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A Última Sessão de Música: vida e legado de Milton Nascimento

Poucos dias após completar 80 anos, cantor se aposenta dos palcos deixando um enorme legado à MPB em 60 anos de carreira

E assim foi. No dia 13 de novembro, Milton Nascimento se despediu dos palcos no show que encerrou a turnê A última sessão de música, no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte. Os fãs não deixaram de prestigiar a última oportunidade de ouvir o cantor ao vivo, em uma turnê com apresentações praticamente esgotadas. 

“Ter a chance de ver Milton de perto é quase indescritível, como se você estivesse em frente a uma entidade, ainda mais nessa última turnê que anuncia a despedida dos palcos”, relata a jornalista Ana Luísa D’Maschio, que esteve presente na apresentação de 25 de setembro. “Basta entoar a primeira nota – não há quem deixe de se emocionar”, descreve.

O ano de 2022 marca a aposentadoria de Milton dos palcos – mas não da música. Com 80 anos recém-completos e 60 anos de carreira, há ainda muito a ser celebrado: “Ouvir a poesia de Milton é se encher de esperança. Que sorte a nossa ter um brasileiro tão gigante quanto ele”, completa Ana.

Milton Nascimento no último show da turnê.
Milton Nascimento durante a turnê A última sessão de música, com manto do figurinista Ronaldo Fraga. [Imagem:Reprodução/Facebook/@miltonbitucanascimento]

Letras existenciais e uma voz potente
“Solto a voz nas estradas, Já não quero parar
Meu caminho é de pedra, Como posso sonhar?”
– Trecho de Travessia

Diferente de Gilberto Gil e Caetano Veloso – outros grandes nomes da MPB que completaram 80 anos em 2022 – Milton Nascimento não é de muitas palavras. “Nunca foi”, explica a musicista, professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo, Sheyla Diniz, “ele se expressa muito mais pela voz. E essa voz dele, né? Tão extensa, tão potente, um timbre tão bonito”, comenta. 

Com uma obra muito identificada com Minas Gerais, Milton nasceu, na verdade, no Rio de Janeiro (RJ), mas, ainda criança, mudou-se para Três Pontas (MG) com sua família adotiva. É nessa época que ganha o apelido de Bituca. Criado em uma família musical, participou de conjuntos e se apresentava em bailes durante a adolescência. Sua primeira gravação profissional foi Barulho de Trem, em 1962, marcando o começo dos seus longos anos de carreira.

Suas composições começam a se destacar em 1966, com Elis Regina interpretando Canção do Sal e Agostinho dos Santos, com Maria, Minha Fé. Para Rodrigo Faour, crítico musical e autor de História da Música Popular Brasileira sem preconceitos (Record, 2021), as letras de Milton são sua maior particularidade e é o que se destaca em suas obras. “A maior parte da obra de quase todos os grandes compositores brasileiros é de temas românticos, com raras exceções. Mas o Milton tem um lado existencial maior do que o dos outros, principalmente na fase áurea da obra dele, do final dos anos 1960 ao final dos anos 1980”. 

O crítico destaca que suas grandes canções tratam de temas ligados à cidade, à Minas Gerais e sobre questões humanas. “Eventualmente também algumas relacionadas à política, mas sempre um pouco ligado a uma questão existencial muito forte. Isso eu acho muito interessante, porque o essencial também passa por questões políticas, por questões de onde você vem”, completa.

Milton se apresentando.
Milton durante apresentação no 2º Festival Internacional da Canção, da TV Globo (1967). [Imagem: Reprodução/Facebook/@miltonbitucanascimento]

Já sua voz se tornou conhecida por todo o país em 1967, ao vencer o 2º Festival Internacional da Canção, da TV Globo, interpretando Travessia, composição com Fernando Brant. No mesmo ano, lançou seu primeiro LP, com o mesmo nome da canção vencedora. Esse foi o primeiro de mais de 30 discos já lançados pelo cantor. O de maior destaque, porém, foi Clube da Esquina, de 1972.

Experimentação e amizade no Clube da Esquina
“Porque se chamava homem, Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem”
– Trecho de Clube da Esquina II

Recentemente eleito o melhor disco brasileiro de todos os tempos, Clube da Esquina, que completou 50 anos em março, trouxe algumas inovações para a época, a começar por ser o primeiro álbum duplo (dois discos, com quatro lados) gravado em estúdio no país. Para Sheyla Diniz, o que caracteriza a obra é a versatilidade e a disponibilidade que a gravadora Odeon Records permitiu aos músicos no estúdio.

Formado por músicos e compositores, como Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos e outros, além do próprio Milton, os amigos puderam realizar um grande revezamento dentro do estúdio. “O músico que não é percussionista, por estar ali naquele momento, grava uma faixa tocando percussão. O Toninho Horta, que não é baixista, toca baixo em Trem de doido, por exemplo, e aí ele usa muito a linguagem da guitarra”, explica a pesquisadora. “Essa grande versatilidade dos músicos possibilita um alargamento idiomático na música, nas possibilidades de timbre. Então, eles foram experimentando dentro do estúdio”, conclui.

