Há quase dois anos, o Prêmio Jabuti, a maior premiação literária do país, anunciava os dez finalistas da categoria “Romance de Entretenimento”, pela primeira vez. A inclusão deste gênero demonstra como ele tem conquistado um espaço que, antes, era inimaginável, uma vez que muitos ainda o consideram sem o aprofundamento necessário que a literatura requer.
No pensamento dessas pessoas, contrapor livros da cultura pop, como Harry Potter, Jogos Vorazes, Crepúsculo, Divergente e Maze Runner com clássicos, como Dom Quixote, Guerra e Paz e Memórias Póstumas de Brás Cubas, pode parecer simples. Mas, definir a maior parte dos livros não é tão simples assim.
A mudança no prêmio Jabuti exprime que, no romance de entretenimento, o conteúdo é mais importante do que a forma, enquanto, no literário, ocorre o oposto. Nessa definição, existe uma carga de subjetividade que depende do próprio escritor decidir a qual destes gêneros seu livro pertence.
Na definição de Cláudia Maria de Vasconcellos, professora doutora em letras na Universidade de São Paulo, escritora de livros infantis e dramaturga, o romance literário é uma obra arrojada que fornece “algum ingrediente novo para a história da literatura”. Diferente do romance de entretenimento, que seria a “literatura de massa popular, como romance policial, de ficção científica e sentimental”.
Obras que estão no limite
Existem obras que não fazem parte nem de uma categoria, nem de outra. De acordo com Cláudia, parte dos romances estão no limite entre elas: “podem ser lidas com muita facilidade pelo público por um lado, mas, na verdade, estão complexando alguma outra questão”.
Seja como for, a categorização que separa romance de entretenimento como um gênero à parte é injusta, segundo Mariana Coutinho, leitora ávida desde o começo da adolescência e bookstagram.
“Toda literatura, no fim, é de entretenimento. Quem lê romance, ficção, fantasia, seja lá o que for, busca esse objetivo”, afirma Mariana. Ela ainda comenta como acredita que há uma questão elitista intrincada com o assunto. Segundo a bookstagram, ”ainda há um ‘achismo’ dentro da comunidade, de que leitor de clássico, por exemplo, é mais leitor que o de HQ. Óbvio que a densidade pode ser diferente, e tudo bem, mas no fim, todos buscam o mesmo escape: a leitura para o entretenimento”, complementa.
O cenário está mudando
Mesmo com achismos e preconceitos na comunidade, a literatura de entretenimento ocupa cada vez mais espaço, tornando-se, inclusive, base para estudos acadêmicos, como na tese de doutorado em letras: Do leitor invisível ao hiperleitor: uma teoria a partir de Harry Potter. O estudo foi apresentado por Ana Cláudia Munari Domingos Pelisoli à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Segundo Cláudia, esse movimento é importante porque é necessário compreender os fenômenos de massa, como o que ocorre com esses livros que conquistam um grande público e dominam as mídias. “O Harry Potter, para dar um exemplo, tem valor. Seria impossível uma obra sem nenhum valor se espraiar tanto quanto aconteceu com essa”, exemplifica Cláudia. “Tem que entender, tem que estudar”, complementa.
As listas dos livros obrigatórios para vestibulares de algumas faculdades públicas tradicionais também mostram que a academia está disposta a mudar. Nos últimos anos, bancas examinadoras como a Comvest, que realiza o vestibular da Unicamp, variaram suas listas. Sem se concentrar nos poucos autores da literatura clássica portuguesa que comumente figuravam nelas, a Comvest considerou a representatividade e a diversidade ao escolher livros como Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll e A vida não é útil (Companhia das Letras, 2020), de Ailton Krenak.
Para além do entretenimento
Jogos Vorazes (Rocco, 2008), de Suzanne Collins, é uma coleção de livros distópicos que vendeu mais de 100 milhões de cópias ao redor do mundo. Embora o primeiro livro tenha sido publicado há quase quinze anos, o enredo da saga continua atual e influente. Ò lançamento recente de A cantiga dos Pássaros e das Serpentes (Rocco, 2020), um spin-off de Jogos Vorazes, foi um sucesso de vendas.
Em contrapartida ao que geralmente se diz sobre livros da cultura pop – que são rasos e sem aprofundamento –, a história distópica da saga aborda ensinamentos políticos e referências históricas que podem contribuir efetivamente no ensino dos jovens.
Para Mariana, livros como esses podem auxiliar crianças e adolescentes em matérias escolares e no entendimento da sociedade no geral. “Diversos livros podem ser usados para o entendimento das motivações humanas e necessidades sociais, principalmente os de universo distópico. Usar essas histórias como ferramentas para trabalhar essas questões pode ter um resultado muito positivo para a geração jovem, além de influenciar a leitura prazerosa no processo”. No universo de Panem, por exemplo, são diversas as críticas sociais explícitas, que vão desde a fome, a desigualdade social, a precarização do trabalho braçal e a espetacularização da vida.
A bookstagram também fala sobre o crescimento pessoal que os livros podem trazer: “os principais ensinamentos, por assim dizer, que eu carrego comigo e que são comuns entre as leituras, é a determinação em fazer o melhor que eu posso sempre e ser empática com a luta do outro”. Além desses ensinamentos, ela destaca a capacidade que a leitura lhe traz de enxergar além do seu ponto de vista para ter uma visão mais justa sobre determinado assunto ou situação e não ter medo de arriscar se o processo lhe trouxer realização. “É um tipo de literatura que conversa muito com o leitor, então dá para guardar muito para si”, comenta Mariana.
Outras consequências positivas na vida dos leitores incluem melhorias na aprendizagem e na atenção das crianças, como concluiu uma experiência feita com alunos em uma escola da Vila Madalena, em São Paulo. Cláudia conta que o objetivo era medir o impacto dos livros na vida dos estudantes. Segundo a professora, contadores de história formaram um círculo de leitura com parte dos alunos e liam histórias na biblioteca. Após um tempo, psicólogos perceberam as melhorias nas capacidades cognitivas das crianças que participaram do experimento.
Independentemente do gênero, a leitura constrói repertório e um livro pode ser o companheiro que se busca. “Os livros me fizeram sentir que eu não estava sozinha num momento muito delicado não só para mim, mas para a humanidade”, confirma Mariana. “Na pandemia [do coronavírus], muitas pessoas procuraram refúgio nas páginas, e nas tramas. Com o mundo voltando ao normal, é esperado que esse hábito perca um pouco da força, e tudo bem não ler dez livros por mês. Mas não desistam dos livros, sejam eles de quais gêneros forem”, conclui a bookstagram com um conselho.