por Gabriel Lellis
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São Paulo. Região central da cidade. No ar, a típica atmosfera fria de garoa paulistana. Pernas de empresários, advogadas, moradores de rua, frentistas e turistas se misturam entre a calçada de concreto maltratado.
Estamos no segundo andar do prédio da Matilha Cultural, um espaço dedicado a diversas atividades culturas e artísticas. O lugar está agitado. O público se divide entre pessoas interessadas nos filmes da 37ª Mostra Internacional e um grupo de crianças agitadas que participam de uma atividade que comemora o dia das Bruxas.
Com passo devagar e um rosto cansado e sereno, chega Júlio Calasso, diretor do filme Nas quebradas do mundaréu – a viajem de Plínio Marcos, em cartaz pela mostra. Sentamos perto de uma janela com vista para a Avenida da Consolação.
Quando anuncio que o gravador já está funcionando, Júlio perde-se em pensamentos olhando através do vidro. Seu rosto transmite a força de uma longa carreira que se divide entre as telas do cinema e os palcos do teatro. Inspiradas pela visão da cidade, aqui estão algumas reflexões do diretor acerca de seu filme, de Plínio Marcos e da arte.
Plínio, o teatro e a geografia da metrópole
Júlio Calasso: Nos anos 70, eu tinha uma lavanderia aqui na Major Sertório, e o Plínio Marcos morava na Rua do Teatro. E fora do mundo teatral, temos uma grande história humana que partilha os mesmos espaços da cidade no mesmo momento de cada um. Tento fazer com o filme exatamente isso. São essas esquinas aqui. São as pessoas, os momentos políticos.
Tinha uma vivência, entende? Se você me perguntar da minha história com o Plínio, havia uma agregação muito grande. Hoje me parece que genericamente há uma dispersão da nossa classe teatral, ou então eles se escondem em outras tocas. Nos nossos velhos restaurantes só há velhos garçons amigos. Os valores são outros, assim como as necessidades, as exigências e o contexto. Isso vai propondo transformações até na geografia humana, em relação a esse grupo.
Eu também morei na praça Roosevelt. É um local que nos últimos dez anos acabou novamente congregando uma geração, um tipo, grupos de teatro que também tem uma história. Há uma inter relação entre os espaços e o que as pessoas fazem. Eu sinto isso aqui. Embora eu frequente menos, quando eu compareço me sinto até rejuvenescido. Ainda é possível encontrar figuras que estão fazendo perguntas, assim como o Plínio. O teatro babaca dá muita resposta. O teatro invenção, ousado, levanta questões e provoca.
Memória…
A arte se realimenta. Ela necessita em certos momentos de outros valores, de uma outra dramaturgia, outra narrativa, outra escrita. Isso acontece para todos. Inclusive para o Plínio. O fato de ele ser subversivo é a coisa que menos me interessa. Ele era ligado a um grupo político ao qual eu não era ligado. Ao contrário, éramos, dentro do ambiente da esquerda, frontalmente divergentes. Ele era do velho partidão [Partido Comunista] e eu era um trotskista. A vida é assim.
Fiquei anos afastado do cinema. Tenho uma participação política grande nas artes em geral. E de repente tudo muda. As coisas trocam de sinal. Ai eu fiquei diversos anos à margem, fazendo coisas absurdas, me apoiando na minha família. Tudo por culpa de um estado autoritário. O que estou te falando é muito parecido com o Plínio e com a vida de todos nós. A vida para de vez em quando. As coisas não andam.
Eu vivi uma experiência incrível de um teatro super ousado e inventivo, fazendo trabalhos fantásticos que me levaram ao Plínio, cinematograficamente falando. Quando ele faleceu estávamos no Rio e montamos o Dois perdidos em uma noite suja, Navalha na carne e Abajur Lilás, que tem cenas no filme. Era um lance de memória porque antes, no mundo analógico, era impossível que os grupos de teatro tivessem memória audiovisual. E também custa muito caro. Mas hoje a maioria dos grupos tem um setor de AV onde estão trabalhando, procurando uma linguagem. Eu com esse meu grupo produzi doze espetáculos em sete anos. Espetáculos grandes. O filme é memória.
