No dia 1º de julho, aconteceu a paralisação dos entregadores de plataformas digitais, como iFood, Rappi, e UberEats. Longas horas de trabalho, baixa remuneração e ausência do fornecimento de EPIs (equipamentos de proteção individual) para combater o coronavírus foram algumas das principais reivindicações.
A paralisação atingiu ao menos 15 estados e ultrapassou as fronteiras brasileiras, com manifestações também em vizinhos latino-americanos, como Argentina, México e Chile. O consumidor também participou do movimento com campanhas de boicote aos aplicativos que incentivaram as pessoas a não fazerem pedidos no dia e a avaliarem negativamente as plataformas em lojas virtuais.
Com a pandemia de Covid-19, serviços de entrega foram classificados como essenciais. Por conta do isolamento social, o número de deliveries aumentou em 59%. Apesar disso, segundo pesquisa da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista, 6 em cada 10 entrevistados relataram queda nos rendimentos.
Como consequência, muitos trabalhadores informais deixaram de ter a renda diária, e outros foram demitidos. Os serviços de entrega tornaram-se, então, uma solução para garantir sustento mínimo. “Há um grande número de trabalhadores que estão à disposição, o que faz cair a renda”, explica Ana Claudia Moreira Cardoso, doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e uma das coordenadoras da pesquisa. “Houve um aumento da demanda, e as plataformas estão ganhando muito. Paralelamente, houve o rebaixamento do valor da força de trabalho”.
O problema da precarização no setor de entregas, porém, já existia: “A pandemia só fez a gente ser visto, mas o problema é muito maior”, conta Edgar da Silva, conhecido como Gringo, presidente da Associação dos Motofretistas de aplicativo e autônomos do Brasil, a AMABR.
A luta incessante por condições
Uma das principais pautas que a categoria reivindica, e que foi escancarada pela pandemia, são as péssimas condições de serviço.
Para começar a trabalhar, o entregador deve arcar com todos os gastos. Moto ou bicicleta, manutenção e equipamentos de proteção individual (EPIs), como capacetes e jaquetas, nada é fornecido pelos aplicativos.
Tirza Drumond, entregadora e administradora da página “Entregadores Antifascistas RS”, aponta que até a bag (caixa estampada pela marca em que os pedidos são transportados) deve ser comprada: “A gente paga para carregar uma baita propaganda dos caras nas costas!”
Outro ponto que a manifestação apresentou foi a falta de direitos trabalhistas. Por conta da informalidade, os entregadores não possuem benefícios que os trabalhadores de carteira assinada possuem, como seguro de vida, de acidentes e de roubo. Reivindicam também vale-refeição, para que possam realizar a jornada sem que a fome seja um empecilho.
Como Ana Cardoso explica, “não há nenhuma garantia: todos os riscos estão na mão dos trabalhadores. No caso das plataformas, é de fato o pior que podemos ver no sentido da precarização do trabalho”.
Além dessas questões, um tópico que foi difundido é o do combate aos desligamentos sem a devida explicação. Recorrentemente encontram-se relatos sobre a falta de comunicação entre os prestadores e as plataformas, mas sempre tendo uma resposta automática.
Tirza relata a dificuldade de reclamar com os aplicativos: “Tem só um botão de suporte, essas coisas meio automáticas, não é nem um chat, é horrível. Não tem um e-mail para mandar, não tem um telefone, não tem nada!”
Pressionados pela pandemia do coronavírus e pelas reivindicações dos entregadores, as plataformas digitais forneceram alguns EPIs. Para Gringo, porém, “os aplicativos só fizeram o superficial, para dar uma resposta para a sociedade. Não houve reabastecimento. Tudo ficou por conta do entregador, que muitas vezes não tem dinheiro para comprar o equipamento de segurança e acaba correndo um grande risco, além de tornar-se um potencial vetor de transmissão do vírus”. No dia da greve, a única empresa que se manifestou foi o iFood, que apontou fazer entregas de máscaras e de álcool em gel corriqueiramente.
São muitas as reivindicações pelas quais os entregadores lutam. Maria Graça Druck, professora titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sintetizou-as: “Se antes já arriscavam suas vidas para cumprir as metas ou para obter alguma remuneração para sobreviverem, agora se acrescenta a exposição cotidiana à contaminação pelo coronavírus, em uma situação de poucas medidas preventivas adotadas pelas empresas e nenhum compromisso destas com o adoecimento ou mesmo morte destes trabalhadores”.
A precarização do trabalho nas plataformas digitais
Quando chegaram ao Brasil, as plataformas digitais se colocaram apenas como um meio de conectar o consumidor ao prestador de serviços. Dessa forma, eximiram-se de responsabilidades que caberiam a empresas tradicionais, como o pagamento do 13º salário, fornecimento de ferramentas de trabalho, etc. Em troca, os aplicativos venderam a ideia de flexibilidade e de autonomia para o trabalhador.
Segundo Ana Cardoso, porém, essas ideias são falsas: “Esses trabalhadores têm rendimentos muito baixos. Então, isso faz com que eles trabalhem vários dias por semana, várias horas por dia, para conseguir um mínimo de rendimento. Assim, é impossível pensar na ‘flexibilidade’”.
Já a ideia de autonomia sai pela culatra quando é considerado o poder de controle que as empresas exercem no entregador. “São essas empresas que vão admitir ou não os trabalhadores, demitir na hora que quiser e definir as sanções. Os trabalhadores muitas vezes nem sabem porque são suspensos. São as empresas que definem o valor da corrida, o bônus, o tempo em que a corrida deve acontecer, tudo”, continua.
Para estimular as longas horas de trabalho, os aplicativos usam uma estratégia de gestão chamado “gamificação”. Exemplo disso é o sistema dos pontos do Rappi, que os manifestantes pedem o fim. Cada entregador, para conseguir mais corridas, precisa atingir uma quantidade mínima de pontos na semana – adquiridos durante as corridas. O sistema, então, compele o entregador a trabalhar mais, para garantir que terá trabalho na semana seguinte.
As plataformas digitais, para Graça Druck, criaram uma nova forma de exploração do trabalho, que é “sem limites, pois não reconhece a relação de emprego, sequer reconhece como trabalho, à medida que são todos autônomos, empreendedores e prestadores de serviços, ‘empresários de si mesmos’, decretando, com relativo sucesso, a morte do direito do trabalho”.
Os entregadores e a democracia
Além da crise sanitária, a crise política também ocupou o palco do Brasil, e manifestações pró-democracia e antifascistas chegaram às ruas, em oposição a manifestações contra o STF. Os trabalhadores de entrega também se posicionaram com a criação de páginas no Instagram de “Entregadores Antifascistas”. Tirza, que administra a página referente ao Rio Grande do Sul, comenta: “Estamos justamente com o objetivo de iniciar debates, estar à disposição, abertos para fazer um combate ao fascismo, avançar nas trincheiras e abrir espaço para uma ideologia antifascista dentro da categoria dos entregadores”.
Porém, ela reforça que a greve promovida é apartidária, representando todos os prestadores: “A classe trabalhadora hoje é muito heterogênea, então ninguém pensa igual, muito pelo contrário”.
Antes de estar ligado a alguma ideologia, a luta pela qual os entregadores deixaram claro na paralisação é a melhor e mais digna condição de um trabalho tão difícil e perigoso como o que enfrentam diariamente. A luta está longe de terminar, e os entregadores já mobilizam-se para novos atos.
Um ótimo texto informativo e com objetivo de esclarecer e ajudar o trabalhador de serviço de entrega na pandemia . Parabéns Lívia Magalhães , e Lucas Zacar