Entenda a importância política das conquistas e eventos esportivos, da Antiguidade aos dias de hoje
Por Bruna Arimathea (b.arimathea@gmail.com) e Renato Navarro (renatonavarro@usp.br)
A bandeira hasteada no topo do mastro. Ao fundo, o hino nacional é tocado em homenagem à pátria dos grandes campeões, acompanhado por um orgulhoso coro formado por incontáveis vozes, tanto ali presentes quanto à distância. Através da televisão e internet, todo o planeta presencia em tempo real o sublime momento de consagração dos esportistas.
Com tantas exaltações à identidade nacional e potencial enorme de difusão, não é surpresa que os esportes acabem, em algum momento, sendo apropriados por instituições políticas como forma de autopromoção, busca de prestígio e afirmação no cenário internacional.
À primeira vista esta situação pode parecer recente, mas, mesmo com uma repercussão limitada comparada com a atualidade, esta estratégia de propaganda e aproximação da massa existe há mais de dois milênios.
História
Os Jogos Romanos, surgidos no século IV a.C, se tratavam de festejos populares ocorridos na época de celebrações religiosas que, além de entreter o povo, serviam como forma de pacificação entre aristocratas e plebeus. Na era republicana de Roma os Jogos continham corridas de biga e eventos atléticos, inspirados pelos jogos da Grécia Antiga, além da representação de peças de teatro e combate a animais selvagens. No entanto, o auge da popularidade desses eventos se deu no período do império, quando os duelos entre gladiadores foram implementados e os Jogos passaram a reunir milhares de pessoas nas arenas e anfiteatros. Foi quando surgiu a política do pão e circo (panem et circences), em que os jogos e festividades chegavam a durar até 175 dias e pão era distribuído para o povo.
Precisando desviar a atenção de problemas como a negligência nas políticas internas em detrimento à conquista territorial, o governo adotou uma prática de execução muito simples. Assim, uma população entretida com diversas atividades — como as modalidades esportivas — não enfrentavam nem contestavam autoridades.
Ao longo do tempo o viés político dos esportes acabou sendo deixado de lado. Isso durou até o século XVIII, quando as escolas europeias de ginástica se engajam em exaltar a importância militar e salutar da prática esportiva, com destaque para a inglesa.
Pensado como forma de disciplinar os estudantes da elite social, o método inglês defendia a sistematização e regulamentação dos esportes e foi inicialmente adotado pela Rugby School, dirigida então pelo educador Thomas Arnold. Com seu sucesso, o método serviu de modelo não apenas para o sistema educacional inglês mas também para o empresariado, que viu no esporte uma forma de arraigar dentre os trabalhadores valores como hierarquia, disciplina e produtividade.
No século XIX, com a Inglaterra passando pela Segunda Revolução Industrial, era essencial para os proprietários das indústrias que duas questões fossem sanadas: a alta quantidade de lesões que acometiam os operários durante as violentas partidas de futebol, o que causava ausências e prejudicava a produção, e a ascensão dos movimentos sindicais, que reivindicavam melhores condições de trabalho. Os empresários então foram auxiliados pelo Estado inglês, que fundou a Football Association em 1963 com o intuito de estabelecer regras e datas adequadas para a prática esportiva, seguindo o método de Thomas Arnold.
Os jogos passaram a acontecer aos sábados, dias em que os patrões concediam folgas, o que melhorou a reputação deles para com os empregados. A introdução das faltas ao livro de regras ajudou a manter a integridade física dos esportistas.
Com o surgimento dos primeiros campeonatos entre as equipes de trabalhadores surgiram também as torcidas, compostas pelo operariado e suas famílias. Vindos de diferentes localidades do interior inglês para as grandes cidades, como Manchester e Sheffield, os proletários encontraram no apoio aos times de suas fábricas um meio de comunhão, identificação e lazer em família. Desta forma, de acordo com o planejado pelos empresários, o esporte passou a atuar como agente de fomento do laço afetivo e emocional junto à empresa, além de distrair o foco da população dos problemas empregatícios.
O crescente interesse público dá origem ao jornalismo esportivo, que de início apenas informa os resultados dos torneios, mas posteriormente adota outros formatos como entrevistas, crônicas e colunas para aumentar sua repercussão. Ao perceber o espaço conquistado pelo jornalismo esportivo, o governo inglês passou a estatizar entidades e a utilizar as seleções como forma de incentivar o patriotismo e reforçar o sucesso político e econômico do império em âmbito internacional.
