Por Clara Viterbo Nery (claravnery@usp.br)
Em uma partida de xadrez, uma das regras mais importantes é não perder as suas torres, que são a segunda peça mais importante do jogo. Mas, quando se perde uma peça tão crucial como essa, como a partida pode prosseguir? Em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos perdeu uma das peças mais importantes do seu simbolismo nacional — as torres gêmeas do World Trade Center — em um ataque terrorista. As torres eram tão importantes para o país quanto essas peças são para o xadrez, então, para prosseguir, era preciso de uma estratégia forte para reverter o jogo — e foi isso que os EUA buscou.
Em meio à um forte clima de guerra no país, o cinema foi uma das principais ferramentas para fortalecer a narrativa bélica e nacionalista dos Estados Unidos. A estratégia de propaganda fílmica norte-americana acabou ainda criando uma nova tendência e fortalecendo o gênero de ação, que chegou até a influenciar na continuidade das comédias românticas e produção de filmes de horror.
Nova York: a cidade que virou filme
Conhecida como “a cidade que nunca dorme”, Nova York tem sido paisagem para inúmeras produções cinematográficas por décadas. Desde os clássicos, como Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) e Os Caça-Fantasmas (Ghostbusters, 1984), até filmes mais recentes, a exemplo de O Diabo Veste Prada (The Devil Wears Prada, 2008) e O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013), a metrópole nova-iorquina, uma das mais retratadas da história do cinema mundial, se tornou a representação do famoso “sonho americano”. Produções ambientadas na cidade já abordaram todo tipo de situação possível, das mais românticas às mais catastróficas, afinal tudo poderia acontecer em Nova York.
A cidade já havia sido vítima de destruição antes… nas telonas. Em Independence Day (1996) e Godzilla (1998), ambos dirigidos por Roland Emmerich, Nova York é vítima de verdadeiras catástrofes criadas digitalmente, com direito à destruição em massa, inundações e até ataques de extraterrestres. O que nunca passou pela cabeça dos cineastas é que tais eventos tão espetacularizados fossem um dia se assemelhar com a realidade — muito menos se equiparar à imagens que seriam presenciadas alguns anos depois.
Em 11 de setembro de 2001, quatro aviões comerciais estadunidenses foram sequestrados a mando da organização terrorista internacional Al-Qaeda, em uma ação premeditada, para atacar dois dos maiores símbolos americanos da época. Nessa ocasião, integrantes do grupo mudaram a rota dos aviões e efetuaram ataques contra a cidade de Nova York, no World Trade Center (WTC), e em Washington DC, cujo alvo foi o Pentágono. Os ataques levaram mais de 3 mil cidadãos à óbito, sendo a maior parte delas pessoas que estavam dentro do WTC, e causaram um dano irreparável na vida de milhões de pessoas mundo afora.
Os ataques abalaram completamente a forma como o país se comportava, e isso inclui sua produção cinematográfica. Hollywood teve de tomar medidas rápidas para abafar menções em quaisquer produções e passou a ter receio de como tratar a cidade de Nova York, afinal todo aquele terreno estava abalado e sensível. Em contrapartida, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, instituiu a famosa “Guerra contra o terror”, que reverberou não só na política mundial, como influenciou diretamente os estúdios em reforçar a ideia de “bem e mal”, que se espalhou rapidamente em filmes nos anos seguintes.
O primeiro impacto
Poucos acontecimentos foram tão marcantes durante o século 21 quanto o ataque às Torres Gêmeas do WTC. Por ter acontecido durante a famosa Era da Informação, as imagens das torres sendo atingidas e pegando o fogo percorreram o mundo em questão de instantes, espalhando uma cena que até então só era vista nos cinemas. No entanto, se os ataques terroristas pareciam um filme, a resposta imediata de Hollywood foi que os filmes lançados deveriam se distanciar ao máximo do que foi o 11 de setembro.
Filmes que já estavam com data marcada para serem lançados, como MIB: Homens de Preto II (Men in Black II, 2002) e Homem-Aranha (Spider-Man, 2002) de Sam Raimi, tiveram de passar por uma nova pós-produção às pressas para retirar as imagens das torres gêmeas dos longas. O filme de Raimi ainda teve um prejuízo maior, pois teve de tirar pôsteres e trailers, que já haviam sido divulgados, do ar e refazê-los. Até filmes infantis, como Lilo & Stitch (2002) e Os Incríveis (The Incredibles, 2004), realizaram modificações em algumas cenas que envolviam aviões ou a destruição de prédios para evitar que houvesse qualquer tipo de associação com o ataque aéreo.
