Por João Pedro Malar (joaopedromalar@gmail.com)

“Quando um homem não pode escolher, ele deixa de ser um homem.” A frase sintetiza uma das ideias centrais de Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, publicada em 1962 no Reino Unido e em 2015 no Brasil, pela Editora Aleph. O livro é considerado uma das maiores obras que retratam realidades distópicas, ao lado de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Na história, o leitor é levado a refletir sobre a própria humanidade e a moralidade.
Ambientado em um futuro distópico no Reino Unido, a obra gira em torno de Alex, um jovem de 15 anos, membro da classe trabalhadora, que comete uma série de crimes, de vandalismo a estupros. O livro é dividido em três partes, cada uma com sete capítulos. Na primeira parte, há uma caracterização detalhada de Alex (sua vida, amigos, família, cotidiano e comportamentos), mostrando a profundidade do personagem, que não é um mero sociopata, mas também um apreciador de música clássica e alguém que demonstra um certo conhecimento da realidade na qual está inserido.
Ao final da primeira parte da obra, Alex é preso quando uma de suas ações criminosas dá errado e ele é traído pelos outros membros da sua gangue. A segunda parte do livro é focada na vida de Alex na cadeia, mostrando um ambiente opressor e violento. Aqui, o questionamento levantado por Burgess é contundente: a violência e sofrimento passados por Alex são justificados pelos violentos e reprováveis crimes cometidos por ele? Cabe ao leitor responder isso.
Na metade da segunda parte, Alex é transferido para um programa de reabilitação de condenados. Nele, é utilizado o chamado Método de Ludovico, que consiste na exibição de diversas imagens extremamente violentas para um espectador que se encontra sobre o efeito de drogas e em um ambiente imersivo, além de ser impossibilitado de fechar os olhos. O objetivo do método é condicionar o criminoso para que, toda vez que pensar, ver ou fazer algo violento, este sinta uma extrema repulsa e até dores e ânsias de vômito.
Nessa parte, é impossível não se sensibilizar com o sofrimento de Alex, e não se revoltar pela utilização de um método repressivo que priva os seus alvos do seu livre arbítrio, a mais básica característica humana. No fim, o programa dá certo, e Alex perde todos os seus instintos violentos, sendo solto e reinserido na sociedade. Inicia-se, assim, a terceira e última parte do livro.
Nela, o jovem se depara com uma realidade completamente diferente da apresentada na primeira parte, sem amigos ou emprego e rejeitado pelos pais. Incapaz até de ouvir a sua tão querida música clássica, utilizada nos tratamentos, Alex passa por uma série de humilhações que lentamente vão destruindo o sua vontade de viver. Por fim, após ser utilizado como uma ferramenta política para enfraquecer o governo, Alex tenta se suicidar jogando-se de uma janela, mas sobrevive.
Após a queda, Alex é curado de sua condição e acaba retornando a sua vida normal, semelhante ao começo do livro. Aqui, uma divergência editorial surge. Na edição americana, o livro se encerra nesse momento, mas, na versão original, ainda há mais um capítulo, que é visto como sendo mais otimista por apresentar uma redenção do protagonista, que decide iniciar uma importante transformação na sua vida. A mudança teria sido feita para manter o tom mais sombrio da obra, mas, mesmo com o final sendo uma mudança brusca de tom e uma quebra de expectativa, é um ponto positivo que a versão brasileira contenha o verdadeiro último capítulo, mostrando os objetivos e intenções do autor.
Um aspecto marcante da obra é a linguagem, mais especificamente a linguagem nasdat, utilizada por Alex nos seus diálogos e na narração do livro. A língua é um misto de vocábulos russos com gírias da classe trabalhadora britânica, e tem o objetivo de criar uma sensação de estranhamento no leitor. Apesar da existência de um glossário no final do livro, é plenamente possível ler sem utilizá-lo, já que o contexto, na maioria das vezes, já esclarece o significado da palavra.
Diferentemente de outros livros distópicos, Burgess não dá um destaque para o governo presente na obra, ou seu funcionamento, e pouco é falado sobre inovações tecnológicas. O autor consegue criar um ambiente extremamente verossímil, focando naquilo que é humano, e que nunca muda. A sensação ao ler Laranja Mecânica é que realmente estamos vendo algo que poderia ocorrer em qualquer momento, em qualquer país. A ideia de que um governo pode usar a criminalidade como desculpa para atitudes autoritárias, os abusos extremos por parte do Estado, a tentativa de eliminação do livre arbítrio. Essa é a relevância de Laranja Mecânica: mostrar que, talvez, nós já estamos, ou estamos na iminência, de uma sociedade distópica.