No final do século XIX, o pedagogo Pierre de Coubertin idealizou as Olimpíadas modernas inspirado pelos preceitos esportivos ingleses de competição, jogo limpo e regras bem definidas e pelos ideais helenísticos da Paideia, que pregava a educação global aliando exercícios ginásticos e atléticos ao saber acadêmico. O retorno do evento foi formalizado após congresso reunindo dois mil delegados de 12 países na Universidade de Sorbonne, em Paris, determinando também Atenas como a sede da primeira edição. Inicialmente, a competição deveria ser disputada por atletas amadores, sem interesse econômico com a prática esportiva, e promoveria a educação, o espírito esportivo e a amizade internacional. No entanto, aproveitando a identificação do povo através dos desempenhos esportivos dos atletas,a exibição das símbolos nacionais e a repercussão midiática, os jogos acabaram sendo usados por governos em busca do prestígio e afirmação frente a seus oponentes.
Ditadores
Um dos maiores exemplos de deturpação do objetivo original dos Jogos Olímpicos ocorreu em 1936, quando o evento foi sediado pela Alemanha comandada por Hitler e seu Partido Nazista. Empregando massivo financiamento estatal o ditador estava disposto a demonstrar a força de seu governo e resgatar a honra alemã, abalada após a assinatura do Tratado de Versalhes. Para isso, designou seu ministério da propaganda para veicular grandes campanhas e o exército foi convocado para ajudar nas construções, além de serem realizadas frentes de trabalho que deram emprego temporário para milhares de alemães, ajudando a conquistar a simpatia do povo.
Antevendo o uso político dos jogos pelos nazistas, Inglaterra, França e Estados Unidos lideram um conjunto de nações que não enviariam suas delegações, especialmente após campanhas de universidades, jornais e associações judaicas. Para reverter o possível boicote o Estado alemão coordenou a camuflagem do antissemitismo e da perseguição às minorias durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 1936, realizados na cidade de Garmisch-Partenkirchen. Com a ausência de incidentes, os países concordaram no envio de suas delegações para as Olimpíadas do mesmo ano.
A política de falsa aceitação continuou: população e comerciantes foram orientados a tratar normalmente os visitantes, e jornais e panfletos antissemitas foram retirados de circulação. Por toda Berlim a suástica era retratada ao lado dos anéis olímpicos, e os hinos nazista e olímpico eram executados frequentemente. Os desfiles militares e as presenças do exército e da polícia nazista na cidade afirmavam o poder do Estado alemão para o mundo.
A intenção nazista de demonstrar organização e força bélica foi bem sucedida. No entanto, apesar da vitória alemã no quadro total de medalhas, a tentativa de provar a “superioridade ariana” no esporte falhou: diversas provas foram vencidas por atletas negros, judeus e asiáticos, com destaque para o atleta afro-americano Jesse Owens, vencedor de quatro medalhas de ouro nas provas de 100 e 200 metros rasos, revezamento 4×100 metros e salto em distância. Nesta última, Owens venceu o campeão europeu e estrela do esporte alemão Luz Long, o que causou a irritação do Reich e o motivou a abandonar o estádio de maneira precoce, furioso e constrangido, sem cumprimentar o vencedor.
Adolf Hitler não foi o único ditador europeu a utilizar o esporte a favor de sua ideologia. Outros dois emblemáticos casos aconteceram na Itália fascista e na Espanha falangista e tiveram como meio de propagação o esporte mais popular do mundo: o futebol.
Benito Mussolini, ditador fascista italiano entre 1922 e 1943, observou a crescente popularidade da modalidade junto à população, ultrapassando o ciclismo como esporte favorito da Itália. Desta forma, o déspota ordenou que o Estado italiano assumisse e estruturasse o futebol a partir de 1926 e conseguiu fazer com que o país sediasse a Copa do Mundo de 1934, visando um título mundial em casa que afirmaria frente para todos a soberania fascista e alimentaria o nacionalismo de seus compatriotas.
Para sediar o evento novos estádios foram construídos e os antigos foram reformados, adotando nomes que sempre exaltavam o governo: o estádio construído em Turim foi denominado Stadio Mussolini, enquanto o de Roma, após reforma, passou a se chamar Stadio Nazionale del Partito Nazionale Fascista. O regime também agia para que a imprensa transmitisse uma imagem otimista da seleção, obrigando-a a publicar apenas notícias positivas sobre a Squadra Azzurra, sob ameaça de depredação das redações que se opusessem. A pressão surtiu efeito, e o país venceu sua primeira Copa do Mundo.
