“E o Oscar vai para…Michelle Yeoh!” Apesar de surpreendente para alguns ou frustrante para apostadores de bolão, a vitória de Michelle Yeoh como Melhor Atriz no Oscar 2023 por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once, 2022) trouxe à tona uma discussão que por muito tempo nem sequer foi colocada à mesa: a representatividade asiática feminina nos cinemas. A atriz malaia se tornou a primeira mulher asiática na história a conquistar a estatueta na categoria, 20 anos depois da última não branca, Halle Berry, em 2002, mas o impacto da sua vitória ultrapassa as estatísticas.
Yellowface, whitewashing e estereótipos
Décadas antes de Michelle Yeoh, Luise Rainer venceu o Oscar de Melhor Atriz. A atriz de origem germânica foi a primeira pessoa a ganhar duas estatuetas da Academia de forma consecutiva, em 1937 e 1938. A segunda premiação foi por sua atuação em Terra dos Deuses (The Good Earth, 1937) em que interpreta O-Lan, uma fazendeira chinesa passando dificuldades ao lado do marido durante um período de fome no país. Luise não tinha nenhuma ascendência chinesa, mas foi a escolhida para o papel.
Anna May Wong, a primeira estrela de ascendência asiática em Hollywood, também fez testes para interpretar a personagem. Apesar da neta de chineses já ter atuado em outras produções e já ser um nome consolidado na indústria, mesmo que renegada a papéis estereotipados e de pouco protagonismo, Albert Lewin, produtor de Terra dos Deuses, afirmou que Anna “não era bonita o suficiente para o papel” e a demitiu. Então, Luise Rainer ficou com a personagem, tendo que ser maquiada para interpretá-la. Mas a prática de yellowface e whitewashing não se restringiu ao século passado.
O yellowface se assemelha ao blackface, em que se pinta o rosto, neste caso de amarelo, e se exageram as características fenotípicas amarelas, como puxar os olhos com fita para se assemelhar aos dos asiáticos do leste, junto com uma interpretação estereotipada e irrealista. O whitewashing engloba todos estes exageros e estereótipos ao substituir, ou nem considerar para interpretação, uma pessoa de outra etnia, em favor de um intérprete branco. Um exemplo recente foi o filme A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell (Ghost in the Shell, 2017), em que Scarlett Johansson, uma atriz caucasiana, vive uma ciborgue japonesa. O “embranquecimento” no filme não passa apenas pelo elenco, mas também pela adaptação do roteiro com uma abordagem “mais internacional”, como afirmou o produtor Steven Paul.
Uma figura que sofreu com os padrões de beleza brancos ocidentalizados foi Merle Oberon. A atriz de O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights, 1939) nasceu em Bombaim na Índia, mas escondeu sua ancestralidade e fingiu ser australiana da região da Tasmânia quando teve a oportunidade de atuar em seu primeiro grande filme, Os Amores de Henrique III (The Private Life Of Henry VIII, 1933), como Ana Bolena. O seu tom de pele mais claro permitiu que suas origens não fossem tão questionadas, mas a atriz teve de mudar seu sotaque e sua mãe, de tom de pele mais escuro, teve de passar por empregada para acompanhar a filha. Mesmo assim, a indicada ao Oscar por Anjo da Noite (The Dark Angel, 1935) ainda sofreu com perguntas sobre suas origens e nunca assumiu publicamente sua herança anglo-indiana.
Dentro dos estereótipos em que são colocadas, as mulheres asiáticas sofrem com a hipersexualização ou fetichização de seus corpos. Já na década de 1930, Anna May Wong relatava que as mulheres chinesas no cinema eram apenas as sensuais, fatais e prostitutas. Além disso, outras imagens como de China Doll, Dragon Lady, nerd e lutadora de artes marciais seguem presentes. Em entrevista ao Cinéfilos, a atriz Luana Tanaka comentou essa realidade: “As pessoas sempre falavam muito ‘nossa, te imagino muito como uma ninja’. Eu nunca me vi nessas figuras, como elas estavam bem estereotipadas, eu não conseguia me identificar com aquelas japonesas representadas”.
Em adição a estereotipação, a inserção da mulher asiática na indústria cinematográfica dificulta ainda mais atingir uma representatividade realista. Em entrevista ao Cinéfilos, a atriz Eloise Yamashita afirmou que “a inserção no audiovisual de atores amarelos é uma brecha um tanto mais recente. O que a gente via até então eram aqueles papéis estereotipados e raros. Falavam que eu precisava mudar de nome, que eu tinha que tirar a franja, com a justificativa de que é um perfil muito marcante. O audiovisual achava muito marcante, um asiático chama muita atenção”.
E quando se consegue papéis, a preferência por uma imagem irreal perpetua o preconceito e inibe uma representação verdadeira nas telas: “A gente está aqui há 115 anos, a gente não fala com sotaque, a gente não tem essa realidade, a gente não consegue se identificar. Essa forçação de barra, de alívio cômico, de ficar reforçando um estereótipo totalmente descolado do que a gente se identifica, é muito difícil”, disse Eloise, que é descendente de japoneses.
