*Capa: Basílica de Notre-Dame interditada depois do atentado do último dia 29 [Imagem: Reprodução/Cristian Estrosi/Twitter]
Ao final de outubro, a França vivenciou um acontecimento já reincidente para sua população. Um ataque a faca deixou três mortos na Basílica de Notre-Dame, em Nice. As vítimas foram o sacristão, uma brasileira de 44 anos e uma idosa. O fato, classificado pelo presidente Emmanuel Macron como “ato terrorista islâmico”, reacendeu uma longa questão francesa que envolve o extremismo religioso, a liberdade de expressão e o Estado laico.
Últimos acontecimentos
Ainda em outubro, outro caso chocante. No dia 16, Samuel Paty, um professor de história, foi decapitado em Paris por um jovem checheno de 18 anos, que foi morto pela polícia logo depois. O assassinato teria ocorrido depois de Paty ter mostrado uma charge do profeta muçulmano Maomé a seus alunos, em uma aula sobre liberdade de expressão. Com isso, autoridades francesas rotularam o crime como um “ataque islâmico”.
O brutal assassinato aconteceu três semanas depois que um homem promoveu um ataque a faca perto da antiga sede do semanário satírico Charlie Hebdo, também na capital Paris, onde duas pessoas ficaram feridas. O ministro francês do Interior descreveu o ataque como “ato terrorista islamista” e o suspeito confessou o crime um dia depois. De acordo com o próprio, ele teria nascido em 2002 no Paquistão. A antiga redação da revista havia sido alvo de outro atentado, desta vez em janeiro de 2015. Na época, depois da publicação de uma charge que representava satiricamente a figura de Maomé, dois terroristas armados assassinaram 12 pessoas, entre elas jornalistas e cartunistas no escritório do jornal.
Fator histórico
O território francês não é o único da Europa a sofrer com ameaças terroristas. Contudo, suas especificidades mostram porque ele é o país que atualmente mais sofre com o terrorismo no mundo ocidental. Entender esse cenário passa por analisar a forma pela qual a comunidade muçulmana se insere na sociedade francesa.
A França é o país com a maior população de muçulmanos na Europa Ocidental. São cerca de 5,4 milhões dentro de uma população de 66 milhões. A relativa expressividade dos números pode ser relacionada ao passado metropolitano do país, com a exploração de diversas colônias – grande parte de maioria muçulmana – até o século XX. Em entrevista à equipe do Observatório, o doutor em Ciências Políticas Adrián Albala lembrou de recentes ondas de migração dessas colônias para solo francês motivadas por crises em países de maioria muçulmana: “A França recebeu, nos anos 1960 e 1970, mão-de-obra de suas ex-colônias. Essas pessoas ficavam em guetos pobres, em periferias longes do centro de grandes cidades”, relata Adrián.
Assim, uma parcela da população de refugiados e imigrantes “ou não via o Estado, ou o via de forma bastante remota. Muitas vezes essas pessoas também eram estigmatizadas, ou seja, por ter nomes de origem não europeia, tinham maior dificuldade para conseguir um emprego, por exemplo”, pontua Albala. Tal questão manifesta-se atualmente, por exemplo com teorias supremacistas como a da “grande substituição”.
De acordo com o cientista, a marginalização de indivíduos muçulmanos em sociedades europeias facilitou a aderência de novas pessoas à correntes extremistas da religião islâmica, processo que muitas vezes termina na prática terrorista, com crimes sendo cometidos em nome de Alá. “Facilmente há recrutamento dessa forma”, conclui.
O que diz o governo francês
Após o atentado ocorrido em Nice no dia 29 de outubro, Gerald Darmanin, o ministro do Interior da França, mencionando que dos 30 terroristas identificados recentemente no país, 22 são cidadãos franceses, declarou: “O terrorismo não tem relação com a nacionalidade ou cor de pele. O que nós combatemos é a ideologia islamista”, ao sugerir um aumento no controle das fronteiras.