Em 1938 o torneio foi sediado na França, mas os resultados deveriam ser mantidos. Para “incentivar” sua delegação, Mussolini enviou o famigerado telegrama com os dizeres “Vincere o morire” (vencer ou morrer), e funcionou: os italianos foram bicampeões para a alegria do governo e da população.
Na mesma época a Espanha era comandada por Francisco Franco, ditador do partido fascista Falange Espanhola, que ocupou o poder de 1936 a 1975. Franco notou o sucesso que o futebol estava fazendo na Itália e adotou o esporte como bastião de seu governo. Porém, diferentemente de outros déspotas, o espanhol escolheu uma equipe além da seleção nacional para representar seu regime: O Real Madrid, time da maior parte da capital.
Com o Barcelona vencendo cinco campeonatos nacionais entre 1939 e 1954, os movimentos de esquerda e a Catalunha, região espanhola onde fica a cidade de Barcelona e palco de antiga luta separatista, haviam ganhado moral dentro do país. Para fazer frente a eles, o governo falangista passou a intervir de forma contundente: Com pessoal de Franco auxiliando nos bastidores, estrelas como Alfredo Di Stéfano e Ferenc Puskás foram contratadas para a formação de uma superequipe que trouxe 5 Ligas dos Campeões consecutivas para o Real, construindo uma hegemonia europeia incontestável. O primeiro jogador chegou à capital após uma negociação com os catalães ser obscuramente interrompida. Na ocasião, homens do ditador deteram o então presidente do Barça, Marti Carretó, e ameaçaram aplicar fiscalização e multa extremamente pesadas para sua empresa têxtil caso não cedessem o jogador. O húngaro Puskás, por sua vez, se tornou jogador do Real Madrid após intensa campanha espanhola como refúgio aos esportistas que viviam nos países comunistas do Leste Europeu.
A seleção espanhola também foi beneficiada pelos falangistas com a incorporação de craques estrangeiros à seu elenco, como os já citados Di Stéfano (argentino) e Puskás, mas estes jamais chegaram a disputar uma Copa pelo país. O ápice da instrumentalização franquista foi o título da Eurocopa de 1964, sediada na própria Espanha. Na final, os anfitriões enfrentaram os Soviéticos com uma seleção sem estrangeiros ou naturalizados e venceram por 2 a 1, no que ficou conhecido como embate entre comunistas e fascistas. A vitória foi um grande trunfo para afirmação da doutrina de Franco, tanto nacional quanto internacionalmente.
No Brasil
Vivendo momentos, em meados do século XX, em que a busca pela afirmação nacional e os vínculos de nação se fortaleciam, o Brasil tentava construir uma imagem ao redor de sua identificação. Nada melhor que o esporte para cumprir esse papel. É fácil entender o porquê dessa estratégia quando se pensa em um time: a união de uma série de pessoas que se enxergam como um grupo de mesmo pensamento, dispostas a enfrentar um desafio por um determinado objetivo, visando a conquista desse, era tudo o que as autoridades precisavam para amarrar a população em seu regime populista e se promover ainda mais.
Com o crescimento da prática esportiva em toda a América Latina, fazia sentido — e era conveniente — para gestões, como a de Vargas, que fosse usada como ferramenta integrante do governo, uma vez que o caráter populista do presidente brasileiro se aproximava da comunidade e permitia que houvesse uma identificação em massa de um conjunto que unia política e esporte. Era um modelo utilizado nos regimes autoritários de Mussolini e Hitler, por exemplo, e que se mostrou eficaz para alavancar uma ideologia predominante nos líderes, mas não na população a princípio. Mesmo com diferentes ideias, esses casos se aproximam pela perspicácia em se aproveitar do esporte em prol de si mesmos e, desse ponto de vista, em nada pode se distanciar os casos de sucesso que essa manobra significou.
Getúlio Vargas, em seu governo, buscou exaltar o nacionalismo esportivo principalmente pelo futebol, depositando na seleção brasileira o elo entre sua imagem e a população nesse aspecto. A modalidade, assim como hoje, já era a mais popular no Brasil, contava com um grande apoio dos torcedores nas competições mais importantes e a Copa do Mundo de 1938 representou um marco nessa relação de Getúlio Vargas e o paternalismo exercido no país. Cenas como a saudação do presidente aos jogadores antes de embarcar para a França, país sede da disputa naquele ano, alimentava tanto o sentimento de proximidade com o governante quanto o imaginário da nação a respeito da importância gerada ao redor da seleção. Essa articulação funcionou tão bem para que o governo ganhasse a confiança do povo que nesse mesmo ano as festividades do 1º de Maio, a principal festa cívica promovida pelo governo varguista, começou a ser realizada em um estádio.
