Segunda-feira, 5h30. O celular desperta: é hora de levantar. A passos sonolentos toma banho, café da manhã e se dirige ao ponto de ônibus. Terminal Grajaú é o seu primeiro destino. Ali, sobe as escadas para a estação de trem e pega um vagão que, tão lotado quanto o ônibus de antes, a levará até Santo Amaro. Na estação movimentada que faz integração com a linha Lilás, desce do trem para entrar no metrô. O destino dessa vez é a estação Adolfo Pinheiro. Mais uma curta caminhada e, enfim, está no trabalho. A profissão praticada? Professora de Inglês em uma escola particular. A profissão desejada? Atriz dos grandes palcos do mundo.
O dia-a-dia de Manuela Ranny, de 20 anos, não é exclusivo a ela. Muitos dos que almejam a carreira de artes cênicas trabalham durante a semana naquilo que paga suas contas no anseio de que, quando o final de semana chegar, poderão incorporar seus personagens e no palco realizar o sonho de ser ator. A jornada para concretizar esse sonho, no entanto, é bem árdua.
Filha de uma família humilde e nascida na periferia da Zona Sul, Manuela é mais uma das jovens que veem no teatro a sua paixão. Tendo começado a trabalhar ainda com 15 anos em uma escola de inglês, a hoje professora lembra que quando começou a se interessar pelo teatro ouvia sempre a frase: “isso não dá dinheiro, tenta engenharia”.
Para os pais de Manuela, os cursos de teatro não valiam a pena e, mesmo sabendo que eles podiam levar a filha a conseguir o DRT (documento de registro profissional de atores), Ozeni e Odenilson Viana queriam que ela cursasse uma faculdade. Assim, a filha única do casal de mineiros passou dois anos no cursinho em busca da vaga de artes cênicas nas universidades públicas.
No final desse período, sem conseguir a preciosa vaga, Manuela decidiu optar pelos cursos pagos que tinha pesquisado outrora e convenceu seus pais a apoiarem-na na caminhada que iria começar. Trabalhando já há alguns anos, Manuela é quem paga seu próprio curso no Teatro Escola Macunaíma. Em um dos bairros vizinhos ao seu, na região do Grajaú, todavia, Isabella Marcelino Lucas, de 18 anos, sofre com a falta de condições financeiras para pagar sua profissionalização na área.
Estudo X Dinheiro
Isabella tinha apenas 10 anos quando suspirou pelo teatro pela primeira vez. Foi a idade com a qual encenou sua primeira peça aberta ao público, no circo-escola que ficava próximo a sua casa. A então menina ocupou o papel principal do espetáculo e, deixando-se encantar pela magia do teatro, acabou encantando a todos que a assistiam da plateia. Mas, foi apenas com 16 anos, quando entrou para o grupo de teatro de sua escola no Ensino Médio, que Isabella disse ter certeza do que queria. “Assim que eu comecei [a participar do grupo] eu pensei ‘é isso, é isso mesmo’”.
Apesar disso, sem condições para continuar pagando a escola particular para os três filhos, a mãe de Isabella optou por retirá-la do colégio onde a filha fazia teatro. Mudando para uma escola pública em Santo Amaro, Isabella teve seu ensino comprometido e na hora de prestar o vestibular para cênicas, assim como Manuela, percebeu o quão difícil era ingressar em uma universidade pública. Sem ter dinheiro para pagar um curso particular, Isabella foi vendo seus sonhos de estudar teatro tornarem-se cada vez mais complicados. Complicados porque, para quem deseja ser ator, o estudo é imprescindível.
Aluna do terceiro ano do curso de Artes Cênicas da USP e coordenadora o grupo de teatro amador para alunos da Universidade, Giu Confuorto explica sobre a importância do estudo teatral ressaltando que ele “influencia a maneira com que o ator vai fazer uma improvisação, vai criar uma imagem cênica, um texto”. Confuorto conta que é preciso estudar várias linguagens e ter referência em todas as formas de arte para que, ao realizar testes e entrar em grupos consolidados, o ator consiga “perder seus vícios corporais” e “deixar o corpo entrar no jogo da cena de forma orgânica, sem apego às ideias pré-estabelecidas”.