Em paralelo, o governo de George W. Bush também não demorou para reagir acerca dos atentados terroristas. Nos dias seguintes aos ataques, Bush apareceu em rede nacional e declarou repúdio aos crimes de ódio e discriminação contra mulçumanos e árabes, além de estabelecer novas políticas nacionais e estrangeiras dando início a “Guerra contra o terror”. Com o objetivo de encontrar Osama Bin Laden, líder do Al-Qaeda, essa nova campanha do país promoveu a invasão do Afeganistão, e posteriormente ao Iraque, começando uma guerra contra os dois países. A guerra do Iraque durou menos de um ano, no entanto a do Afeganistão só foi ter fim em 2021, dez anos após a morte de Bin Laden.
A política da guerra contra os chamados “terroristas” perdurou por quase 20 anos dentro dos Estados Unidos e, mesmo que não atingisse diretamente a produção cinematográfica, a sua ideologia perpassou por todos os setores da sociedade, incluindo o do entretenimento. Hollywood, acima de tudo, é uma indústria, e, por isso, ela precisa se adaptar às diferentes mudanças da sociedade para se manter ativa. Traduzir as novas estratégias sociais, políticas e bélicas dos americanos pós ataques às telas não é apenas uma estratégia, como também, um reflexo do que se passava fora delas.
Em um momento de clima de ódio no país, muitas de suas produções vão refletir esse sentimento e gerar uma nova onda de filmes sobre o assunto, como forma de vender a ideologia ao público. O professor Flávio Trovão, pesquisador na área de História e Cinema da Universidade Federal de Rondonópolis, explica: “O 11 de setembro, ele não cria ou marca toda uma era de produção, o que ele faz é gerar uma tendência. […] O que se faz nesse momento é reacender o nacionalismo americano e alimentar o clima bélico, que vai atuando na cultura midiática e justificando isso para o público”.
Apologia à guerra e novos heróis
Filmes com temática de guerra não eram nenhuma novidade dentro do mercado cinematográfico hollywoodiano. Ainda na década de 1990, produções como O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan, 1998) e A Lista de Schindler (Schindler ‘s List, 1993) atraíam positivamente grande parte do público e da crítica. Dessa forma, era natural que a elaboração desse gênero seguisse em alta, e o atentado de 11 de setembro apenas trouxe mais uma justificativa para o investimento nesses filmes.
Com a já declarada “Guerra contra o terror”, o governo de Bush precisava se certificar que a população americana estivesse alinhada à sua ideologia pró-guerra, e utilizar do cinema para seduzir e convencer a favor de suas ideologias foi uma das principais estratégias. Nesse momento, os estúdios hollywoodianos, alinhados aos ideias de Bush, começaram a abordar fortemente como a nação norte-americana estava enfrentando os impactos pelos atentados, e, dessa maneira, ocorreu uma elevação de produções que envolviam “terrorismo”, como A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty, 2013) e Guerra ao Terror (Hurt Locker, 2010).
Esse segundo, que ganhou o Oscar de Melhor Filme em 2010, é um dos principais títulos desse período pós-atentado, pois criou uma nova tendência para filmes de guerra. Além de demonstrar como as guerras começaram a ser cada vez mais mercantilizadas e tecnológicas, na ideia de trazer uma “justificativa” para o forte combate bélico na Guerra do Iraque, o longa também aborda os desafios crescentes do soldado norte-americano em combate.
O professor Flávio Trovão complementa a ideia: “Guerra ao Terror é totalmente pró-guerra, mas ele dá uma cara para esse novo soldado. Ele [o filme] mostra o drama do soldado americano, como o soldado se esforça, sofre e morre […] e, assim, “humaniza” o soldado e iguala ele à vítima”. Dessa forma, a ideologia da guerra não se torna apenas necessária, como parte do cotidiano, em que alguém precisa perder para que outro possa ganhar.
