Jornalismo Júnior

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Amor & Outras Vírgulas – Quando ela estava indo para longe, notei que éramos próximos

Nos últimos momentos, descobri que nossa relação não era igual às da TV, mas era tão forte quanto

Eu nunca fui muito próximo da minha vó. Antes de vir para São Paulo, ela teve um caroço no rosto que mais tarde lhe custou o lado direito dele. A prótese que usava atrapalhava a movimentação da sua boca e dificultava a fala. Por isso, quase nunca entendia o que ela dizia.

Nascida em 1948 numa cidade pernambucana de nome esquecido e deixada de lado no RG, ela teve 22 filhos lá. Apenas 16 estão vivos. Só um não mora atualmente na metrópole paulista.

Até o momento de sua morte — se não errei a conta — ela tinha 29 netos e duas bisnetas. Assumiu o papel de mãe para algum deles. Talvez, esse fosse mais um dos motivos que me fizeram sentir que não tínhamos proximidade: muitos netos para olhar.

Não me interprete mal, isso não quer dizer que eu não gostava da minha vó ou que queria ela só para mim. Quando criança, eu adorava ir visitá-la — e, felizmente, a casa estava sempre cheia de primos para brincar. Cumprimentava ela sempre com um beijo no rosto e um carinhoso “oi, vó”.

Na passagem do ano para 2022, não reparei se a tradição da casa lotada e do som alto ainda estava ocorrendo. Já não frequentava lá com tanta frequência devido às minhas ocupações e horários de adulto. Crescer trouxe uma desaproximação ainda maior. Faz parte.

Enfim, a relação que nós tínhamos não parecia com as de avós e netos que eu via em filmes, séries ou nos relatos de meus amigos. Mas nunca exigi isso, já que sabia que éramos muitos netos. 

O caroço que minha vó teve na bochecha foi sua primeira experiência com o câncer. A doença a alcançou três vezes. Um casamento abusivo e agressivo a alcançou uma vez. Segundo sua filha mais velha, graças a intervenções divinas, sua força e aos esforços da família, ela conseguiu escapar de quase todas essas situações desagradáveis.

Após terminar os tratamentos de quimioterapia do terceiro câncer, ela ficou muito fraca. Complicações surgiram, cirurgias foram tiradas de cogitação por causa de quão debilitada ela estava, e conversas para decidir quem ficaria com ela durante sua internação foram necessárias. 

Até que, em uma quarta-feira comum, uma reunião familiar extraordinária foi convocada. Sua casa ficou cheia novamente.

Minha tia mais velha, responsável por levar minha avó ao hospital e cuidar dos itens mais burocráticos, iniciou a reunião contando a história da vida da mãe dela. Era importante que todos soubessem a trajetória da minha avó naquele momento. 

Deixando de lado toda parte dolorosa, minha tia disse que, antes de iniciar o tratamento que mais a enfraqueceu, minha avó sentou na calçada e ficou sob a luz do sol por algum tempo. O pensamento de que ela teve esse momento de paz e serendipidade antes de iniciar uma terrível montanha-russa me trouxe conforto. Algumas lágrimas escorregaram.

Minha tia também contou a mesma narrativa aos doutores, pois alguns estavam fazendo suposições erradas sobre a situação médica dela.

Quando entraram nesse tópico, minha mãe falou sobre as experiências que teve com esses médicos nas 24 horas que passou junto da minha vó no hospital. Uma citação dela, que descobri só naquele espaço, me tocou profundamente.

Enquanto massageava as pernas geladas da minha avó com óleo, uma enfermeira tinha questionado ela sobre nunca ter visto uma nora tão carinhosa. “É claro que sou! Eu amo ela. Ela gerou o amor da minha vida”, foi o que minha mãe respondeu.

Quando minha mãe disse isso, percebi que eu e minha vó éramos mais próximos do que eu pensava. Não era como outros netos e avós que eu conhecia, mas era uma conexão tão forte quanto. 

Eu sou fruto daquele amor entre meus pais. Minha mãe só se apaixonou por ele, porque minha avó o ajudou a ser alguém. Só tive chance de conhecer todas as coisas e pessoas que amo no mundo pois minha vó resistiu aos obstáculos de uma vida sofrida.

Minhas conversas com minha avó acontecem no meu sangue. 

Nós nos entendemos toda vez que conquisto algo que só foi possível porque ela teve coragem de sair de um ambiente desesperador. Sempre que meu pai é capaz de me dar algo que nem ele teve, ela me presenteia. Recebo os conselhos dela quando, no caminho do trampo, o sol das 8 horas da manhã me esquenta. Eu a amava porque amo meu pai, e a conheci porque conheço minha família. Nossa relação foi construída por amores hereditários, conexão geracional e gratidão pelas oportunidades. E isso era suficiente.

Minha tia finalizou a reunião contando que minha avó estava em seus momentos finais e deveríamos visitá-la assim que possível. Corri para tornar isso possível.

Quando a visitei, reparei que um dos médicos tinha estudado na mesma universidade que eu. Me perguntei se minha avó sabia disso. Também me questionei se ela lembrava que eu tinha sido o primeiro da família a entrar numa faculdade pública ou se, em algum momento, eu contei isso a ela. 

Para ser sincero, ali, aquilo não importava tanto. A memória dela já estava fraca. Alguns netos contaram que ela não os reconheceu de primeira, apenas quando diziam de quem eram filhos. Mas, fiz questão de contar.

Estava meio adormecida quando cheguei. Segurei a mão dela e a chamei até que estivesse mais ativa. Quando eu falei que eu era o filho do meu pai e o filho da minha mãe, ela abriu um sorriso torto — resultado do primeiro câncer — e lindo. Mesmo com quase 30 netos e no leito de um hospital, ela me reconheceu. Eu sorri de volta e disse meu “oi, vó” final.

Me lembrei do jaleco do médico e contei a ela das nossas conquistas. Sem a força e coragem dela não estaria onde cheguei. Agradeci por ter criado o meu pai e meus tios e tias. Sem os ensinamentos dela e dos seus irmãos mais velhos, ele não seria o homem bom que me fez quem eu sou.

Repeti “eu te amo” algumas vezes enquanto a acariciava. E, antes de ir, apertei forte a mão dela e a beijei na testa.

Exatamente uma semana depois, estávamos todos no velório. O local encheu. Senti estranheza ao tocar em sua mão para me despedir. Não parecia real como na semana anterior. Não parecia ter proximidade como na semana anterior.

Decidi que essa não será a última imagem que guardarei da minha avó. O sorriso no hospital ao me reconhecer e a solitude ao aproveitar raios de sol sentada numa calçada são mais justos, mais fiéis e mais próximos a mim. Gosto de pensar que nossa relação transcendeu distância, atos e diálogos. Afinal, entendo hoje que conexões não precisam estar sempre ligadas a essas coisas.

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