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‘Palmeiras Selvagens’ expõe crua e dolorosamente a irracionalidade dos sentimentos

William Faulkner, um dos maiores romancistas do século 20 e ganhador do Nobel de literatura em 1949, constrói narrativas densas sobre desejos
Capa do livro Palmeiras Selvagens, com detalhes em bege, azul, verde e marrom
Por Bárbara de Aguiar (barbaraaguiar@usp.br)

Palmeiras Selvagens (Companhia das Letras, 2024), publicado pela primeira vez em 1939, foi mais uma adição aclamada pela crítica à carreira do já consagrado autor norte-americano William Faulkner. Com duas narrativas distintas intercaladas a cada capítulo, a obra é palco para as decisões do amor, do medo e de outras emoções humanas distintas que se desenrolam lentamente pelas páginas.

A natureza do amor

Harry Wilbourne é um médico recém-formado que, aos 27 anos, nunca aproveitou a própria vida. Não vai a festas, não tem amigos próximos e nunca esteve com uma mulher. Até que, na noite de seu aniversário, ele é arrastado por um colega de dormitório para uma festa na casa de um artista boêmio qualquer. É nesse ambiente distante de seu cotidiano que ele conhece Charlotte, uma jovem casada e mãe de duas filhas, com quem inicia um romance. Esse é o ponto de início do trágico relacionamento entre os dois, mas não é aqui que a narrativa das páginas começa.

Dizem que o amor morre entre duas pessoas. É mentira. Não morre. Simplesmente abandona você, vai embora se você não é bom o bastante, digno o bastante. Não morre; quem morre é você.

— pág. 80

Palmeiras Selvagens, além de título da obra completa, é o que encabeça todos os capítulos da história desse casal que tem consciência da própria falta de sorte. Faulkner apresenta, antes de qualquer introdução do enredo, uma cena dramática de amantes sem um tostão: a mulher visivelmente doente e o homem visivelmente culpado. A partir dos últimos momentos de um relacionamento desestruturado, a narrativa encaminha o leitor para além. Para o começo, depois o meio, e então, o fim.

Apesar dos fatos serem expostos e o íntimo dos personagens destrinchado, é difícil compreender a natureza do sentimento entre Charlotte e Wilbourne. Meio um encantamento, como o clássico amor à primeira vista, meio uma maldição, que condena os dois a perderem tudo que tinham até então de forma a restar-lhes apenas um ao outro. 

Wilbourne abandona a quase concluída residência médica, a tia que o apoiou em sua formação e o futuro concreto que o aguardava. Charlotte deixa uma casa, duas filhas e seu marido — que a ama a ponto de aceitar suas decisões sem questionamentos e desejar que ela volte para a família sã e salva.

(…) a segunda vez que o vi entendi o que tinha lido nos livros mas nunca tinha realmente acreditado: que o amor e sofrimento são a mesma coisa e que o valor do amor é a quantia que você tem que pagar por ele, e sempre que for uma pechincha você terá enganado a si mesmo.

— pág. 48

Entretanto, Charlotte é uma das almas mais verdadeiramente livres — ou egoístas — já escritas. Ela não tem vontade de voltar para casa, e isso fica claro ao leitor nas primeiras frases que a jovem, repleta de uma profunda e complexa consciência dos sentimentos, profere. Quase como uma criança se desenvolvendo ao longo da vida, aos poucos o inerte Wilbourne compreende o que significa, de fato, sentir com todo o ser. Assim, o maior medo de Charlotte passa a ser também o dele: cair na monotonia de uma vida comum, se perder em uma vida de casado, e esquecer-se de como é bom ter apenas um parceiro ao lado e nada mais.

Ouça: tem que ser sempre lua de mel. Para todo o sempre, até que um de nós dois morra. Ou céu, ou inferno: nada de um purgatório confortável e pacifico no meio onde eu e você possamos esperar até o bom comportamento ou a contenção ou a vergonha ou o remorso nos domine.

— pág. 80

Esse temor é o que os mantém nômades, indo de cidade em cidade e trabalhando em bicos enquanto conseguem viver, cada vez mais, com menos estabilidade. Mas dinheiro não é o problema, desde que estejam felizes juntos. A paixão sobrevive a todas as adversidades que cruzam o caminho de Charlotte e Wilbourne, mas a possibilidade de uma mudança que seria permanente em suas vidas faz o casal tomar uma decisão que coloca tudo que eles têm — um ao outro — em risco.

(…) de forma que quando ela deixou de ser então metade da memória deixou de ser e se eu deixar de ser, toda a lembrança deixará de existir. Sim — pensou — entre a dor e o nada, escolherei a dor.

— pág. 294

A natureza do medo

Em paralelo à narrativa do casal, o livro conta a história do denominado “condenado alto”, que não tem seu verdadeiro nome revelado, mas isso não importa. É relevante, porém, sua função enquanto cumpre sua pena: arar campos de algodão em um presídio próximo ao rio Mississipi — ainda que ele jamais tenha visto o velho rio que o ronda. O homem está tão familiarizado com o trabalho que exerce que, surpreendentemente, gosta do que faz.

A sua existência simples, que ele aceita e agradece, é perturbada por uma tempestade absurda que eleva o nível do Mississipi e alaga vários vilarejos costeiros, obrigando todos a abandonarem a região.

Os capítulos intitulados “O Velho” acompanham a história do condenado alto, que, junto a outro condenado, é incumbido pela polícia de encontrar um homem e uma mulher ilhados, usando apenas um pequeno bote em meio ao Velho — outro nome para o ancestral rio Mississipi. A missão falha e todos pensam que o condenado alto está morto, mas o desejo do homem de retornar para a sua vida antes da tempestade é seu maior motivador contra a desistência.

Talvez fosse apenas uma invencível e quase fanática fé na criativa e inata perversidade daquele meio sobre o qual seu destino estava agora depositado, aparentemente, para sempre.

— pág. 151

Histórias de condenados

As narrativas não se entrelaçam nos fatos, mas significativamente existem muitos paralelos a serem traçados. Enquanto em uma história o casal cai de amores, o condenado alto vive sozinho e desgostoso com as mulheres. Na primeira história, Charlotte e Wilbourne desejam a liberdade; na segunda, o homem ambiciona perdê-la. Ambas são histórias de condenados, seja pelo amor, pela vida, pelo medo ou por todo o sistema.

Como não se conectam narrativamente, as duas histórias podem ser lidas separadamente ou não. Palmeiras Selvagens, apesar da profundidade de emoções e sofrimento, é mais fácil de acompanhar e gera maior interesse por seu desenrolar. O Velho, mesmo com uma interessante história de sobrevivência se desenvolvendo, exprime a personalidade taciturna de seu personagem principal, o que causa um afastamento do leitor.

A aclamada escrita de William Faulkner evidencia a bagunça interna de pensamentos com frases exacerbadamente grandes, foco em detalhes mundanos e embelezamento de coisas ínfimas que só seriam perceptíveis por olhos humanos. Exibir tamanho sentimentalismo em palavras é um dos motivos para o renome do autor. Entretanto, para um leitor desavisado, a estrutura dos textos de Faulkner pode ser desanimadora: as frases longas e floreadas são cansativas e os capítulos ficam maiores a cada virada de página. 

Migrar de um romance contemporâneo famoso entre o público jovem para a literatura quase poética de Faulkner pode ser um pouco assustador, mas o processo de adaptação vale a pena e, com um olhar disposto a enxergar além dos longos textos contínuos — vez ou outra interrompidos por um parênteses que dá ao leitor a sensação de ser intruso —, é possível captar reflexões avassaladoras. 

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