Incorporar personagens e tomar decisões que afetam sua jornada são a base da atração por jogos RPG, sigla do inglês para role-playing game. Em Disco Elysium: Final Cut (aqui analisado na versão para computador), o jogador assume o papel de um policial alcoólatra que perdeu boa parte da memória no meio de uma investigação. Começa aí um jogo que está muito além de um RPG policial.
Entre o esquecimento e a escolha
No começo, tudo está escuro. Você interage com vozes, o Cérebro Reptiliano Ancestral, o Sistema Límbico. Essas vozes dizem algo sobre sua consciência, sobre uma ex-mulher e sobre uma grande esfera com símios infinitesimalmente pequenos “saindo no braço”.

Eventualmente, você acorda, de ressaca e seminu no chão de um quarto de hotel. Você não sabe quem é ou onde está. Esforça-se para se vestir. Ao descer para o lobby do hotel, acaba descobrindo: aparentemente você é um policial trabalhando em um caso. Seu parceiro, uma figura firme e austera, está à sua espera. Afinal, há um enforcado em uma árvore esperando por vocês.

Conforme o jogo avança, dependendo de suas escolhas, você pode entender melhor a si e ao mundo ao seu redor. Pode descobrir seu nome e o que aconteceu para que perdesse sua memória. Pode entender melhor o passado e o presente de Revachol, o lugar onde você está. E pode perceber como você enxerga o mundo — e não necessariamente só o mundo do jogo.
Uma escolha que reflete discussões históricas do mundo real se impõe: liberalismo ou comunismo? Os liberais podem parecer criminosos e exploradores; o sindicato, um esquema de corrupção; e o comunismo, um sonho distante e perigoso, arriscado de defender. Os questionamentos também passam por aspectos de gênero e etnia. As mulheres se equiparam aos homens? Algumas etnias são melhores que as outras? As respostas fáceis a essas duas perguntas não são consenso nesse lugar marcado por tentativas de implantar o comunismo, uma guerra civil e influências eugenistas.
E quanto a sua autoridade? Boa parte dos moradores não parecem reconhecê-la. De onde ela vem? O que é a RCM, para quem você trabalha?

Essas são apenas algumas das perguntas que o jogo levanta. Em um roteiro de mais de um milhão de palavras, Disco Elysium oferece uma história densa, cheia de nuances, com a complexidade de um clássico literário. Um jogador que se envolva com o jogo e tome as decisões com seriedade se pegará refletindo sobre si mesmo. Será que sou muito impulsivo? Peço desculpas demais? Não tenho coragem de me posicionar politicamente? Falo sempre o que os outros querem ouvir? Nenhuma dessas perguntas diz respeito apenas à narrativa e o jogo não te poupará de críticas, internalizadas ou não.
Se alguns jogos exigem muita figuração e parecem se relacionar pouco com a realidade, Disco Elysium é um soco no estômago que obriga o jogador a encarar o próprio reflexo, característica rara que enriquece a narrativa. Não é um jogo que busca apenas entreter, proporcionando um prazer muito mais masoquista, próximo ao provocado por livros como Angústia, de Graciliano Ramos. E, dentro desse gênero, é genial.
Mecânicas e jogabilidade
Disco Elysium aposta em um estilo bem tradicional de RPG, que referencia os jogos de mesa. O jogador percorre o mapa interagindo com objetos ou com NPCs (personagens que não são controlados por jogadores) e busca avançar com as missões atuais e adquirir novas. Durante essas interações, frequentemente são exigidas checagens de dados, divididas em checagens brancas (podem ser repetidas eventualmente) e vermelhas (só podem ser tentadas uma vez), que definem se o personagem conseguirá ou não realizar uma ação. O sucesso dessas checagens é influenciado por interações anteriores e pelos atributos do personagem.

Como em muitos outros RPGs, o personagem possui atributos, que nesse caso estão organizados em grupos de cinco nas categorias Intellect (inteligência racional), Psyche (inteligência emocional), Physique (capacidade física) e Motorics (agilidade).. Mas em Disco Elysium esses atributos não são apenas as capacidades do personagem: são vozes que falam em sua cabeça. Elas têm personalidade e, por vezes, querem influenciar suas ações. Talvez a Autoridade, atributo emocional, ache uma boa ideia mostrar quem é a lei em Revanchol em certa situação. Ou a Enciclopédia, atributo racional, traga algum dado útil em uma conversa.

Durante a história, o jogador tem acesso a várias missões secundárias além da narrativa principal. Apesar de não serem obrigatórias, essas missões interferem na narrativa principal e podem facilitar ou dificultar checagens de dados, abalar a saúde física ou o moral do personagem e desbloquear reflexões, que podem ser habilitadas no Gabinete de Reflexões.
As reflexões contribuem para o autoconhecimento do protagonista e para o entendimento dele do mundo ao redor. Variam em tempo e, enquanto são realizadas, podem modificar atributos do jogador, normalmente de forma prejudicial. Quando concluídas, trazem informações ou algum benefício na jogatina.

As mecânicas do jogo, que extrapolam as citadas, são intimamente entranhadas na narrativa. São bem pensadas, enriquecedoras e orgânicas, constituindo mais um ponto forte do jogo. A ressalva vai para alguns momentos pontuais onde o jogador pode ficar sem saber o que fazer, o que, apesar de colaborar para a organicidade, pode ser entediante.
O jogo é bem otimizado e tem requisitos técnicos relativamente acessíveis, o que possibilita que seja jogado em computadores de desempenho mediano.
Mas e então, vale jogar?
Disco Elysium: Final Cut, em sua versão para computador, é um jogo polido, com arte marcante e riqueza narrativa ímpar. Não é exagero dizer que é um jogo com grande capacidade de gerar reflexões que extrapolam a jogatina e interferem no jogador. Além disso, é bastante rejogável, já que possui vastidão de escolhas e histórias paralelas. Constitui uma experiência intensa, em muitos momentos dolorosa. E merece a atenção de qualquer pessoa interessada em narrativas profundas.
*Imagem de capa: [Imagem: Reprodução/ Twitter]