Essa vivência misturada com uma puta paixão que eu tenho pelo cinema que foi me conduzindo pra fazer esse filme; que é uma mistura braba entre teatro e cinema. E principalmente discutindo narrativas. Discutindo linguagens. O como que tudo se construiu e quais são as interfaces.
Encontro com Plínio
Eu e o Plínio começamos mais ou menos na mesma época. Ele só é seis anos mais velho que eu. Mas ele já tinha mais experiência. Veio de Santos; teve toda uma inter-relação com a Pagu. Em 63 descobri o teatro com Pequenos Burgueses, no Oficina. Eu via aquele ensaio de luz e fiquei apaixonado. Vim pro Arena convidado como ator e trombei com o Plínio. Eu vinha de uma história cênica Stanislavskiana, pautando o personagem no psicológico. Eles eram mais Brechtianos. Tinha toda uma discussão sobre narrativa. Até que um dia no intervalo do ensaio, eu estava conversando com o pessoal ali até que de repente um cara interrompe e fala assim: “Escuta aqui rapazinho, você não acha que é muito cedo pra você chegar aqui e já querer a azeitona da empada, não?”. Logicamente era o Plínio.
O primeiro espetáculo dele que eu fiz como ator foi Reportagem de um tempo mau. Eu saquei que ele não era um naturalista ou impressionista simplesmente. Na verdade Plínio é no mínimo um pouco mais que tudo isso. É um inventor de linguagem.
A escrita dramatúrgica brasileira estava empacada. Inclusive com o pessoal do Arena e aos Guarnieris da vida. Era tudo convencional, neo-realista. Plínio teve contato com alguns dos maiores dramaturgos do começo do século 20, como Beckett, Ionesco. E rompeu essa estética.
Ele é um cara cujo alguns dos maiores trabalhos foram escritos sob o impacto da emoção. Ele conta no filme que Barrela é fruto de um impacto após conhecer a história trágica de um vizinho dele. Há quase que um “vômito” de produção com essa angústia. Ele se livra do sofrimento. Enquanto que em peças como Dois perdidos… há uma construção. Uma dramaturgia construída. Essa peça inclusive é baseada em um conto. Ele pegou esse mote que o deixou sem dormir, e se envolve nessa dramaturgia.
É estrutura uma trilogia que conta com Dois perdidos numa noite suja, Navalha na carne e Abajur lilás. É uma trilogia que quando você começa a adentrar-se percebe que o Plínio está construindo uma verdadeira tragédia da condição humana. E ele fecha um ciclo. O que vem depois são outras coisas. O circula da grande tragédia, construída por ele. É o momento que o cara está ungido. Ele nem sabe exatamente o que o conduz para chegar aquilo.
Ele teve como artista a capacidade de enxergar aquilo que estava escondido e mascarado como uma visão neo-realista do que era o teatro brasileiro.
A arte que nasce em volta de Plínio
Em 1999 o Plínio faleceu e eu tive um AVC no Rio, já imerso no trabalho do grupo de teatro. O Plínio tinha estado lá em 1994 e adorou nossos espetáculos. Quando ele faleceu montamos alguns espetáculos em homenagem a ele. Eu comecei a pegar a câmera e catalogar algumas coisas.
O Plínio vinha imerso nessa história. Na verdade eu estava apenas documentando peças. Quase por diversão. Estava maravilhado com a oportunidade que a vida me deu de poder me reencontrar como artista. Daquela nossa ebulição surgiram grandes artistas que se espalharam pelo Rio, como Seu Jorge e o pessoal do Cidade de Deus. Tempo depois, independente do projeto, aparecerem outros espetáculos do Plínio e a vontade de capturar continuou. Plínio pode te levar da mais absurda alegria à perda de fôlego no mesmo texto. Isso me encantou…e ainda me encanta.