A também ativista conta que muitos acham que atuar é questão de inspiração, que os atores “encarnam personagens”, quando na verdade aquele resultado é fruto de muito trabalho e prática. Manuela Ranny concorda com a parceira de profissão. “Não é só subir no palco, tem muita coisa por trás”.
Uma alternativa a quem, como Isabella, não consegue pagar os cursos e encontra as barreiras de vestibulares como o da FUVEST, são cursos gratuitos e não profissionalizantes como os da Companhia Paidéia de Teatro. Isabella Marcelino apresentou sua primeira peça no Paidéia este ano e diz que a Cia tem sido muito importante neste período em que ela ainda não tem recursos para se profissionalizar.
Sair de um curso sem o DRT, no entanto, implica em algumas dificuldades, como a impossibilidade de competir em alguns testes.“Já teve casting que eu tentei entrar e eles falavam: ‘só com o DRT’. Pra mim ele facilitou muita coisa”, diz a, já formada, Deise Soares. Ela conta também que ter o DRT não significa que seu futuro já está certo.
Teatro tem que ser feito por amor
Participante de uma companhia de teatro independente, a Cia ncora, Deise Soares narra a conquista dos grandes palcos como uma verdadeira saga. Também pedagoga, a atriz, que se formou em teatro pelo Macunaíma, diz que os professores já comentavam que a profissão era difícil, mas que a prática é bem mais cruel. Segundo ela, a primeira peça profissional em que atuou rendeu na bilheteria menos que 100 reais para cada ator. Gabriel Gallindo, roteirista e ator da Cia das Quimeras, acredita que o pouco dinheiro que rende a profissão é consequência de uma competição do teatro com as outras várias opções de lazer que as pessoas têm. Essa competição, aliada à falta de hábito dos brasileiros de ir ao teatro, faz com que muitos atores, mesmo depois de formados, não consigam sobreviver só com o que se ganha na venda de ingressos.“Geralmente ator tem duas profissões” confirma Deise.
Manuela Ranny, que também trabalha auxiliando os atores da Cia das Quimeras com a bilheteria, diz que quando conheceu a Cia sua ideia de teatro se desencontrou. A falta de patrocínio e a ideologia independente faz, segundo ela, com que os envolvidos na companhia tenham que conseguir tudo por conta própria. “Quando a gente tá no curso, a gente tem que correr atrás de algumas coisas, mas é muito diferente porque você tem o espaço aonde você vai se apresentar, já tem o pessoal da organização, a galera da bilheteria. É um apoio garantido. No caso da Cia das Quimeras, eles tiveram que correr atrás de um teatro, de um figurino, de um cenário…”.
A estudante de teatro conta que há o receio de não saber se o trabalho ensaiado o ano inteiro conseguirá ser apresentado. “É bem sofrido. Quinze, vinte pessoas de público deixavam a gente feliz”.
Deixando de fora os altos e baixos, e as dificuldades da profissão, Manuela, Deise, Isabella e Giu Confuorto concordam: teatro tem que ser feito por amor. “No teatro se você tiver uma única pessoa te assistindo, é gratificante terminar o seu trabalho e assistir as palmas daquela pessoa” relata Manuela.
Apaixonados pela profissão, os atores se doam, se preparam para tudo. Deise Soares diz que “Não importa se vai ser difícil. O importante mesmo é tentar e não desistir”. Aqui caiba, talvez, o conhecido verso do grande Fernando Pessoa. No teatro, como na vida, no que se ama, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.
Por Jessica Bernardo
jessicabmarcelino@gmail.com
Continue sempre Manuela! Admiro o ramo de atuação e um dia quero me desenvolver na área.