Por outro lado, enquanto os filmes de guerra mantiveram seu sucesso, outro gênero ganhava forças ao se apropriar das narrativas de mocinhos e bandidos, imposta pelos EUA em meio a campanha militar de George W. Bush. Os filmes de super-heróis, que começaram a ganhar destaque no começo da década com os lançamentos de X-Men – O Filme (X-Men, 2000) e Homem Aranha, utilizaram as figuras de personagens super poderosos como uma forma de reafirmação do nacionalismo, afinal eles tinham grande apelo cultural e afetivo para o público.
Filmes como Homem de Ferro (Iron Man, 2008) e Os Vingadores (The Avengers, 2012) são alguns exemplos dentre os filmes que, indiretamente, abordam o atentado e as guerras. Enquanto, em Homem de Ferro, Tony Stark é sequestrado e precisa derrotar terroristas do Afeganistão, em Vingadores a superequipe precisa evitar que Nova York seja destruída. De maneira quase catártica, o filme praticamente recria o 11 de setembro, mas com uma enorme diferença: os mocinhos estavam lá para impedir que um mal maior acontecesse, bem como pegar os vilões que perpetuaram aquele ato.
Os anos 2000 acabaram tornando-se o começo de uma grande era de filmes de super-heróis, que foram recebendo cada vez mais investimentos e atenção do público. Ao mesmo tempo em que se tornaram uma mina de ouro para Hollywood, que explorou o gênero de todas as maneiras possíveis, essas histórias ainda permitiam falar, embora muito obliquamente, sobre o poder dos EUA e a moralidade de usar métodos extremos para lidar com inimigos desafiadores. Utilizando suas histórias, em que o bem vence o mal, esses heróis tinham uma forma de reafirmar ao público que, da mesma maneira em que ocorrem nos filmes, a guerra teria fim e os Estados Unidos seriam os vencedores.
A comédia e o horror: os dois lados da moeda
Em termos gerais, comédia e terror são como tese e antítese, nutrindo suas histórias, respectivamente, de esperança e medo. No entanto, em meio a um período em que não era possível processar o horror experimentado em palavras, os gêneros de terror surgem como um espaço protegido para expressar esse sentimento, deixando de lado a esperança e, assim, muitos dos filmes de comédia.
Populares durante as décadas de 1980 e 1990, a produção de comédias românticas começou a decair depois do anos 2000 com a ascensão de outros gêneros fílmicos. Ligado diretamente ao fato, filmes de ação e super-heróis aumentaram muito a sua popularidade na sociedade depois do 11 de setembro, o que fez com que Hollywood passasse a focar seus investimentos nessas produções que geraram maiores bilheterias e deixassem de lado outros gêneros, especialmente os que envolvessem temas mais “bobos”, como a comédia.
Em contrapartida, enquanto a comédia diminuía, filmes de terror tiveram um aumento na sua popularidade nesse mesmo período, o que fez com que novas produções passassem a surgir, mesmo em meio ao sucesso das “superfranquias”. Depois de um boom na década de 1980, com filmes como O Iluminado (The Shining, 1980) e A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984) , e na década de 1990, com Pânico (Scream, 1996), os anos 2000 trouxeram um gênero de horror mais pesado, perturbador e apocalíptico, como Jogos Mortais (Saw, 2004), e que continuou a firmar espaço no coração do público.
Dentre as diversas razões pelas quais o público tende a se interessar por filmes de terror, uma das principais é como esses oferecem uma forma de catarse emocional. O horror permite enfrentar os medos mais profundos e liberar emoções reprimidas, de maneira controlada, tudo isso enquanto observa à uma tela. O alívio emocional depois de um trauma, como o que muitos tinham passado com o 11 de setembro, gerado por filmes de terror, fez com que eles se tornassem cada vez mais procurados pelo público e mais rentáveis para Hollywood.
A indústria hollywoodiana, com a produção de filmes de guerra, terror e outros gêneros que representassem os políticos americanos, conseguiu não apenas manter seu grande mercado, como, também, influenciar diretamente na política do país. As propagandas fílmicas, mesmo as mais sutis, venderam a ideia da guerra e da força dos EUA contra seus inimigos e, enquanto conquistaram grandes bilheterias, reverteram os fatos ao seu favor — uma verdadeira vitória na “Guerra contra o terror”.
* Capa: Jornalismo Júnior – imagens: Freepik/starline e vwalakte, Reprodução/Acervo Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e (cc) 2001 Michael Foran