Outra característica do álbum é uma mistura de gêneros e influências. Trazendo elementos do jazz, do rock – especialmente dos The Beatles –, mas também da bossa nova, de congadas mineiras e de ritmos que vem da diáspora africana, mas que não passam necessariamente pelo samba, o disco “é uma grande fusão de elementos aparentemente díspares, que essa grande reunião de músicos, com referências diferentes, trocando informações e linguagens, possibilitou”, resume Sheyla.

Para Faour, outro elemento chave são as temáticas, sonoridades e ritmos que fazem referência à América Latina. “Nos anos 1970, a produção da música latino-americana e a brasileira estavam muito descoladas uma da outra. A música latina já estava em uma outra fase, também um pouco mais engajada politicamente. O Clube da Esquina foi pioneiro em trazer mais a América Latina para o Brasil”, explica.

Apesar da mistura, as canções dialogam uma com a outra, compondo um disco coeso e conceitual. “A amizade talvez seja o laço que une tudo isso, além da informalidade, da criatividade, espontaneidade e experimentação”, opina Sheyla.

Esquina da Rua Divinópolis com Paraisópolis em Belo Horizonte (MG), com placa em homenagem ao Clube da Esquina assinada por Márcio Borges. Ao contrário do que muitos fãs acreditam, os músicos não se reuniam nessa esquina. Na verdade, Lô Borges, quando mais novo, se reunia com seus amigos do bairro no local. [Imagem:Reprodução/Facebook/@severinobill]

Sem se caracterizar como grupo, a reunião de amigos se relacionava de maneira informal e espontânea, sem a intenção de ser um movimento. A partir dos anos 1990, um trabalho que partiu da mídia, dos fãs e de alguns dos próprios músicos, ajudou a marcá-lo como um movimento, que parecia, até então, ter sido esquecido diante de outros movimentos da mesma época, como a Tropicália e a Bossa Nova.

Consagração e legado para a MPB

Na época de Clube da Esquina, Milton já era um músico bastante reconhecido a partir dos festivais, já havia lançado alguns discos e era tido como ícone da MPB. No final dos anos 1970, após o lançamento de Clube da Esquina II e a dispersão dos amigos, as carreiras solo se consolidam e Milton se consagra ainda mais, lotando estádios em shows e vendendo muitos discos. Mesmo sob o AI-5, o mercado de bens culturais crescia exponencialmente.

Na ditadura, no final dos anos 1960 e início dos 70, Milton se apresentou em festivais universitários para apoiar a luta do movimento estudantil. Sua casa, assim como a de outros amigos do Clube da Esquina, abrigou amigos que estavam sendo perseguidos. Algumas músicas também foram censuradas. Em Milagre dos Peixes (1973), álbum posterior ao primeiro Clube da Esquina, três canções tiveram suas letras censuradas: Os Escravos de Jó, Hoje é Dia de El Rey e Cadê. “Às vezes as pessoas acham que o disco foi todo censurado, mas não, porque grande parte das canções já era instrumental”, explica Sheyla.

Outros álbuns de destaque de sua carreira são Minas (1975) e Geraes (1976). Sua canção Coração de Estudante, de 1983, tornou-se símbolo das Diretas Já. Para a pesquisadora, as canções são o maior legado que Milton deixa nesses 60 anos de carreira. “São tantas canções que são testemunhas. Testemunhas de um Brasil difícil, um Brasil triste, mas ao mesmo tempo um Brasil que tenta se reinventar. E muitas das canções falam de valores como a amizade, a partilha, a comunhão. O Milton tem essa profundidade de expressar nas canções uma beleza quase inexplicável”, comenta.

Em 1993, o disco Txai traz o encontro de aldeias indígenas, seringueiros e habitantes da floresta em uma viagem de barco do Acre até o Peru. O álbum ficou em primeiro lugar da lista de world music da revista Billboard. Em 1998, ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Música, com Nascimento (1997).

Para Rodrigo, esse é outro aspecto do legado de Milton. “Apesar de fazer uma carreira de muito êxito no exterior, ele nunca se virou de costas para o Brasil. Muita coisa que é valorizada hoje na cultura negra e indígena, o Milton já olhava para esse lado muito lá atrás. Ele sempre valorizou as nossas origens e a questão da natureza, em uma época que isso ainda não era comum”, afirma. Participante da Eco-92 e da Rio+20, “Milton tem um papel meio que de embaixador do país, das coisas realmente bonitas do Brasil, das que valem a pena”, conclui Rodrigo.

“Seja o que vier, Venha o que vier,
Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar,
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar” 
– Trecho de Canção da América

A despedida em Belo Horizonte reuniu quase 60 mil pessoas, além de amigos do Clube da Esquina como Wagner Tiso, Lô Borges, Toninho Horta e Beto Guedes, e cantores como Samuel Rosa. O último encontro, disponível no Globoplay, não é de todo um adeus, pois seu legado permanece, afinal, chegar e partir são só dois lados da mesma viagem.

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