As adaptações cinematográficas de livros reúnem o melhor dos dois mundos: as narrativas fantásticas da literatura e os recursos audiovisuais da sétima arte. São nelas que diversos personagens queridos ganham rosto, universos inteiros constroem sua forma e histórias ganham cada vez mais alcance. Harry Potter (2001), Crepúsculo (Twilight, 2008) e Percy Jackson (2010) são alguns exemplos dos diversos mundos que ganharam formato nas telonas e conquistaram fãs ao redor do mundo. No entanto, essas adaptações, principalmente as destinadas ao público jovem, recebem diversas críticas e, conforme os anos, mudaram muito seu estilo mercadológico.
Para explorar esse assunto, o Cinéfilos conversou com uma leitora, uma roteirista e uma autora, a fim de trazer os diferentes pontos de vistas sobre as diferenças entre obras, dificuldades do audiovisual e as diversas histórias adaptadas para as telonas.
As críticas dos fãs

[Imagem: Reprodução/Rafaella Lobão]
Ao ser questionada sobre qual livro adaptado para filme é mais diferente da história original, Rafaella Lobão Chagas, estudante e administradora de um bookgram, responde de prontidão: “Já me veio uma adaptação na cabeça: Percy Jackson”. Apesar de ter muito carinho pela história, ela diz que os filmes deixaram muitas coisas de fora e mudaram muitas outras em relação ao livro. Assim como Percy Jackson, citado por Rafaella, A Bússola de Ouro (The Golden Compass, 2007), O Hobbit (The Hobbit, 2012), Os Instrumentos Mortais: Cidade dos Ossos (Mortal Instruments: City of Bones, 2013) e Divergente (Divergent, 2014) se juntam na fila das adaptações mais infiéis de livros para o cinema e que foram esquecidas pelos espectadores.

Grover (Brandon T. Jackson), Percy (Logan Lerman) e Annabeth (Alexandra Dadario) em Percy Jackson e o Ladrão de Raios (2010), interpretados por atores bem acima da faixa etária dos personagens. [Imagem: Reprodução/20th Century Fox]
“É muito triste você, como fã, ver o seu livro favorito sendo adaptado para um filme horroroso”
Rafaella Lobão Chagas
Assim como Rafaella, o mercado cinematográfico percebeu a mesma coisa.
Os filmes adaptados de livros infanto-juvenis e jovem-adultos começaram a ganhar espaço nas telonas a partir de 2001 com o sucesso da franquia Harry Potter, em que o primeiro filme alcançou mais de 1 bilhão de dólares nas bilheterias. Aos poucos, seguindo as tendências literárias, outras franquias apareceram: As Crônicas de Nárnia (The Chronicles of Narnia, 2005), Crepúsculo, Percy Jackson, Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012), etc. Essa geração possuía temática fantástica — representando mundos mágicos e mitológicos, com as mais diversas criaturas — ou distópica, que teve impactos na cultura pop adolescente e incentivou a leitura dos jovens.
Paralelo a esse estilo, em 2014, surgiram as adaptações cinematográficas de romances adolescentes, como A Culpa é das Estrelas (The Fault in Our Stars, 2014), Cidades de Papel (Paper Towns, 2015) e Como Eu Era Antes de Você (Me Before You, 2016). Esses filmes alcançaram públicos de diversas faixas etárias e, por serem de volumes únicos e não fantásticas, as histórias conseguiram ficar mais fiéis aos livros. Com o sucesso dessa segunda geração, as séries de filmes fantásticos e distópicos tiveram um grande declínio; algumas franquias, após críticas dos fãs, apresentaram quedas nas bilheterias, pouca adesão do público à trama e foram canceladas na metade, por exemplo Divergente e A Quinta Onda (The 5th Wave, 2016).

John Green, autor de A Culpa é das Estrelas, com Ansel Elgort e Shailene Woodley em set de gravação. [Imagem: Divulgação/20th Century Fox]
Dentre esses seriados, alguns merecem destaque: Shadowhunters (2016), Desventuras em Série (Series of Unfortunate Events, 2017), Anne with an E (2017), His Dark Materials (2019) e a série em produção dos livros de Percy Jackson. Todos esses exemplos são de adaptações que previamente tiveram um filme fracassado e que encontraram o seu melhor formato nos seriados.
Roteirização de livros para filmes
Em entrevista ao Cinéfilos, Bea Góes, roteirista e professora, aponta que, às vezes, os erros nas adaptações não são de quem produz o filme, mas da expectativa dos fãs em encontrar exatamente a história do livro. “Não dá para deixar cem por cento igual e nunca é a pretensão do roteirista deixar cem por cento igual. Impossível. Justamente porque, no livro, você consegue ter um desenvolvimento muito maior de detalhes e subtramas, o que em um filme é mais difícil para dar tanto destaque”, diz.
Segundo ela, filme e livro possuem estilísticas muito distintas, relacionadas com os aspectos visuais e auditivos, além do tempo de cada um. Personagens, falas, cenários e situações demoram páginas para serem descritos em livros, e o leitor pode passar horas ou dias lendo os detalhes e histórias. Por outro lado, a maior preocupação dos filmes é a história central, já que dispensa descrições devido às informações audiovisuais que são prontamente oferecidas, possui tempo limitado e tem que prender a atenção dos espectadores; por isso tramas menores são excluídas e modificadas.
“O livro tinha uma subtrama, essa demora três capítulos porque nela tem uma peça que o protagonista precisa para resolver a trama principal. Então o roteirista pensa em alguma forma do personagem conseguir essa peça que não seja por meio dessa subtrama. É aí que os fãs do livro vão à loucura; falam que isso é um absurdo, que o original era muito mais legal. E realmente era muito mais legal, mas a distribuidora não autorizou, se não o filme ia ficar com três horas e meia, e ninguém quer assistir a um filme de três horas”, exemplifica Bea.