A seleção acabou voltando para casa com um 3º lugar, após iniciar a competição com um espetacular 6×5 contra a Polônia, mas perder um de seus principais jogadores — Leônidas da Silva — em uma controversa contusão e ser derrotada pela Itália, em um 2×1 no Vélodrome. Ainda assim, a seleção foi recebida com festa no Brasil, sob o mote de que eram ‘campeões morais’. Esse fascínio foi aproveitado inteligentemente por Vargas, que declarava o valor do futebol brasileiro e colhia os frutos da popularidade alcançada junto ao esporte também em outras competições pós Copa do Mundo.
Observava-se também a tendência política de formar e ‘moldar’ uma nova geração a partir do esporte. Novamente o futebol entra como protagonista entre os mais jovens e iniciativas diretas eram notadas no âmbito desses futuros cidadãos. Para o governo, enraizar o sentimento pátrio desde cedo era a chave para que uma população futura pensasse de acordo com seus princípios e permitisse a continuidade de seus ideais. Para isso, campanhas de cunho nacionalistas surgiam, como uma ação promovida pelo Jornal dos Sports, em 1937, onde crianças enviavam frases que exaltavam o futebol e o Brasil para concorrer a prêmios. Entre as vencedoras, encontram-se passagens como “O Flamengo ensina: amar o Brasil sobre todas as coisas”, escrita por uma criança de 13 anos.
Em 1941 é criado o Conselho Nacional do Desporto (CND), órgão que permite que o governo basicamente controle os esportes, facilitando a influência do Estado sob as modalidades e a imagem que se tinha e se fazia deles, segundo a sua própria orientação política. Nesse conselho consolidou-se também o uso da imagem esportiva como propaganda do governo Vargas. Se sua influência direta não estava clara nos episódios anteriores com a Seleção Brasileira, essa viria aqui se mostrar efetiva e decisiva no aspecto propagandístico.
Um acontecimento que evidenciou essa manobra foi a homenagem organizada para a Federação Expedicionária Brasileira (FEB) na ocasião de sua ida à II Guerra Mundial, em 1944. O evento consistia em duas partidas entre Brasil e Uruguai, realizadas uma no Rio de Janeiro, no estádio de São Januário, e outra em São Paulo, no Pacaembu. O jogo realizado no Rio de Janeiro contou com a presença de diversas figuras como Eurico Gaspar Dutra e Joaquim Salgado Filho, evidenciando o caráter primariamente político da ocasião. O evento reuniu milhares de pessoas nos dois estádios e foi considerado um sucesso para o governo que, mais uma vez, demonstrava força ao mesmo tempo que se concretizava sua legitimidade, como uma só nação torcendo pela mesma bandeira: autoridades e população sob um mesmo ideal.
O Brasil ainda viveu um outro período onde o esporte se mostrou forte aliado da disseminação de uma imagem de governo bem-sucedido. Durante todo o século XX, os diferentes regimes políticos que guiaram o país passaram por uma grande necessidade de reafirmação nacional, de unir a população em torno de um ufanismo que a fizesse acreditar que estava crescendo junto com a nação. A ditadura militar usou dessa mesma tática ainda de forma mais expansiva por um motivo óbvio: em um governo de baixa aceitação e alta repressão, era preciso que uma imagem positiva se espalhasse junto às metas de governo, de preferência que pudesse carregar consigo a impressão de que avançava.
O regime autoritário que tomou conta do Brasil a partir de 1964 instaurou um misto de desentendimento e terror no país. As medidas tomadas pela ditadura eram de controle absoluto de todas as vertentes possíveis do país, exercendo uma hegemonia em tudo o que estivesse ao seu alcance e fosse de seu interesse e o esporte se mostrou mais uma vez eficaz para abrandar a imagem de um governo torturador e opressivo.
Nas Olimpíadas de Munique, em 1972, onde o Brasil teve um péssimo desempenho geral no quadro de medalhas, terminando em 41º lugar, ficou claro que enquanto o futebol ainda era a potência que alavancava a grandiosidade brasileira dentro do país, as outras modalidades eram negligenciadas e marginalizadas. Criou-se então uma série de medidas que incentivava o esporte nas escolas e trazia diversas modalidades ao conhecimento dos jovens.
