Ricardo Goulart, Paulinho, Aloísio, Anderson Talisca, Alan Kardec, Alex Teixeira. O que todos esses jogadores têm em comum? Bom, todos jogam na China – e você com certeza torce pra algum time que perdeu um ou outro jogador para o “boom” chinês.
O fenômeno da China no futebol asiático é um episódio muito interessante – e vale a pena nos aprofundarmos um pouco nesse assunto. Para uma parte do público brasileiro, o futebol chinês pode parecer um limbo: nossos jogadores são rapidamente sugados pelos clubes chineses e passam meses, anos sem muita visibilidade. E com a atenção que foi dada à China em 2020, em razão da pandemia, nada mais justo do que mergulhar um pouco no contexto do futebol chinês. Afinal, o que acontece lá?
O futebol na Ásia
Para entender o mercado da bola do outro lado do mundo, precisamos entender antes o contexto asiático. Antes da China, o mercado árabe e o mercado japonês já tiveram seus momentos de crescimento e hoje estão consolidados no futebol asiático.
A AFC Champions League, a Liga dos Campeões Asiática, existe nesse formato desde 2002. Nenhum time chinês havia sido campeão até 2013, quando o Guangzhou Evergrande venceu a competição, feito repetido em 2015. Os outros campeões foram times em sua maioria japoneses, coreanos ou de países do Oriente Médio, principalmente a Árabia Saudita.
O atual auxiliar-técnico do Botafogo, Fábio Lefundes, trabalhou em diversos desses países na última década. Em entrevista, Fábio afirmou que “em termos de competitividade ainda existe um disparate muito grande na China em relação ao Japão e a Coreia do Sul”, e que “se você comparar esses 3 países, vai ver diversos coreanos jogando fora do mercado coreano, jogando na Europa, japoneses então em quantidade muito maior, e você não vai ver chineses”.
Além disso, a China, até hoje, só participou da Copa do Mundo de 2002. Já que a edição aquele ano foi na Coréia do Sul e no Japão, esses dois países não participaram das eliminatórias, liberando uma vaga que nunca fora dos chineses.
Mesmo com seus “booms” nos últimos anos, e possuindo campeonatos mais competitivos que o chinês, nem o futebol japonês nem os países do Oriente Médio conseguiram trazer tantos jogadores estrangeiros quanto a China.
A China
O projeto de crescimento do futebol chinês parte de um sonho pessoal: o presidente Xi Jinping quer fazer da China não só um líder econômico, mas também uma nação forte com a bola nos pés.
Desde o início de seu mandato, em 2012, Xi nunca escondeu seu interesse pelo esporte, afirmando em diversos discursos que sonhava com uma seleção forte. Foi dessa maneira que o futebol entrou como política pública, e em poucos anos a China já se tornou um dos principais pólos de futebol na Ásia.
Existem 3 campeonatos na China: a Superliga (e suas divisões), a Copa da China e a Supercopa da China, que é disputada entre os vencedores dos outros dois torneios. Fábio Lefundes conta que os centros de treinamento são de alto nível, e que “a maioria das equipes da primeira divisão, senão todas, possuem condições ótimas de trabalhar”.
Em quesito de mercado da bola, a China já está decolando. As empresas investem milhões em seus times, as contratações de astros estão cada vez mais frequentes, a Nike já patrocina toda a Superliga e a Copa do Mundo de 2018 foi a primeira desde os anos 90 em que os maiores patrocinadores do evento vêm do próprio país.
Essa é a parte mais simples: a grana, o investimento na liga. O complicado para que o futebol chinês se estabeleça na elite do esporte é criar uma geração realmente competitiva – e esse é um dos desafios que Xi Jinping busca enfrentar. Nos últimos anos, diversas regras estão sendo implementadas na Superliga chinesa, temporada após temporada, em busca de frear o ritmo de contratações estrangeiras.
