Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

O preço de se usar agrotóxicos em excesso, hoje

Por Karina Merli (karina.merli@gmail.com) Este texto é fictício e apresenta suposições baseadas na entrevista realizada com Roberta Nocelli, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisadora da ecotoxicologia de abelhas.   Imagine viver em um lugar onde comer um alimento ou beber água pode ser severamente danoso para a sua saúde. Some a isso, mudanças …

O preço de se usar agrotóxicos em excesso, hoje Leia mais »

Por Karina Merli (karina.merli@gmail.com)

Este texto é fictício e apresenta suposições baseadas na entrevista realizada com Roberta Nocelli, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisadora da ecotoxicologia de abelhas.

 

Imagine viver em um lugar onde comer um alimento ou beber água pode ser severamente danoso para a sua saúde. Some a isso, mudanças climáticas abruptas, desmatamento e terra infértil… Eu falo de um futuro não muito distante do seu, talvez dez ou vinte anos a sua frente…  Na casa onde vivo, sou chamado de guerreiro e não entendo bem a razão. Por aqui, a vida tem sido difícil, não para mim, pois os humanos me tratam muito bem, mas para eles. Com frequência passam mal, sentem dores de barriga, de cabeça, tontura, coceira e distúrbios respiratórios.

Meu nome é Cuco, sou uma ave jovem da espécie Hydropsalis albicollis, popularmente chamada de bacurau, e a história que vou contar pode ser alterada por você que me lê.

 

No Brasil, os bacuraus são uma das espécies afetadas pelo mau uso dos agrotóxicos. Foto: Reprodução.

O ser humano usou agrotóxico para proteger a produção agrícola de insetos, plantas invasoras ou patógenos que pudessem comprometê-la. Porém, a falta de informação de uns e a ganância de outros fez com que o uso deste componente fosse se tornando um problema exponencial. Além disso, as autoridades não fiscalizavam, nem conseguiam ofertar assistência aos pequenos agricultores, que não tinham dinheiro para pagar um agrônomo. Essa situação foi abrindo caminho para que os defensivos agrícolas fossem usados indiscriminadamente.

Como se a situação já não fosse ruim o bastante, o governo achou prudente aprovar o Projeto de Lei (PL) 6.299/2002, conhecido, naquele tempo, por “PL do Veneno”. De caráter polêmico, ele passou a centralizar a decisão sobre a liberação do agrotóxico no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), não levando em conta a importância de ser avaliado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que analisavam os impactos na saúde humana e no meio ambiente.

Quem era a favor dele dizia que iria desburocratizar o processo, mas não levou em conta que existia a demora por falta de pessoal nessas instituições, nem que a liberalização de um composto tóxico requer cautela e critérios. Mas você deve se perguntar: por que não passaram a produzir culturas sem agrotóxicos? Porque ainda faltavam estudos para saber exatamente como fazer isso e porque os humanos sempre tiveram dificuldade em se enxergarem dentro do ecossistema. Não sei… Por alguma razão, eles não se sentiam animais como nós.

A contaminação do solo e dos sistemas hídricos se acelerou. Mesmo os defensivos agrícolas, que eram colocados diretamente nas plantas, acabavam sendo levados pela água oriunda da irrigação. As intoxicações, mutações genéticas e câncer tornaram-se cada vez mais frequentes entre animais e humanos. Parte destes, quando aplicavam esse produto, raramente usavam a proteção necessária, como botas, máscaras, luvas, calça, jaleco, avental, boné ou viseira. Outros usavam, mas não adequadamente. E, mesmo que o fizessem, alguns estudos já revelavam que não era o suficiente para evitar a exposição.

O descarte das embalagens também era incorreto, por vezes queimadas ou enterradas. Os primeiros humanos a sofrerem com o uso indiscriminado e incorreto do defensivo agrícola foram os trabalhadores rurais e a população que vivia próxima às lavouras, onde ele era utilizado. Porém, pouco se falava desses casos e o acompanhamento acerca de seus reais efeitos sobre a saúde humana não recebia o apoio necessário. Somente alguns episódios nos quais existiram altas dosagens, como o da Escola de Rio Verde (GO), ganharam os noticiários, mas com pouco impacto na prática. O consumo só aumentava. Era uma indústria bilionária.