O aperfeiçoamento de professores, segundo a Campanha Nacional de Esclarecimento Esportivo, ainda controlado pelo estado ditatorial, era uma dessas vias de propagação da imagem de havia um investimento na base de atletas e assim poderia fazê-la crescer e se desenvolver, tal qual o país e suas ações políticas. Mais que isso, era ainda uma forma de descentralizar a organização estudantil que lutava contra a ditadura e desviar a atenção de seu movimento, contando ainda com ações semelhantes como o Plano de Educação Física e Desportos (PED) que exercia exatamente a função da democratização da prática esportiva com fins de minar a possibilidade de um envolvimento político-estudantil.
Mas o carro-chefe da propaganda governamental ainda se concentrava no futebol. Até mesmo na ideia de que fortalecendo o principal esporte do país os outros também se fortaleceriam e seriam inspirados pela trajetória de sucesso da seleção. A verdade é que, ainda como a modalidade mais popular no país, certamente angariaria maior credibilidade e visibilidade ao governo.
Nesse contexto, logo em 1971 foi criado o Campeonato Brasileiro, promovido pela ditadura e com o objetivo de ser uma integração nacional através do futebol. Em um meio militarizado, os clubes perderam aos poucos sua voz nas decisões, inclusive com militares assumindo postos dentro dos times, permitindo que a competição ganhasse um caráter fortemente político, como pretendiam os ditadores.
A conquista da Copa do Mundo, realizada no México em 1970, talvez seja o maior símbolo do período de como o futebol, especialmente, foi usado em favor do governo. A marchinha “Pra Frente Brasil” entoada durante a Copa é uma das mais conhecidas e surge em um momento onde o Brasil vive o seu momento mais opressivo com o Governo Médici. Em vigência desde 1968, o Ato Institucional nº5 assombrava qualquer indivíduo que não concordasse com o regime, e fez milhares de vítimas de sequestro, desaparecimento, morte, abordando qualquer pessoa que considerasse ‘subversiva’ ao poder ditatorial. Era necessário então uma propaganda de governo que dissesse o contrário, que exaltasse a economia, que passava por um crescimento de 10% ao ano — o chamado Milagre Econômico – que confiasse o aumento dos empregos por obras públicas e que passasse a mensagem clara que o Brasil estava caminhando em direção ao futuro.
O próprio Médici se apresenta, no contexto, como um apaixonado por futebol, torcendo e recebendo, inclusive, os jogadores da seleção quando voltaram do México com a taça de tricampeões do mundo. O feito inédito para o Brasil e para o mundo inflava ainda mais campanhas de governo como “Ninguém segura esse país” e aumentava a euforia do povo brasileiro que exaltava não só a seleção, mas também o nacional desenvolvimentismo e a figura de um Brasil potência.
A própria imagem dos jogadores e suas declarações eram usadas em favor do governo para autopromoção: mostrar quem compartilhava de suas ideias permitia que o povo as compartilhasse também, não por apoio ao governo necessariamente, mas por idolatria ao atleta. Foi o que aconteceu ainda na Copa de 1970, quando o Embaixador alemão Ehrenfried von Holleben foi sequestrado no Rio de Janeiro pelo Vanguarda Popular Revolucionária, um grupo de luta armada brasileiro que lutava contra o regime militar e pedia em troca a libertação de 40 presos. Na ocasião, o governo disparou contra o grupo, dizendo que os jogadores da Seleção Brasileira poderiam ser afetados por conta da comoção causada ao redor do caso, quando na verdade, a nota expedida pelos jogadores tratava apenas de um sentimento de solidariedade ao embaixador e seu país. Pode-se, então, observar o esforço do governo de usar, de todas as formas possíveis, argumentos e recursos que os validassem.
Guerra Fria
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, os países dos blocos comunista, liderados pela URSS e capitalista, liderados pelos EUA se engajaram em uma corrida para mostrar ao mundo qual doutrina era melhor sucedida em termos de poder militar, desenvolvimento tecnológico e, claro, performances esportivas.
Os jogos olímpicos de 1980, sediados em Moscou, marcaram uma competição esportiva realizada em uma nação socialista, e foi caracterizada pela ação do regime diretamente sobre os esportes e sobre a população no período. O boicote sofrido no evento por nações capitalistas, lideradas pelos Estados Unidos, resultaram em uma série de indiretas que podem ser observadas inclusive no encerramento dos jogos, com o urso Misha e as lágrimas, representando a tristeza pelos países não participantes, claramente uma provocação as nações capitalistas.