Com isso, os últimos atentados parecem ter reacendido um polêmico posicionamento do governo francês. Mais moderado que seu ministro, o presidente Emmanuel Macron se empenha em combater aquilo que ele chama de “separatismo islamista”, o que, de acordo com artigo, já removido, do jornal britânico Financial Times, estaria “dividindo a França”.
A expressão usada por Macron refere-se ao extremismo dentro da religião islâmica (praticado pelos chamados islamistas), e as medidas para contê-lo dentro do território francês não são de hoje. Em janeiro deste ano, o mandatário disse que pretende acabar com o sistema de envio de líderes religiosos (imãs) de países muçulmanos para as mesquitas francesas. Além disso, também limitou o ensino de línguas não-francesas.
O presidente enfrenta um cenário conturbado na França. Tendo as eleições municipais acontecido no início de 2020, Macron viu seu apoio em cidades francesas importantes diminuir, além de ter sua gestão da pandemia reprovada pela maioria da população. De acordo com Adrián, tal enfrentamento “é uma forma um pouco de desviar a atenção, sabendo que essa relação com os muçulmanos, particularmente com o islã, é algo que gera votos muitas vezes. Ele perde votos da esquerda, mas ele ganha na centro-direita”, opinou.
Para isso, Macron aposta em um discurso de liberdade de expressão e valorização do Estado laico. O Estado francês tem um longo histórico, quase dogmático, de luta pelo secularismo – termo usado para caracterizar a separação entre política e religião. A laicidade francesa foi garantida em uma lei de 1905, porém, a questão entra cada vez mais em debate com decisões como a de 2011, que proibiu o uso do véu islâmico na França.
Repercussão externa
Macron prometeu lutar contra o extremismo e afirmou que os “islâmicos querem nosso futuro”. O plano do primeiro ministro instigou uma série de protestos em países de maioria muçulmana. Os manifestantes acusam o francês de islamofobia e incitam o boicote a marcas e produtos franceses como a rede de supermercados Carrefour.
Grande parte dos protestos ocorreram em países que adotam total ou parcialmente a lei islâmica, como a Turquia, Irã, Catar e Paquistão. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan chegou a comparar a crescente onda de islamofobia na Europa com o antissemitismo nazista, e afirmou que “é cada vez mais difícil viver como muçulmano nos países ocidentais”.
Le comportement irrationnel de #Macron dans l'anti-islamisme évident montre sa grossièreté en politique, sinon il n'aurait pas osé offenser l'islam. Je lui conseille d'étudier plus d'histoire et de ne pas se réjouir du soutien d'une #Amérique en déclin et du #sionisme.
— علی شمخانی (@alishamkhani_ir) October 26, 2020
O secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã, Ali Shamkhani, criticando, via Twitter, a posição de Macron
Sendo a comparação exagerada ou não, é impossível negar o sentimento anti-muçulmano que existe em diversos países do Ocidente e que apenas ganhou força após os atentados de 2015. Muitos vêem a fé islâmica em si como um perigo para os países do Ocidente, erroneamente classificando todos os muçulmanos como extremistas.
Diante disso, em um contexto de radicalização dentro do território francês e embate direto entre França e Turquia (por suas divergências nos conflitos no Mediterrâneo Oriental), uma onda de protestos da comunidade muçulmana contra a França tomou proporções internacionais, de Bangladesh até a própria Turquia.
“A comunidade muçulmana infelizmente está acostumada a receber esse tipo de coisa. O problema é que esses discursos vêm crescendo por parte do eleitorado e por parte da população francesa em particular”, comenta Adrián a respeito da discriminação a muçulmanos na França.
Com essa visão, políticas como a proibição do uso dos véus pelas mulheres muçulmanas foram adotadas. A prática em si é alvo de polêmica, mas retóricas como essas abrem espaço para a maior discriminação dessa minoria religiosa: nos seis meses seguintes aos atentados de 2015, as agressões físicas contra muçulmanas aumentaram em 500%, sendo que 75% das vítimas eram mulheres.