Lutas e conquistas
Porém, a indústria cinematográfica vem mudando. Para Juily Manghirmalani, produtora audiovisual e autora do livro Vivências asiático-brasileiras: raça, identidade e gênero(Editora Mandaçaia, 2023), a representatividade asiática no ocidente tende a ter dois momentos: o pré e o pós-streaming. “Até pouco tempo atrás, a maior parte dos países do ocidente apenas utilizavam personagens asiáticos em filmes de ação – como de artes marciais – ou dos que retratavam especificamente histórias asiáticas – Quem Quer Ser Um Milionário? (Slumdog Millionaire, 2008) ou Memórias de uma Gueixa (Memoir of a Geisha, 2005), por exemplo – ou para personagens secundários em tons de comédia ou estereótipos bem pesados. Após a era dos streamings e da popularização de muitas pautas sociais e raciais, pessoas de diferentes origens e necessidades de representação começaram a emergir.”
De acordo com Juily, o streaming permite que cinemas asiáticos antes não tão acessíveis, como o libanês e o indiano, cheguem em países como o Brasil. Com isso, a representatividade pode não apenas ser mais fiel às suas origens, como também fugir do centro hollywoodiano e seus estigmas. Mas, claro, o alcance do cinema norte-americano também auxiliou as representações genuínas de mulheres asiáticas a atingirem maiores públicos.
Em O Clube da Felicidade e da Sorte (The Joy Luck Club, 1993), quatro mulheres chinesas se encontram para jogar mahjong e trocar histórias no meio de São Francisco, Califórnia. Baseado no livro homônimo de Amy Tan, o filme foi bem avaliado pela crítica na época, mas não resultou em um aumento no espaço para a comunidade asiática no cinema. Mesmo assim, um ponto positivo, além do sucesso nas bilheterias, é a representatividade realista do filme, afinal, a adaptação às telas se manteve fiel ao material original da autora da obra, junto com um elenco e equipe de produção que se identificavam com a história. “Ainda me faz chorar porque eu não conseguia acreditar que eu nunca tinha lido algo que refletisse tanto a minha própria vida”, afirmou a produtora do longa-metragem, Janet Yang.
Anos depois, outra adaptação literária abriu de vez as portas para a representatividade asiática em Hollywood. Podres de Ricos (Crazy Rich Asians, 2018) se tornou o primeiro filme em 25 anos a ter o elenco inteiro asiático, depois de O Clube da Felicidade e da Sorte. A comédia romântica conquistou 34 milhões de dólares na bilheteria estadunidense em sua primeira semana. Para a atriz Constance Wu, que interpreta a protagonista Rachel Chu, mostrar a cultura asiática em um cenário contemporâneo aproxima as pessoas e representa a verdadeira inclusão. Apesar de ser centrado em um ambiente de ostentação e fora de alcance para maior parte da população, o longa-metragem dirigido por Jon M. Chu chamou atenção para a causa da representatividade asiática e vem surtindo efeito.
Para Todos os Garotos que Já Amei (To All the Boys I’ve Loved Before, 2018) A Despedida (The Farewell, 2019), Galeria dos Corações Partidos (The Broken Hearts Gallery, 2020) e As Marvels (The Marvels, 2023) são filmes que exemplificam a representatividade asiática de forma positiva, sem tom pejorativo ou estereotipado. Todos estes longas contam com protagonistas femininas com ascendência asiática interpretando personagens em diversas situações e gêneros de filmes completamente diferentes.
No Brasil, entretanto, a realidade é mais distante. Eloise comenta as dificuldades encontradas como atriz: “Eu sinto essa dificuldade de inserção mesmo, de não poder fazer um teste porque eu preciso esperar um papel para uma atriz amarela, com uma definição de uma cota de diversidade. O que me toca mais pessoalmente é essa dificuldade de fazer qualquer papel, qualquer teste, de ter essa amplitude de possibilidades. Simplesmente ser uma atriz.”
Perspectivas
É impossível prever o que vai acontecer daqui para frente. A brecha para inserção asiática na indústria é crescente, mas segue instável. Eloise cita um receio do movimento ser passageiro: “Se a gente não aproveitar esse momento e se infiltrar em todas as bases das pessoas que decidem para ter uma representatividade maior, eu tenho muito medo de ser só um momento e ser uma coisa que só vai durar uns anos e a gente não conseguir perpetuar esse movimento das pessoas olharem para as produções e normalizarem nossa imagem sem estereótipos, sem essa característica exótica.”
“Eu quero um dia poder falar sobre uma personagem que eu estou fazendo, sobre a história dela, e não só que as pessoas me perguntem ‘mas então, e a representatividade?’. Mas por enquanto a gente precisa falar, e esse discurso vai se atualizando, a gente vai ficando mais consciente dos contextos em que a gente vive, como a gente pode melhorar mesmo, ser mais inclusivo, ter um olhar menos viciado”, afirma Luana. Além do que é visto nas telas de cinema, a mudança também reside nos outros espaços que são abertos para a participação feminina asiática: “Qualquer representatividade feita com consciência e por pessoas com local de fala já tem grandes chances de ser mais realista do que uma feita por pessoas de outras origens ou repetindo estereótipos e estigmas”, resume Juily.
É com o respeito às individualidades das mulheres, sejam amarelas, marrons, do sul, sudeste ou leste asiáticos que o cenário do audiovisual mundial e brasileiro muda para um espaço sem estereótipos e preconceitos. Simplesmente atrizes, simplesmente roteiristas, simplesmente diretoras, simplesmente histórias que merecem ser contadas nas telas dos cinemas.