Sob o ponto de vista ideológico, é importante ressaltar a constante pressão e controle a qual se submetiam todos os envolvidos com os jogos. Passar a imagem de uma união forte e dominadora resultava em agentes da KGB na rua e censura de material televisivo das emissoras internacionais, entre outras medidas. Daniel Andrade, repórter cinematográfico da Rede Globo desde 1973 e integrante da equipe enviada para as Olimpíadas de Moscou, relata que em cada saída de satélite do centro de transmissão havia um agente do governo que falava a língua da emissora em questão, avaliando se o conteúdo poderia ser transmitido ou não, garantindo assim o sucesso da imagem do país também fora dele.
Em sua primeira viagem internacional, o repórter conta que sua ideia de qualidade de vida europeia foi frustrada: “A gente achava que a vida lá era muito legal, na Europa, aquelas coisas todas de primeiro mundo, que nada: a vida lá era muito simples (…) A gente descobriu que muitas mulheres, muitas mulheres, eram alcoólatras por causa da vodca e porque os maridos, muitos militares, eram levados para a Sibéria por algum motivo e elas ficavam sozinhas, daí caíam em depressão e começavam a beber. A gente fez uma matéria sobre isso mas, quando a gente começou a gerar, cortaram e não deixaram passar nada”. Daniel observa que a censura também ocorria em âmbito pessoal, uma vez que as correspondências enviadas demoravam até 15 dias para chegar no Brasil e, quando chegavam, tinham sido abertas e fechadas novamente. “As únicas coisas que chegavam eram os cartões-postais. Eu mandava foto do Kremlin, foto da Praça Vermelha, nada chegou, eles interceptavam tudo”.
A reclamação de atletas e jornalistas que compareceram ao evento se dá, inclusive, sobre a arbitragem. Em uma corrida pela hegemonia que significava muito para a imagem do socialismo, o quadro de medalhas seria um parâmetro muito importante para corroborar com o regime perante o mundo, e a arbitragem foi bastante questionada pelo ‘protecionismo’ em relação aos donos da casa.
Obtendo sucesso em sua jornada de demonstração da hegemonia socialista no esporte, sem a participação de diversos países do bloco capitalista, e da potência soviética que desejava ser, a URSS saiu dos jogos com 80 medalhas de ouro, liderando o quadro com 23 ouros a mais que a segunda colocada Alemanha Oriental. No total, foram 195 medalhas para os soviéticos.
Doping estatal
A Alemanha Oriental, Estado marxista-leninista que se fechou para as relações ocidentais (incluindo esportes) em 1965, implantou um colossal política de fomento à prática esportiva onde todos os clubes tinham uma escola infantil que observava e selecionava crianças de acordo com suas aptidões. No entanto, apesar do governo alegar que o programa tinha como objetivo reduzir os níveis de criminalidade, estimular o capital social e diminuir a obesidade da população, o que de fato houve foi um esquema sistemático de dopagem forçada visando alto desempenho a médio e longo prazo e que vitimou cerca de 15 mil atletas.
Entre 1965 e 1989, os centros de treinamento administraram drogas como esteróides, anfetaminas e hormônios do crescimento a jovens esportistas, em alguns casos a partir dos 12 anos de idade. Os resultados vieram rápido: Em 1968 a Alemanha Oriental ficou em 5º lugar nos Jogos da Cidade do México com 9 medalhas de ouro. Quatro anos depois, em Munique, o país alcançou a terceira posição, com 20 medalhas douradas (à frente dos anfitriões, inclusive). Essa quantidade dobrou em 1976, e a Alemanha ficou atrás apenas da União Soviética no quadro geral de conquistas, o que se repetiu nas edições de 1980 e 1988, em Moscou e Seul respectivamente.
Apesar dos ótimos resultados para propaganda (a contagem de medalhas nos Jogos Olímpicos de Inverno e Verão entre 1956 e 1988 totalizam 203 ouros, 192 pratas e 177 bronzes), os efeitos sobre a saúde dos atletas envolvidos foram devastadores. Virilização do corpo de atletas femininas, mau funcionamento dos rins, fígado e ovário são reclamações recorrentes dentre as vítimas, assim como dificuldades de locomoção atribuídos à problemas nas costas, pernas e ligamentos. Um caso famoso é o de Heidi Krieger, lançadora de peso que por dez anos consumiu altas quantidades de esteróides administradas por seu técnico como sendo supostos suplementos. Heidi se aposentou em 1991, aos 26 anos, devido aos efeitos colaterais que a substância exerceu sobre seu corpo. Em 1997 a ex-atleta, já vítima da masculinização, inicia o procedimento de mudança de sexo, adotando o nome de Andreas Krieger e realizando a cirurgia de redesignação sexual no ano seguinte.
Em entrevista concedida em 2005 ao jornal britânico The Independent, Andreas afirma que “eles [governo da Alemanha Oriental] mataram Heidi”, e lamenta: “Para mim a tragédia é que não tive escolha na determinação de minha identidade sexual, as drogas decidiram meu destino”.
Cuba
O Pan americano de 1991, realizado em Cuba, foi a oportunidade do governo de Fidel Castro demonstrar para o mundo a potência que o país poderia ser no esporte. Configurada uma nação socialista geograficamente em uma região capitalista, era importante mostrar que anos e anos investidos nas bases e no desenvolvimento do esporte trariam os resultados esperados no quadro de medalhas.
Em um plano de governo que visava fortalecer o esporte desde a base, Cuba investiu alto em centros e em desenvolvimento esportivo em um plano iniciado em 1959 quando Fidel assumiu o poder. A construção de 526 instalações aparelhadas em todo o país, com profissionais especializados para o treinamento a aumento da performance dos atletas cubanos atestam que a visibilidade acompanhava os bons resultados que o país obtinha, principalmente nos esportes olímpicos. A produção atlética era a maior propaganda de Fidel, colocando o país em um patamar de excelência, o que legitimava muito as ações da nação socialista perante seus vizinhos.
Em 1991, nos jogos que sediou, o país cresceu em número de medalhas e qualidade, resultado da política massiva e planejada, que envolveu outros setores da sociedade para abranger todo e qualquer potencial esportivo que o país poderia ter. O resultado foi uma notoriedade alcançada nas competições olímpicas, que o colocou atrás apenas dos Estados Unidos no quadro de medalhas. Isso significa que, em menos de 30 anos, Cuba conseguiu se mostrar ao mundo e ser uma das maiores potências da América, a frente de países mais populosos e que, em tese, possuíam mais recursos para financiar tal feito.
Atualidade
Ainda hoje pode se observar essa busca pela hegemonia através do esporte nas relações políticas. Modelos do século XX foram a prova de que usar o esporte para fins de divulgação de uma imagem de governo dava certo, e esse efeito propagandístico se perpetuou para nações no século XXI, como Rússia, China e Estados Unidos, por exemplo.
Rússia
Após a queda do muro de Berlim, a Rússia moderna acabou mantendo a maior parte das heranças culturais advindas do bloco comunista, entre elas a rivalidade com os Estados Unidos. Após o fim da Guerra Fria os países, duas das maiores potências mundiais nos campos econômico, militar e esportivo, passaram a protagonizar uma disputa pelo soft power, conceito cunhado pelo cientista político norteamericano Joseph Nye que designa a influência exercida por uma nação através de seus valores, ideias e culturas. Infelizmente, nessa busca por poder e prestígio, os russos evocaram outra característica marcante do período comunista do Leste Europeu: o doping institucional.
Em 2008, sete atletas russos foram suspensos antes do Jogos Olímpicos de Pequim por manipulação de amostras de urina. Já em outubro do ano seguinte, o secretário geral da IAAF (Associação Internacional das Federações de Atletismo), Pierre Weiss, escreveu para Valentin Balakhnichev, presidente da ARAF (Federação de Atletismo da Rússia), dizendo que as amostras de sangue dos atletas russos “registraram alguns dos valores mais altos já vistos desde que a IAAF adotou os testes”, e que os testes do Campeonato Mundial de 2009 “sugerem fortemente um abuso sistemático de doping sanguíneo ou de produtos relacionados a esteróides”.
Após denúncias de que a Agência Russa de Antidoping (RUSADA) estaria sendo conivente com um doping sistêmico no atletismo, feitas em 2010 por Vitaly Stepanov, funcionário da agência, e no fim de 2012 pelo lançador de discos Darya Pishchalnikova, a Agência Mundial Antidoping (WADA) iniciou uma investigação independente, cujos resultados levaram a organização a recomendar que a Rússia fosse banida das Olimpíadas de Verão de 2016, no Rio de Janeiro.
