos anos foi esquecida”. 

Sobre esse esquecimento, Rogério explica que, além da morte precoce, ele foi influenciado tanto pela produção internacional de Tuca—que não foi muito valorizada em território brasileiro—,  como também pelo machismo e gordofobia enraizados na sociedade. “A família que detém os direitos autorais também tem responsabilidade nesse apagamento, porque dificulta projetos que envolvam a cantora”, acrescenta. Para Priolli, a falta de divulgação de Drácula I love you pela gravadora também freou o impacto da obra de Tuca. 

Atualmente, os álbuns da artista estão disponíveis no Youtube de forma não oficial, o que atraiu admiradores para a página de Rogério. O último disco original possui poucas unidades disponíveis que são disputadas na internet, o que, segundo o pesquisador Gabriel Bernini, não é positivo, tendo em vista que o disco é exposto como troféu e não com o apreço de uma obra musicalmente rica. A memória e obra de Tuca vive e deve ser reconhecida, porque ela foi — e é  — essencial para a música brasileira. 

*Capa: Jornalismo Júnior – imagens: Jeannette Priolli/Wikimedia Commons/ SugeySima e Brett Jordan/Pexels

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