O Brasil se consolidou como um dos líderes mundiais em consumo de agrotóxicos e o segundo maior em áreas de cultivo de transgênicos. A soja e o milho transgênicos, por exemplo, apresentavam o 2,4-Diclorofenoxiacético, um componente neurotóxico que afetava o sistema reprodutor, com potencial cancerígeno e capaz de desregular o sistema endócrino. Em meio a isso, a resistência de insetos-praga e plantas espontâneas aumentava em relação aos agroquímicos, sem contar que novas pragas começaram a surgir.

Os efeitos dos agrotóxicos passaram a afetar o comportamento das aves, pois ingeriam água ou alimentos contaminados. As partes neuropsicológica e comportamental já não eram mais as mesmas. A regulação da temperatura passou a ser prejudicada, assim como os hábitos alimentares e o voo. O nosso organismo já não conseguia mais funcionar adequadamente, muitos de nós já perdiam o peso, a salivação aumentava e a morte vinha como consequência. Migrar já não era mais possível para muitas. Meus pais também foram vítimas e, quando filhote, me vi sozinho no mundo, sem chances de sobreviver, até encontrar a jovem humana.

Na casa dela, me davam sementes de frutas colhidas na roça perto da casa. Naquela parte, eles diziam que não passavam os defensivos agrícolas, por estar bem afastada das plantações. Dentro da casa há telinhas para evitar que eu fuja e coma algo contaminado. Sei que é para o meu bem, mas há dias em que me sinto sozinho e nem canto. Os humanos tentam sempre me alegrar e conversar comigo, mesmo quando nem eles se sentem bem. Esperar pelo pior é algo muito doloroso…

Ora, mas não pense você que o agrotóxico foi o nosso único vilão. O desmatamento também contribuiu e muito para isso. As abelhas, por exemplo, se viram obrigadas a percorrer as culturas em busca de alimento e, com isso, eram contaminadas como um inseto-praga qualquer. O destino delas já começava a ser determinado ali: enfraquecer e morrer. Os sintomas da contaminação variavam de acordo com a dose e os mecanismos de ação do produto, porém, na maioria dos casos, por serem neurotóxicos — agindo no sistema nervoso dos insetos — causavam a hiperexcitação (contrações musculares) e, assim, a morte.

Os neonicotinoides (derivados da nicotina), o pirazol e o triazol eram muito usados e os que mais afetavam a saúde delas. Os dois primeiros eram utilizados no cultivo de citrus, cana-de-açúcar e eucalipto. Esses dois últimos não eram dependentes da polinização para serem produzidos, porém, eram por essas culturas que elas cruzavam em busca de alimento. Além disso, o uso de aviões para a pulverização tornavam o problema ainda maior. Para se ter uma ideia, apenas 10% do que era usualmente lançado atingia, de fato, o alvo.

Mas não eram só os pesticidas que faziam isso, os herbicidas e fungicidas, em grandes doses, causavam mazelas também. Os herbicidas provocavam irritação intestinal e os fungicidas prejudicavam o funcionamento de mecanismos que dependiam de fungos nas colônias. Logo, a produção de alimentos começou a ser afetada também.

Tentaram, então, usar as abelhas-robô, mas só quem tinha muito dinheiro conseguia tê-las nas plantações. Naquele tempo, ainda era possível e muito mais barato preservar as abelhas que sobreviveram, mas o ser humano permanecia cego, se considerando o centro do mundo e buscando solucionar apenas os próprios problemas. Ele subestimou o poder da natureza…

Sem esperanças e temendo pelo amanhã, os humanos e eu partiremos rumo a uma cidade que está chamando a atenção de todos. Por lá, os cientistas conseguiram desenvolver uma agricultura sustentável, os alimentos são abundantes e distribuídos para a população. O uso dos agrotóxicos é raro e muito controlado. A educação naquela cidade é usada para a conscientização. Eles falam da importância de se preservar as florestas, refletir sobre o impacto que a ação humana pode ter sobre elas e mostram como é a realidade em lugares em que a situação chegou ao extremo. Ela é uma das poucas do país a conseguir tamanho êxito, mas poucos conseguem entrar lá.

Os humanos afirmam que tivemos sorte, fomos escolhidos para morar lá. Como a estrutura não é grande o suficiente, o número de habitantes é controlado para ninguém passar por lá o que passamos aqui. Partiremos amanhã pela manhã. Eu espero que, com o novo amanhecer, possa ver a vida de outra forma. Saber como o meio ambiente era, antes do ser humano destruí-lo. A humana mais nova afirmou que tenho grandes chances de ser solto naquela cidade, mas temo o que pode custar a minha liberdade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *