Por Sofia Colasanto (sofiacolasanto2@usp.br)
No último dia 24, alunos da Universidade de São Paulo (USP) promoveram a exposição do filme Macunaíma (1969) na Biblioteca Florestan Fernandes, seguida por um debate sobre a obra entre os estudantes e o público. A iniciativa faz parte do Cineclube Literário, projeto de extensão da matéria Literatura Brasileira I, e o Cinéfilos foi convidado para o evento.
O longa é uma adaptação do livro Macunaíma: um herói sem nenhum caráter (Oficinas Gráficas de Eugênio Cupolo, 1928), escrito por Mário de Andrade. O escrito é considerado um marco do Modernismo brasileiro, pela tentativa de construção de uma identidade nacional a partir de características que fazem parte da essência do país. Por meio do personagem homônimo à obra, Mário articula as raízes indígenas, negras e brancas, o ambiente do sertão, a urbanização impetuosa e as distintas classes sociais para retratar o Brasil.
O filme dirigido por Joaquim Pedro de Andrade ganhou diversos prêmios no Festival de Brasília de 1969, como Melhor Roteiro para o diretor, Melhor Figurino e Melhor Cenário para Anísio Medeiros e Melhor Ator para Grande Otelo. A película não é uma mera adaptação do livro para as telas, mas sim uma reinterpretação do personagem e de seus simbolismo em meio à Ditadura Militar, em que era necessário lutar pela identidade brasileira.

A trama inicia com o nascimento de Macunaíma (Grande Otelo) no fundo da mata virgem, em que já é anunciado como o “herói da nossa gente” pelo seu irmão Jiguê (Milton Gonçalves). As primeiras cenas já demarcam as principais características do personagem: preguiçoso, aproveitador, mentiroso e mulherengo. No primeiro momento, ele vive com sua mãe e seus dois irmãos na floresta, cenário frutífero para os momentos mais imaginativos do filme, como o encontro com o Curupira (Rafael Carvalho) e transformação de Macunaíma em um príncipe branco através do fumo concedido pela feiticeira Sofará (Joana Fomm).
Após a morte da matriarca, a família segue rumo à cidade como fuga da miséria, agora com Macunaíma (Paulo José) transformado em homem branco. Lá, ele se apaixona por Ci (Dina Sfat), guerrilheira da luta armada — que, no livro, era uma amazona feroz — e, graças a ela, conhece o amuleto muiraquitã. Com a morte da mulher, Macunaíma embarca em uma jornada pelo resgate da pedra, que passou a pertencer ao gigante burguês Venceslau Pietro Pietra.

Ao longo de sua trajetória, o personagem demonstra cada vez mais sua falta de caráter. Ele abandona seus irmãos na cidade, apenas os requisitando por necessidade, e vive uma vida vazia em que seus prazeres são o dinheiro e o sexo. Quando finalmente recupera o amuleto, ele retorna à mata com diversos bens materiais da cidade, como uma televisão e um liquidificador, que logo perdem a utilidade. No fim, diferente do livro, Macunaíma cede aos encantos de Iara, figura folclórica brasileira, e acaba morto no rio, deixando apenas seu paletó verde flutuando.
Assim, ao longo de todo o filme, Macunaíma é representado como um herói sem caráter. Nele, não são notados qualquer senso de empatia ou comunidade. O personagem não possui uma trajetória heróica e linear e sempre acaba em emboscadas que ele mesmo causa. Macunaíma não é um vencedor e acaba sendo tomado pelo capitalismo, vivendo apenas de prazeres materiais e carnais, como visto em seu retorno para a floresta, em que sua bagagem consiste em objetos advindos de seu consumismo e uma mulher.

O filme foi produzido em 1968 e lançado no ano seguinte, em meio à Ditadura Militar no Brasil, o que rendeu a classificação indicativa do filme para 18 anos e quinze cortes na obra, que posteriormente foram reduzidos a dez por reivindicações do diretor. Nesse contexto, é de grande potência a adaptação do livro modernista que descreve as contradições do país por meio de um anti-herói, como ressaltaram os alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) no debate.
O longa não se propõe a ser uma adaptação fiel dos escritos de Mário de Andrade. Parece mais uma tentativa de recontar a história de um Brasil tão diferente e igual, simultaneamente, daquele dos anos 1920. A película incorpora um narrador onisciente e experimenta com espaços e personagens mais delimitados do que a obra original, na tentativa de conceder uma maior linearidade e entendimento por parte do público. Mesmo assim, a transformação das palavras em cenas são de grande impacto, de modo que geram espanto, confusão, nojo e reflexão nos espectadores, principalmente pela abordagem explícita da antropofagia.
A obra incorpora elementos do Tropicalismo e do Cinema Novo para narrar a história. O uso de cores vibrantes, com destaque para as que compõem a bandeira, figurinos extravagantes e uma trilha sonora que mistura hinos patrióticos com marchinhas de carnaval apontam a atualização de Macunaíma para os anos 1960. Além disso, muito da misticidade do livro é retirada, propondo um enfoque maior na miséria de Macunaíma, ora material, mas principalmente de espírito.
Ao recuperar o personagem e inseri-lo em uma São Paulo dominada por carros, burgueses e guerrilheiros, o diretor provoca e incentiva o público a pensar qual é o Brasil que está sendo construído e como os problemas centrais apontados por Mário de Andrade perduram até os dias atuais. É retomada a ideia de como um país tão rico culturalmente também é pobre, com atitude de malandro, e tem “seu jeitinho brasileiro” de lidar com os problemas. É um Brasil que zela apenas pelos interesses da elite, que sempre recai nos mesmos impasses e que abandona a sua população em cidades conturbadas ou na miséria dos sertões.
Por seu absurdo estético e narrativo, o filme é difícil de ser entendido em apenas uma exibição, principalmente para aqueles que não leram o livro. Mas, apesar de seus recortes temporais, Macunaíma é atual. Suas reflexões a partir desse herói sem caráter continuam latentes na sociedade brasileira. Em tempos de ascensão da extrema direita na política, de uma crescente desigualdade social e de um apagamento da diversidade brasileira, assistir o filme se torna mais que necessário. Assim, se rega a esperança de que os brasileiros não acabem como o personagem principal, seduzidos por uma bela Iara que apenas os afoga.