No mesmo mês, a IAAF suspendeu o país por tempo indeterminado dos eventos mundiais tanto das modalidades de campo como nas de pista, devido ao doping generalizado. O Comitê Olímpico Internacional (COI) rejeitou a recomendação da WADA de banimento, afirmando que as federações internacionais de cada esporte deveriam decidir de acordo com o retrospecto individual de cada atleta. Em um segundo relatório, publicado em julho de 2016, a WADA acusa o Ministério do Esporte e o Serviço Federal de Segurança (FSB) russos de terem operado um “sistema a prova de falhas dirigido pelo Estado” que usava uma “metodologia de desaparecimento de testes positivos” em um período entre, no mínimo, “fim de 2011 a agosto de 2015 “.
Em 4 de agosto de 2016, um dia antes da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, 270 atletas foram liberados pelos demais países, enquanto 167 foram impedidos devido ao doping. Três dias depois, o Comitê Paralímpico Internacional votou por unanimidade a exclusão de toda a equipe russa dos Jogos Paraolímpicos de Verão de 2016.
O esquema de doping estatal russo foi arquitetado e gerido visando o fortalecimento ilícito do país no âmbito esportivo e, consequentemente, no cenário internacional de forma geral. A revelação do plano, no entanto, acabou por desmoralizá-lo e lançou profundas desconfianças sobre suas entidades esportivas e governamentais aos olhos de todo o mundo.
China
A partir da escolha de Pequim como cidade sede das olimpíadas de 2008, a China se mostrou empenhada em investir nos esportes para obter bons resultados em casa. É claro que, em um contexto de mercado forte e país emergente, era importante que a imagem de credibilidade fosse passada ao mundo, e o país não decepcionou quando se tratou de desempenho olímpico
O investimento teve início em 2002, no chamado Projeto 119, onde o governo patrocina os atletas. Também, a construção de escolas especiais, que seleciona jovens desde a infância, que podem vir a ser um talento olímpico, e oferecem um treinamento intenso e de alta performance para que eles possam aperfeiçoar suas aptidões físicas. Nota-se também, principalmente nos últimos anos, um gigantesco investimento chinês no futebol. O esporte mais popular do mundo tem atraído cada vez mais nomes famosos do futebol mundial em contratações milionárias, permitindo que o país se torne visível para o mundo em mais um âmbito, lembrando sempre que o protagonismo no cenário econômico tende, cada vez mais, a colocar a China em cena, e ela tem conseguido se posicionar diante de tal situação. O esporte, é claro, concede o bem estar entre a população, além de mostrar que o país está presente em outras áreas como uma potência a ser temida.
Estados Unidos
A partir da década de 1980 as políticas econômicas neoliberais, cujo expoente máximo são os Estados Unidos, passaram a impactar diretamente o esporte. Tendo como maior exemplo as Olimpíadas de 1984 em Los Angeles, quando pela primeira vez o COI vendeu o evento a empresas por meios de contratos de patrocínio, essa década foi fundamental para a consolidação de uma estratégia norteamericana bem sucedida tanto esportivamente quanto economicamente: a captação de recursos da iniciativa privada para o custeio dos atletas e modalidades esportivas.
Com a crescente globalização e o desenvolvimento tecnológico possibilitando a transmissão de competições para cada vez mais pessoas em lugares antes inalcançáveis, o mercado consumidor a ser explorado por patrocinadores ampliou-se drasticamente. Isso permitiu que tanto federações de modalidades olímpicas quanto equipes de esportes não-olímpicos faturassem altas quantias com as vendas de direitos de transmissão e com o patrocínio aos eventos dos quais participam. Uma demonstração disso é o ranking das equipes esportivas mais valiosas em 2016, elaborado pela Forbes: 16 das 20 primeiras posições são ocupadas por times de futebol americano,beisebol e basquete dos Estados Unidos.
Por sua vez, o Comitê Olímpico Norteamericano (USOC) arrecadou US$ 141 milhões no ano de 2015 segundo relatório divulgado, sendo 73% desse valor oriundo de direitos de marcas, de transmissão e royalties de produtos licenciados. A organização, sem fins lucrativos e que não conta com financiamento governamental, aplica o dinheiro arrecadado no desenvolvimento, na infraestrutura e nos profissionais de seus três centros de treinamento, que atendem mais de 22 mil atletas olímpicos e paralímpicos das mais diversas idades. Visando um retorno a longo prazo, tanto para o esporte do país quanto para as grandes marcas que são suas parceiras, o USOC trabalha a nível nacional para captar atletas promissores e proporcioná-los a preparação adequada e necessária, de modo que se tornem esportistas de ponta.