Os livros de Harry Potter possuem diversas subtramas, o que dificulta a roteirização dos filmes. [Imagem: Divulgação/Warner Bros]
Contudo, além das limitações técnicas e narrativas dos filmes, é preciso levar em conta os pedidos, restrições e ordens dos estúdios, que muitas vezes barram elementos dos livros. O primeiro critério para a produção de adaptações não é a relevância da história, mas sim o interesse do público nela. Por isso os estúdios, canais e distribuidoras colocam ou retiram os aspectos que podem ou não agradar o público em nome do retorno financeiro. Por consequência, a grande maioria é baseada em best-sellers, o que pode indicar mais chances dos números de bilheterias serem elevados.
Bea diz que o primeiro passo do roteirista nesse tipo de filme é captar os objetivos da produtora, e, às vezes, do autor. Isso explica as mudanças dessa indústria nos últimos anos, não só do formato — de fantasias e distopias, para filmes de romances e seriados —, mas também dos perfis de histórias. Os interesses do público se modificaram e, logo, a indústria cinematográfica teve que fazer o mesmo. Entre os novos interesses — e reivindicações —, a representatividade é a principal pauta.
Whitewashing é o termo utilizado quando atores brancos são escalados para interpretar personagens não brancos, recorrente em filmes e séries baseados em livros, quadrinhos, filmes não hollywoodianos e fatos históricos. Apesar de evidente, esse tema só foi posto em pauta há poucos anos, com as crescentes reivindicações por representatividade étnica e não branca nos cinemas. Nas adaptações cinematográficas da primeira geração e início da segunda, esse problema era quase nulo, afinal não havia representatividade nem mesmo nos livros; a maioria dos protagonistas eram brancos, com exceção de Katniss Everdeen, descrita no livro como pele cor de oliva, mas que no filme é interpretada por Jennifer Lawrence, atriz branca. A mesma coisa aconteceu com os personagens LGBTQIA+: eles nem mesmo existiam nos best-sellers juvenis.

Lara Jean, protagonista americo-coreana da trilogia de romance Para Todos os Garotos. [Imagem: Divulgação/Netflix]
O último fator que pode ser importante para aumentar ou diminuir as diferenças entre as obras é o envolvimento do autor na produção do roteiro. “Isso agrega muito valor e também ajuda muito a ter uma rejeição menor dos fãs”, comenta Bea, que percebeu que essa parceria entre roteirista e autor vem crescendo muito.
O autor e as adaptações cinematográficas brasileiras

[Imagem: Reprodução/Clara Alves]
O aumento do interesse na leitura de livros que ganharam adaptações cinematográficas não é algo que acontece apenas com a Clara; um exemplo são os números de vendas dos livros depois do seu lançamento e após a estreia da adaptação. O Duque e Eu (Arqueiro, 2000), de Julia Quinn, passou três semanas, em 2000, como best-seller do New Yorker Times; após o lançamento da série adaptada, em 2020, as buscas pelo livro aumentaram bruscamente e, inclusive, fez com que o livro ganhasse uma nova edição com imagens da adaptação.
Clara não tem dúvidas sobre querer que Conectadas vá para as telonas: “É o sonho de todo escritor, porque a gente entende que ser adaptada significa estar em um patamar de sucesso. Então tem alguém que viu naquele livro uma chance de ele crescer e de se transformar no visual”. Ela fala que, nessa transformação do escrito para o audiovisual, há a magia de ver aquilo que imaginou se tornar realidade, o que, para um autor que criou o universo, é muito forte.
Caso o livro fosse adaptado, Clara diz que gostaria de se envolver, ou pelo menos acompanhar a roteirização do filme, uma vez que Conectadas traz conceitos sobre a comunidade LGBTQIA+ — o que poderia causar confusão para roteiristas não-LGBTs — mas deixaria livre para a narrativa fluir no formato audiovisual. Ela comenta que as adaptações cinematográficas têm o poder de expandir o universo para além do que está escrito nos livros e gostaria que isso acontecesse, explorando personagens secundários, por exemplo.
Sobre as coisas que não abriria mão, a autora cita a sexualidade das protagonistas — lésbica e bissexual — e as descendências delas — indígena e asiática. Esses fatores são questões importantes do livro, o que atraiu os leitores e o que os fez se identificarem com a história.

Maísa Silva em Pai em Dobro (2021), filme adaptado do livro de Thalita Rebouças. [Imagem: Divulgação/Netflix]
Isso diz muito sobre os mercados cinematográfico e literário brasileiros: os autores nacionais de literatura juvenil têm dificuldade para crescer, uma vez que não são devidamente incentivados e não há estímulo à leitura no Brasil, assim como o cinema, que não é valorizado e, recentemente, sofreu ataques do presidente Bolsonaro. Por isso, as adaptações cinematográficas brasileiras são poucas, com exceção de obras da literatura clássica, e com temas não muito variados.