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Crônica: Pés no chão, ‘Torto Arado’ e muita reflexão

Com uma prosa emocionante e carregada de força política e social, 'Torto Arado' muda o olhar de uma vida com pés descalços na maior cidade do Brasil

Lembro poucas coisas sobre as aulas durante o ensino básico. Lembro-me de muitos bilhetinhos trocados entre minhas amigas, e me lembro de brigar com elas a cada aula por ciúme das palavras que não passavam por mim. Lembro as broncas nas aulas de balé, as quais eu sempre detestei. As matérias mesmo, que acredito que hoje formam a estrutura básica de quase tudo que sei, não participam das memórias nostálgicas

Contudo, há uma cena que se mantém cristalina em minha mente, como se, por tantas vezes repetida, tivesse se colocado na superfície das lembranças: eu chegando em casa, tagarela como sempre, mal humorada como típico, com as meias rasgadas. Virou até piada com a minha mãe — anos depois, porque na época virava bronca: brincávamos que a escola precisava tomar cuidado com os roedores de tecidos com os quais eu me encontrava todos os dias. Nunca vi nenhum rato pelas instalações do colégio, mas o motivo de tais rasgos em meus pés se manteve um mistério por muito tempo. 

Já como adolescente, fui questionada por um colega de sala se aquilo que eu fazia era uma mania minha em todos os lugares, ou se eu o fazia apenas para estudar mais confortavelmente. Na hora, devo ter destinado a ele meu olhar mais confuso e seu indicador apontou quase instantaneamente para os meus pés sem sapatos. Nunca havia reparado naquilo, mas ele sim: disse que observou que era algo que eu fazia desde o início daquele ano letivo, por cinco meses, mas preferiu não perguntar antes com receio de ser um hábito religioso. Cinco meses. Uma risada me escapou dos lábios e aquela informação nova sobre mim mesma começou a martelar em minha mente a todo instante. Passei a reparar que aquele não era um privilégio das salas de aula: carros (mesmo em percursos curtos), casas, restaurantes, salões de cabeleireiro… Os ratos haviam encontrado novos endereços. 

Procurando uma explicação para aquela mania inédita, mas antiga, ouvi de minha mãe: “você nunca gostou de sapatos apertados, mesmo”. Bem, pelo visto nunca gostei de sapato algum, preferindo fincar os pés no chão. Transformei aquilo em algo meu e, de maneira consciente, passei a encontrar paz naquele ato. Precisava pensar? Checava se os pés estavam descalços. Perdi algum objeto importante? Só conseguiria encontrar se meus pés estivessem devidamente calçados de meias. Tinha uma apresentação importante a fazer? Perguntava se o professor se importaria se eu a fizesse sem meus tênis. E funcionava. Ao ponto de, mesmo sob piadas, conseguir convencer meus colegas de turma, ansiosos para uma avaliação, a fazerem-na descalços, como eu. O resultado foi excelente para todos. 

Poderia trabalhar em uma tese sobre isso, sobre o poder do pé no chão. Se o fizesse, poderia convidar duas personagens literárias, Bibiana e Belonísia, protagonistas de Torto Arado (Todavia, 2020), para dar seus testemunhos, uma vez que trouxeram a mim, durante a leitura de seus relatos, a sensação de estar também com os pés descalços. Pisando em um fio de corte. E sangrando. Sangrando o meu sangue, o delas e o de tantos outros. Mas, de repente, me via longe, longe daquele sangue, mas procurando incansavelmente meus mais esfarrapados curativos na tentativa de estancá-lo, mesmo que sem sucesso. 

Torto Arado: foto em preto e branco do rosto do autor, Itamar Vieira Junior
Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado” e vencedor do Prêmio Jabuti 2020. [Imagem: Reprodução/Twitter/Todavia]
Não sei se comparar a obra aos meus pés quase cândidos pisando o asfalto da maior metrópole da América Latina seria fazer jus à magnitude de Torto Arado, romance de Itamar Vieira Junior. Em todo caso, caberia dizer que a leitura se compara também a usar sapatos apertados, mas só perceber que os usa quando alguém os aponta. E sentir muito, muito mesmo, por não apontar os apertos dos outros antes. 

Encontrei nas  falas de Bibiana uma espécie de nostalgia referente a algo que nunca me aconteceu: sentar em roda como criança e ouvir uma avó contar histórias de sua juventude. Doces, sensoriais, coloridas. Nada comparadas com o desconforto advindo das colocações de Belonísia: sem a menor presunção, meu olhar foi levado a observar o lado menos bonito de Água Negra, a localidade rural onde as duas moravam, e, mais do que isso, a criticar aquela realidade. Casas que seriam destruídas com o vento, sem camas. Luz elétrica nem pensar. Trabalho árduo e um coletivismo consequente também. O baixo nível de escolaridade daquelas pessoas. A violência. A religião incorporada e vivenciada. Distante demais das minhas aulas de balé, trazendo entre as linhas a pergunta que me acompanhou durante toda a leitura: por que ninguém faz nada?

Isso porque dói ler sobre uma escola que, sendo fruto da luta da população local, recebe o nome do dono das terras, que a fez sob pressão. Dói associar isso à Princesa Isabel, narrada na história brasileira como uma heroína, mas que fez o mínimo e nem ao menos foi por vontade própria. Dói ver Belonísia fazer também tal associação e abandonar os estudos por não ver sua vivência contemplada, seus conhecimentos valorizados. Dói ler sobre a violência, física e moral. Dói torcer para que as mulheres, que são a maioria das personagens principais, matem seus agressores, porque dói saber que essa é a sua única alternativa. Dói estar longe, longe demais, e fazer pouco, pouco demais, para mudar a realidade das Bibianas e Belonísias do Brasil e do mundo.

Torto Arado nasceu um clássico em minha vida – naquela concepção de que, para cada um, nascem clássicos específicos, que moldam quem somos. Nasceu um clássico porque falou comigo quase didaticamente sobre uma realidade muitas vezes ignorada: os quilombolas que têm suas terras, as quais formam e transformam suas existências, arrancadas. Nasceu um clássico porque mistura o doce e o amargo da vida dessas pessoas, e porque me convidou a cair dessa corda bamba e perceber que o mundo é mais do que meias rasgadas. Nasceu um clássico porque soube, com maestria e respeito, atirar à minha cara questões sensíveis no Brasil, como o acesso à educação, à saúde e à dignidade. Nasceu um clássico porque gerou revolta em alguém que não entende nem minimamente o que é viver como as protagonistas vivem — o mais próximo de um arado que já cheguei foram sementes de maçãs plantadas no quintal de casa. Nasceu um clássico porque nem eu nem todas as minhas metáforas sobre calçados poderíamos descrever a magnitude dessa obra para mim. Nasceu um clássico porque foi desconfortável de ler. Mas, acima de tudo, Torto Arado nasceu um clássico porque se mostrou presente em todos os aspectos da minha vida depois que entrei em contato com a beleza e a tristeza daquelas palavras, marcando, de maneira torta, quem sou. 

 

*Imagem de capa: Eduarda Ventura/Jornalismo Júnior

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