A relação entre a música e outras linguagens artísticas é objeto de experimentação para diversos cantores e bandas. O resultado são álbuns conceituais, que apresentam narrativas, estéticas e personagens bem definidos: é o caso de Lady Gaga, que em 2020 apresentou ao público Chromatica, um álbum dividido em atos como no teatro; Halsey, que produziu um filme baseado na narrativa de seu disco If I Can’t Have Love, I Want Power (2021), e até mesmo Beyoncé com seu premiado projeto Black Is King (2020), baseado no live-action de O Rei Leão (2019).
O formato, no entanto, não é uma novidade. A partir dos anos 1960, a produção de discos cujas faixas dialogam entre si, seja através de um tema narrativo, instrumental ou lírico, começou a ganhar destaque no cenário musical. Os chamados álbuns conceituais combinam diferentes elementos artísticos, de modo a proporcionar uma experiência imersiva e completa.
O cenário era favorável para que cantores e bandas elaborassem projetos cada vez mais ambiciosos. Entre outros fatores, o desenvolvimento tecnológico no período após a Segunda Guerra permitiu que novas maneiras de distribuição de música surgissem. Em 1948, a Columbia Records introduziu ao mercado os discos de formato Long Play, ou LP, que comportavam até 45 minutos de áudio em seus dois lados. Até então, só era possível comercializar músicas individualmente, em discos compactos, ou singles, que possuíam capacidade para apenas três ou quatro minutos de som.
A noção de álbum musical, uma coleção de canções de um determinado artista ou evento, ainda era relativamente nova quando, em meados dos anos 50, o rock ‘n roll surgiu. A popularidade do novo gênero fez com que a indústria musical alcançasse um patamar de sucesso como nunca antes. O grande investimento de tempo e dinheiro para produzir um disco passou a se justificar, o que expandiu as possibilidades de criação e permitiu um diálogo da música com outras vanguardas artísticas.
Os estúdios de gravação da época também se beneficiaram com os avanços tecnológicos, tornando-se mais complexos. Novos recursos abriram espaço para a experimentação e a criatividade dos músicos. “Antes disso, os artistas iam aos estúdios gravar as músicas da mesma maneira que elas seriam tocadas nos shows, o disco era apenas um registro daquilo que seria apresentado no palco”, conta Eduardo Vicente, pesquisador da área de música popular e professor no departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Um álbum importante para entender essa transição é Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado pela banda The Beatles em 1967. O projeto, considerado por muitos fãs o primeiro disco conceitual da história — ainda que não exista um consenso em relação a tal afirmação —, foi pensado a partir da ideia de que suas músicas não poderiam ser apresentadas ao vivo. As gravações utilizaram colagens sonoras, efeitos de transição que faziam com que as faixas se sucedessem ininterruptamente e até mesmo uma orquestra, de modo que sua reprodução fora do estúdio seria impossível.
Em Sgt. Pepper’s, os Beatles não apenas exploraram novos recursos de produção musical, mas também construíram uma estrutura narrativa ao redor de suas canções. Preocupados com possíveis críticas e acusações de pretensão, a banda optou por assumir o alter ego Lonely Hearts Club Band (“Banda dos Corações Solitários”, em português), um grupo fictício, para trazer ao álbum certa unidade. Para Eduardo, o feito foi essencial para que os álbuns adquirissem um novo status em meio à arte: “Com a valorização do rock, os discos deixam de ser apenas uma coletânea de músicas de um mesmo artista e se constituem como obras razoavelmente integradas. A ideia do conceitual faz com que o álbum soe quase como um livro”.
Outro recurso significativo para a construção do conceito em Sgt. Pepper’s é sua arte de capa, uma colagem concebida pelos artistas Peter Blake e Jann Haworth. A imagem apresenta os personagens da Lonely Hearts Club Band rodeados de importantes figuras históricas, como Oscar Wilde, Bob Dylan, Albert Einstein, Karl Marx e até mesmo os próprios Beatles.
Em meio à efervescência cultural e artística do pós-guerra, tornou-se comum que discos conceituais incorporassem elementos das artes plásticas, cinema, moda e literatura. “A contracultura era uma cena que se estabelecia com força, e o álbum fez parte dessa batalha para fortalecer um novo cenário artístico e também ideias políticas”, diz Eduardo.
A preocupação com a apresentação visual fez com que a estética de alguns discos extravasasse até mesmo para a presença física de seus artistas, que em performances se caracterizavam como os personagens de suas faixas. É o caso de David Bowie em seu quinto álbum de estúdio, The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars, lançado em 1972.
As faixas da obra narram de forma linear a trajetória de Ziggy Stardust, um rock star alienígena que visita a Terra no momento em que o planeta se aproxima de seu fim. Além de uma história complexa e detalhada, o personagem, interpretado pelo próprio Bowie em seus shows, possuía uma identidade visual completa. Para representar Ziggy, o cantor vestia figurinos chamativos e um irreverente cabelo vermelho.
O álbum também aborda diversas questões sociais e políticas da época, como o uso de drogas, sexualidade, gênero e a exploração indevida dos recursos naturais.
