Por Gabriel Lellis
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Diversas pernas cruzam de forma frenética becos e vielas. Ajoelhado, um refém recebe ameaças e agressões. Outro indivíduo é colocado de costas para a parede e revistado sem nenhum tipo de pudor. Essa cena não retrata policiais e bandidos em conflito, mas sim crianças brincando com armas de papel, reproduzindo a cruel realidade das favelas cariocas presenciada por elas todos os dias.
É desta forma que se inicia o documentário Morro dos Prazeres (2013), dirigido por Maria Augusta Ramos e vencedor de três prêmios na 46ª edição do Festival de Brasília. O filme também faz parte da programação oficial da 37ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Durante os 90 minutos, somos levados a uma análise da nova realidade das favelas cariocas após a ocupação dos morros pela Polícia Militar do Rio de Janeiro para a implantação do serviço das UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora). Especificadamente, é retratado o dia a dia da comunidade do Morro dos Prazeres, um ano após a entrada da polícia.
A presença da PM desperta antagonismos de classe históricos na favela. A tensão é pulsante, transformando a linha entre a paz e o conflito em algo muito tênue. Nesse processo de “pacificação”, caracterizado principalmente na luta contra o tráfico, qual o papel correto da população e da polícia? O filme levanta este questionamento propondo-se a fazer uma crônica da vida cotidiana e dos sofrimentos dos diferentes tipos de pessoas que convivem na dura realidade dos morros cariocas.
Nesse ambiente são claramente explícitos os velhos preconceitos da sociedade brasileira: Adolescentes negros são alvo de descriminação, sendo tratados como bandidos ao serem abordados para averiguação. Quase todos os PM’s são hostilizados e considerados inimigos da população.
No morro, todos são, vítimas. O garoto pobre, sem perspectiva de mudança de futuro, não vê outra saída para a sobrevivência senão o tráfico. A moça PM tem medo de expor publicamente sua profissão, pois corre duplamente o risco de ser agredida: pela sua condição de mulher em uma sociedade machista e por ser policial.
A resolução desses problemas de ordem social passa primeiramente na mão de quem tem a “legitimidade” do poder, neste caso, a PM. Os comandantes discutem a todo momento uma mudança na “estética da guerra” como forma de obter o apoio da opinião pública quanto a ação das UPP’s, constantemente acusadas de abuso de poder, corrupção e pacto com o crime.
Esse objetivo tenta ser alcançado com mudanças no aspecto do corpo policial: Aumenta-se o número de policiais femininas em ação; armas pesadas, como fuzis, são proibidas, estimula-se uma atitude mais amigável e próxima com a população local. Até mesmo os conceitos da psicologia freudiana são utilizados para induzir uma mudança de comportamento entre os policiais.
O filme tenta ser sutil ao evitar emitir juízos de valor precipitados, mostrando as diferentes realidades das partes em conflito. A obra defende uma realidade na qual há mais “seres de bem” do que “vilões”.
Há casos graves de abuso de poder na ação da polícia nas comunidades cariocas (como o recente desaparecimento do servente de pedreiro Amarildo, na favela da Rocinha), e isso não é segredo; mas a diretora se abstém de mostrar essas cenas de denúncia. A câmera filma , na maioria do tempo, apenas momentos nos quais a ação da PM acaba de forma amigável, com a polícia saindo de cena com um “muito obrigado” ou “bom dia”.
É perceptível o incomodo da população local com a presença de um corpo estranho tentando ser “amigo”. O grande trunfo do filme são as tomadas reflexivas, nas quais o olhar perdido de um garoto, após uma revista policial, por exemplo, nos revela o quão humilhante e revoltante esse invasão de privacidade pode ser.
Morro dos Prazeres desperta mais dúvidas. Isso não necessariamente é um ponto negativo: é do questionamento que nasce uma reflexão pessoal do espectador sobre a complexa rede de relações sociais estabelecidas nas favelas após a chegada das UPP’s. O diferencial do documentário é a abordagem da temática das favelas brasileiras de uma maneira mais contemplativa e analítica, diferentemente do já tradicional e denunciativa “estética da guerra” proposta por filmes famosos como Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007).