Em todas as equipes existe um limite de contratações, que é diferente do limite estabelecido pela Champions League da Ásia, em que as equipes podem relacionar para os jogos 3 estrangeiros de qualquer local e 1 estrangeiro asiático. Em 2018, na China, as equipes podiam ter 5 estrangeiros de qualquer local – mas somente 3 poderiam jogar. Em 2020, a regra mudou: as equipes agora podem ter 6 estrangeiros, com 4 no campo.
Essa incompatibilidade de regras entre a AFC e os campeonatos chineses complica o ritmo de contratações. Mas, apesar do aumento do limite de estrangeiros nos times nos últimos anos, em 2020 ocorreu outra mudança que pode atrapalhar a contratação de grandes jogadores estrangeiros: o teto salarial imposto pela Federação de Futebol da China (CFA). Foi fixado o valor de € 3 milhões (R$ 13,5 milhões) anuais para jogadores estrangeiros e 10 milhões de yuans (R$ 5,8 milhões) para jogadores chineses.
A instauração de um teto salarial foi a maneira que a CFA encontrou de frear o volume de jogadores estrangeiros sendo contratados, mas sem limitar ainda mais o número de jogadores admitidos por equipe. A cada temporada as equipes da Superliga da China precisam estar atentas às mudanças feitas pela CFA, e portanto o planejamento de contratações não pode ser feito com muita antecedência. Essa instabilidade, diferença entre as regras dos campeonatos e agora o limite salarial mostram que o futebol do país ainda está em processo de estruturação, e ainda não foi encontrada uma solução para equilibrar o mercado de contratações pujante com o sonho de uma seleção forte.
A pandemia
A Superliga da China normalmente começa nas primeiras semanas de março. Porém, com o estouro do novo coronavírus, ela foi postergada para o final de julho. Esse não foi o único impacto da pandemia no futebol: a edição de 2020 teve um formato único.
O que era um campeonato de pontos corridos, com 16 times e que ocorria em todos os estádios profissionais da China virou um campeonato de mata-mata, com dois grupos de 8 equipes e em somente 2 cidades-sede: Dalian e Suzhou. Em conversa com o jornalista Leonardo Hartung, especializado em futebol chinês, ele disse que as equipes ficaram em uma espécie de “bolha’”. Os jogadores e a comissão técnica ficaram hospedados em hotéis, com protocolos rígidos de entrada, testes semanais, divisão de credenciais e zonas diferentes de acesso. Foram feitos 1.870 testes de Covid-19 antes do início da temporada.
Com o fechamento das fronteiras, alguns jogadores tiveram dificuldade de voltar à China, mas até o início da temporada todos os times já estavam completos. Em novembro os jogos já voltaram a ser abertos para público, depois de alguns meses de fechamento e controle rígido de entrada – testes de Covid obrigatórios, ingressos reduzidos, protocolos de saída e entrada dos estádios. A final da Superliga, no dia 12 de novembro, entre Jiangsu Suning e Guanghzou Evergrande, chegou a ter mais de 9 mil torcedores no estádio.
Nos meses de pausa dos jogos oficiais, Leonardo conta que os times chineses continuaram treinando e chegaram a fazer amistosos entre si. Aqueles times em que os jogadores estrangeiros não retornaram para seus países de origem tiveram vantagem e conseguiram treinar com força total até a retomada do campeonato, em julho.
A pandemia também atrapalhou os planos da China para a Copa do Mundo de 2022. Segundo Fábio Lefundes, já havia sido comunicado às equipes que em 2020 seria iniciado um movimento de convocações com intuito de preparar uma seleção forte para as Eliminatórias. Uma das peças que pode vir a ser importante no projeto chinês nesse primeiro momento é a naturalização de jogadores estrangeiros. Até o momento, brasileiros como Elkeson, Aloisio e Ricardo Goulart já completaram o processo de naturalização e estão prontos para jogarem as Eliminatórias da Copa de 2022 pela seleção chinesa.
Com a pandemia atrapalhando o “sonho chinês” e o futuro de 2020 cada mês mais incerto, não sabemos quais serão os próximos passos do futebol na China. O que podemos imaginar é que serão passos grandes e velozes, como toda transformação chinesa parece acontecer.