Lolita é um dos primeiros filmes dirigidos pelo grande Stanley Kubrick. Estreada em 1962, a adaptação da obra homônima do escritor russo Vladimir Nabokov traz, além da direção de peso, nomes como Sue Lyon e Peter Sellers em seu elenco.
A história é familiar ao público: Humbert Humbert (James Mason), professor inglês, se muda para um subúrbio americano e aluga um quarto na pensão da viúva Charlotte Haze (Shelley Winters), que cria sozinha sua filha adolescente, Dolores (Sue Lyon) — apelidada de Lolita. Humbert, obcecado pela adolescente, casa-se com Charlotte, apesar de não suportar a nova esposa. Quando esta morre, assume a guarda da jovem e sai em viagem com ela, desenvolvendo uma narrativa de crescente possessão.
Quem conhece outras obras de Stanley Kubrick dificilmente considera Lolita uma de suas melhores produções. Difere muito de outros clássicos do diretor como O Iluminado (The Shining, 1980) e Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1971). Mas não deixa de ser uma obra que reflete a genialidade do diretor ao tratar de assuntos polêmicos. Foi sua primeira produção com a liberdade criativa total que permitiu a geração de seus clássicos.
Ao assistir é preciso tentar se colocar na época em que foi feito pois, ao mesmo tempo que é bem dirigido, não traz entretenimento puro. É arrastado e de longa duração. Desconfortável de se assistir. Exige paciência.
Mesmo com sua narrativa polêmica e escandalosa ao público, o filme recebeu boas críticas da imprensa. O humor negro explorado na figura de Clare Quilty talvez não seja tão apelativo para nós, apesar da boa participação do ator Peter Sellers na construção do sarcasmo.
Merece ser destacado que Kubrick consegue realizar uma boa adaptação para além da simples troca de mídias — mas não é mérito integral seu, visto que o próprio Nabokov participou da roteirização. A história se afasta do livro, o que é típico do diretor — isso viria a acontecer também em O Iluminado, por exemplo. A muda sem receios, o que, apesar de atribuir personalidade à obra, como no fortalecimento de personagens como Clare Quillty (Peter Sellers), pode trazer certas problemáticas, como a ultrassexualização da atriz Sue Lyon.
É interessante essa adaptação bem-sucedida mesmo com imposições da produção em alguns aspectos, como a exigência de uma “Lolita” mais velha — ao invés de 12 anos, no filme ela tem 14 — e a coibição de cenas de sexo explícitas.
Um dos pontos mais positivos é justamente o aproveitamento desses pequenos cortes a seu favor, feitos para evitar censura ou maiores impactos — se o enredo por si já é polêmico, trazer cenas fortes em forma de imagem seria inviável.
A força da sugestão
Kubrick sabe muito bem como deixar o espectador transtornado ao trabalhar a montagem da história para que, mais que apenas assistir, sintamos algo sem necessariamente vermos o que acontece. Em Lolita, todas as cenas são carregadas de uma tensão implícita, causando desconforto.
Ao apostar na sugestão, o diretor se abstém de cenas que poderiam impactar ainda mais a sociedade conservadora da época. Mas essas intervenções não deixam a história incompleta, pois o implícito promovido contribui para angustiar ainda mais a quem assiste. A cena em que Lolita conta voltas no bambolê, por exemplo. Não teria nada de absurdo se não fosse a tensão criada pelo olhar malicioso de um homem doente sobre uma atividade infantil e comum. Não há muito nessa cena em específico, mas a sugestão de que algo está errado é o suficiente nesse contexto.
A degradação progressiva do homem
Mas Lolita, mais do que a obsessão doentia de um homem de meia-idade por uma adolescente, é a narrativa da degradação moral e mental daquele. Conforme o tempo passa, o sentimento de possessão progride, principalmente após a morte de Charlotte. A menina é proibida de ter uma vida comum para estar dentro das exigências de quem supostamente deveria cuidar dela, além de abusada psicológica e sexualmente. A necessidade de controle é tão grande que Humbert se torna integralmente louco no final. Sem qualquer moral desde o início, perde qualquer sanidade que tinha com o tempo e pelo o sentimento doentio que carrega dentro de si. É uma crise de identidade. Essa é o foco sublime do filme.
A pedofilia que aceitamos
Lolita, tanto o livro quanto o filme, é tradicionalmente objeto de discussão polêmica por trazer a questão da pedofilia tão escancarada. A produção gerou controvérsias na época, algo que se perdeu ao longo do tempo. Ninguém concorda integralmente que Humbert está correto, mas parece que o elemento indignação também foi esvaziado.
Logo, é preciso ponderar sobre a comum e errônea romantização do enredo. Não é raro se deparar com opiniões decerto desviadas sobre o filme e, consequentemente, a trama em si.
Lolita não é uma história de amor. Tampouco as atitudes de Humbert são compreensíveis em momento algum.
Já li e ouvi que Humbert se faz compreensível em certos momentos, ou de que seria Dolores quem seduz o professor. Parte disso acontece pela escolha de uma atriz mais velha para a caracterização da personagem, adultizando-a. Uma escolha de bastidores para evitar grandes choques com o público da época, mais conservador, em plena década de 60.
Entretanto, ele revela um caráter questionável durante todo o filme. Escolhe o local de morada baseado em visões distorcidas sobre uma menina menor de idade. Casa-se com a mãe dela para continuar próximo de sua obsessão. Abusa física e psicologicamente dela sem culpas envolvidas. Lolita é uma adolescente normal que, ao fim, torna-se uma mulher traumatizada por conta da mentalidade doentia de um homem cínico.
Ao assistir Lolita, a jovem pode parecer, a primeiro momento, comparável a uma mulher sedutora. Porém, tal como no livro, interpreto que há um direcionamento proposital na construção dessa imagem. Os acontecimentos são indiretamente demonstrados sob a visão de Humbert. Em sua mente, Lolita é uma mulher com intenções sobre ele. Assim, ao assistir desatento, o espectador confunde o que realmente acontece com a interpretação de um pedófilo.
Além disso, os impactos da atenuação das ações de Humbert também são um empecilho. Quem vê desatento consegue criar empatia, pois o personagem foi modificado e transformado em alguém que, mesmo louco, traz mais humanidade do que quando comparado à obra original. É solícito e educado ao mesmo tempo em que é doente. Isso indiretamente atenua os efeitos de suas ações. No filme somos apenas espectadores, não entramos na mente dele (como ocorre no romance de Nabokov), sendo preciso o dobro de atenção aos acontecimentos.
Por isso, se faz necessário ressaltar que Lolita não pode ser considerado romance. É o abuso físico e psicológico de uma adolescente. Esta sobrevive da maneira que pode quando sua mãe morre e se encontra sem outro amparo, sob os cuidados de um homem obcecado. Abdicá-lo de culpa integral é ignorar o contexto da história e perpetuar uma interpretação errônea e pouco atenta.
por Yasmin Oliveira
yasmin.oliveirac12@usp.br