Além de Bowie, a também britânica banda Pink Floyd ficou conhecida por inserir críticas políticas claras em seus discos — um caráter de contestação é evidente em todas as faixas de The Wall, lançado em 1979. O álbum narra a história do personagem fictício Pink, partindo de sua infância em meio à Segunda Guerra Mundial até a conturbada vida adulta. O muro citado no título seria uma barreira imaginária que, aos poucos, isolou o protagonista da vida real.
A conexão com outras modalidades artísticas permitiu que a narrativa de The Wall alcançasse maiores proporções. Além do disco ganhar uma adaptação para o cinema em 1982, sua turnê de divulgação foi considerada um marco na história da música pelo jornal The New York Times: “Nunca mais alguém será capaz de aceitar as falhas técnicas, som distorcido e visuais escassos da maioria dos shows de rock em arenas. Os shows de The Wall serão referência para todos os futuros espetáculos”. As performances, extremamente teatrais, contavam até mesmo com um muro cenográfico construído em palco.
Com o passar das décadas, a influência de antigos discos conceituais em novos artistas se tornou evidente. Em meados dos anos 2000, a banda estadunidense Green Day decidiu tomar um novo rumo em sua já consolidada carreira e, inspirada pelo processo criativo dos Beatles, lançou a ópera-rock American Idiot (2004).
A estrutura do álbum segue um formato similar ao do gênero teatral, na qual a narrativa subdivide-se em seções que funcionam como capítulos da história. De forma complementar ao disco, a banda estreou o musical American Idiot na Broadway em 2010. Seu enredo aborda a desilusão da juventude da época e tece diversas críticas ao então presidente George Bush.
Além do cinema e do teatro, outras mídias também foram utilizadas de forma integrada a álbuns conceituais. Um exemplo é a narrativa iniciada em Danger Days: The True Lives Of The Fabulous Killjoys, álbum de 2010 da banda My Chemical Romance, que teve sequência em uma HQ homônima. A trama revolve em torno dos Killjoys, um grupo de super-heróis que precisa sobreviver em um cenário pós-apocalíptico.
Para tornar a experiência ainda mais imersiva, a banda lançou outras três faixas sob o nome Mad Gear and Missile Kid, um grupo fictício que existe apenas no universo da história contada. Em entrevista à MTV, o guitarrista Frank Iero afirmou que o projeto “é basicamente o que os Killjoys ouvem no carro enquanto vão para suas lutas”.
No entanto, o constante avanço da tecnologia fez com que o modo de consumo da música continuasse a se reinventar após a eclosão dos discos conceituais. Nas décadas seguintes ao surgimento do LP, os álbuns passaram pelo formato de fita cassete, CD, MP3 e, recentemente, ganharam espaço nos serviços de streaming.
A mudança no modo de escuta influenciou também uma transformação nos lançamentos musicais — o formato atual favorece o sucesso de músicas soltas. Em uma pesquisa conduzida mundialmente em 2020 pelo Deezer — serviço de streaming musical —, mais de 50% dos entrevistados admitiram ouvir menos álbuns atualmente do que há 10 anos. “Antes da digitalização da música, privilegiava-se a escuta contínua, uma vez que era mais fácil escutar um disco até o final do que trocá-lo para ouvir outra faixa. Hoje existe uma facilidade maior. Se eu não gostei de uma música, eu posso simplesmente passar para a próxima”, conta Felipe Faraco, produtor musical.
Além da perda do apelo da mídia física e a possibilidade de reorganizar faixas em playlists, a lógica acelerada de consumo de conteúdo nas redes sociais também contribuiu para que o interesse do público pelos álbuns diminuísse. “Obviamente, discos levam mais tempo para ser produzidos do que uma única música, e hoje espera-se que os artistas constantemente alimentem o público com novas canções. Uma pessoa que não tem uma presença virtual forte acaba desaparecendo ou sendo esquecida”, reconhece Felipe.
O próprio CEO do Spotify, Daniel Ek, afirmou em uma entrevista ao site Music Ally que os músicos não podem “gravar canções uma vez a cada três a quatro anos e pensar que isso será suficiente”. No entanto, por mais que o álbum tenha perdido uma parcela de sua relevância diante das novas possibilidades de comercialização da música, ele ainda é uma opção para artistas que buscam demarcar sua presença autoral.
Para Eduardo, “hoje, quando alguém lança um álbum, sempre pode-se dizer que ele tem algo de conceitual, porque a intenção intrínseca ao disco é fazer algo que valorize uma ideia, um conceito, um momento”. A experiência estética e artística proposta pelos artistas flui em plataformas novas, como o Facebook, Instagram, canal do YouTube, página do Spotify e transmissões ao vivo. “Nos álbuns temáticos, criar uma narrativa coerente é cruzar todas as formas de comunicação que estão disponíveis para o artista conversar com seu público. O conceito nunca esteve fechado nas faixas, mas sim em várias mídias simultâneas, que a pessoa consome de forma fragmentária”, completa Felipe.